CEPRID

Revolução ou processo na Venezuela? A dialética do chavismo no sistema-mundo (I)

quinta-feira 16 de Maio de 2013 por CEPRID

Jon E. Illescas Martínez

Tradução: Fabiana Oliveira

Advertência ao leitor: declaração de intenções.

O estudo que o leitor tem em mãos não aspira a explicar ou a entender a imensa complexidade da chamada “Revolução Bolivariana”. Pelo contrário, pretende mostrar, em primeiro lugar, uma introdução ao leitor não familiarizado. Em segundo lugar, uma reflexão a aquele que, venezuelano ou não, acompanhe com interesse o decurso da história recente do país caribenho. E, em terceiro e último lugar, desejaria principalmente abordar determinados aspectos e atores sobre os quais creio que não se tem prestado suficiente atenção.

Espero que este trabalho sirva para fomentar o pensamento (auto) crítico e a ação transformadora em todos aqueles que querem construir um novo sistema mundial onde se possa cumprir as promessas de liberdade, justiça e igualdade que o capitalismo promete, mas continuamente nos nega. Para esta análise, me basearei no materialismo histórico, o enfoque do sistema-mundo e o amor pela busca, impossível, mas necessária, de uma verdade que nos permita conviver a partir da dignidade insuperável que merecemos enquanto portadores conscientes de vida. Uma verdade aproximada que, ainda que precária e temporal como a ciência, é a única que nos pode servir de base para uma ética da convivência, que preserve a liberdade na diversidade e garanta nossa irredutível igualdade como seres humanos. No meio deste ambicioso caminho, ficou a humilde pesquisa que em breve poderá conhecer. Com honestidade e falibilidade, procurarei construir hipóteses a partir de dados objetivos, contrastáveis, que desenhem algum sentido em uma realidade que nos desborda. Mas, nestes dias em que necessitamos nos dirigir a algum lugar melhor, sem o risco de perecer ante a lógica capitalista que tende a subsumir o mundo sob a forma mercantil e a tratar-nos como tais (Marx), é necessário construir mapas alternativos. Em especial quando observamos que os velhos nos dirigem, uma e outra vez, ao mesmo lugar de onde surgem todos os problemas (e os preços). Mapas que nos ajudem a avançar desde o amor sincero pelo futuro, e o presente, de uma humanidade que não deve seguir tolerando que ninguém marque a fogo o seu valor, nem o tempo de sua vida ou destino.

1. Antecedentes

No dia 4 de fevereiro de 1992, Hugo Rafael Chávez Frías, tenente coronel do Exército de Paraquedistas Venezuelano, realizou uma tentativa de golpe de Estado motivado pela grave situação socioeconômica pela que atravessava o país. Os golpistas foram detidos e Chávez, antes de entregar-se, concordou com as autoridades em declarar diante dos meios de comunicação. Este minuto midiático foi um dos melhores investimentos na história política da era televisiva, pois Chávez se conectou diretamente com o coração de muitos deserdados do povo2. Tanto foi assim que, poucos dias depois, no carnaval deste ano, algumas crianças se fantasiaram do carismático e desconhecido militar que, surgindo do nada, nunca abandonaria o cenário cotidiano dos venezuelanos. Para alegria de uns e pesar de outros. Até este momento, a Venezuela era governada pela Ação Democrática (AD), com um Executivo salpicado de numerosos escândalos de corrupção que eram agravados diante do empobrecimento das classes populares venezuelanas, fruto da aplicação das políticas monetaristas e capitalistas do FMI. A Ação Democrática era um partido adscrito na Internacional Socialista, que, como todos os outros desta agrupação da socialdemocracia internacional, depois do fim da URSS3, passaram a governar seguindo as doutrinas neoliberais como mapa4. As diferenças entre a centro-esquerda e a centro-direita se dissiparam com a centralidade capitalista neoliberal. De fato, alguns deles já existiam desde os anos oitenta, com o triunfo de Reagan e Thatcher, praticando estas políticas que ajudaram a contrair o poder da classe operária e a exorbitar o poder da classe capitalista. O neoliberalismo foi uma atualização superestrutural na esfera política de uma realidade econômica que, na base do sistema-mundo capitalista, estava produzindo um abandono do modelo de acumulação keneysiano ou de “capitalismo imbricado”, em favor de um outro, de “acumulação flexível” (Harvey, 2007). O sistema capitalista decidiu relegar suas contradições ao futuro e, deste modo, começaram as políticas de financeirização da economia que prepararam novas e profundas crises que voltariam a colocar ao sistema-mundo, com o seu modo de produção capitalista, na tessitura de renovar-se ou morrer (2007/presente). Como apontaram Marx e Engels, o capitalismo é um sistema que continuamente requer revolucionar a sociedade para não perecer. Sua necessidade incessante de acumular valor mediante a apropriação da mais-valia produzida pela clase proletária internacional, na forma das mercadorias, resulta em que o capital necessite de novos mercados aos que subsumir5 à sua lógica. Por essa razão, o neoliberalismo busca novos mercados onde não opera a lógica do capital, como os serviços públicos, para que, uma vez privatizados, transformem os direitos dos cidadãos em mercadorias. Mercadorias como a saúde, que os povos deverão comprar se não querem morrer. Deste modo, o capital garante a continuidade da lógica de acumulação, arrastando a povos e países inteiros.

No entanto, o neoliberalismo golpeava a Venezuela desde antes de Chávez, pois três anos antes da sua tentativa de golpe de Estado, em fevereiro de 1989, ocorreu o chamado “Caracazo”, um conjunto de revoltas populares contra o encarecimento da vida provocado pela aplicação de um selvagem pacote de medidas neoliberais patrocinado pelo FMI e aplicados por Carlos Andrés Pérez. A situação se descontrolou e interveio a polícia e o exército venezuelano para esmagar aos revoltosos, deixando um saldo incerto de entre 300 e 3 000 mortos. Em novembro de 1992, o mesmo ano em que Chávez ascendeu para sempre à iconosfera venezuelana6, outro militar, Hernán Grüber, liderou uma nova tentativa de golpe fracassada. Grübern era militante, como Chávez, da organização cívico-militar Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200)7 Entre os revoltosos de novembro, alguns como Jesse Chacón acabariam exercendo importantes cargos nas filas chavistas, enquanto que outros, como o partido Bandera Roja, seriam opositores. Um ano depois das insurreições militares abortadas, Pérez foi, finalmente, destituído. Mas não por uns golpistas sedentos, e sim pelas próprias instituições jurídicas venezuelanas, que o processaram devido aos graves casos de corrupção. Posteriormente, o sucederam, em menos de um ano, dois presidentes interinos, até que em 1994 ganhou as eleições Rafael Caldera, sob as siglas de Convergência, apoiadas por vários partidos de esquerda, entre os que se encontrava o Partido Comunista da Venezuela (PCV). Caldera havia sido, durante muitos anos, o líder do centro-direitista e democrata-cristão COPEI8, um partido com um forte apoio da Igreja Católica, das classes dirigentes e, por suposto, dos Estados Unidos. Caldera abandonou o COPEI e fundou a Convergência porque perdeu as primárias do seu antigo partido para postular-se como candidato presidencial. Tudo isto lhe permitiu, com a inestimável ajuda de um oportunismo digno de análise, chegar a acordos eleitorais com partidos que haviam sido antagônicos ao seu projeto político até ontem mesmo. É interessante ressaltar que Caldera, justamente depois da tentativa de golpe de Estado de Chávez e de seus companheiros do MVR-200, havia pronunciado uma frase que se tornaria célebre entre o povo e os historiadores venezuelanos. Como pedido de desculpas, ou ao menos de entendimento, da tentativa de golpe, afirmou:

“É difícil pedir ao povo que se imole pela liberdade e pela democracia quando se pensa que a liberdade e a democracia não são capazes de lhe dar de comer”9.

O que Caldera chamava de “democracia” era, na realidade, capitalismo internacional e uma determinada forma histórica de Estado burguês, mas ele nem podia e nem devia se expressar nestes termos, pois seria como se o mágico nos explicasse de onde sai o coelho da cartola.

O governo Caldera foi logo se debilitando, devido a uma mistura de inflação galopante que sacudia o país e a constante perda de credibilidade do seu gabinete. Esta desconfiança popular aumentou depois que solicitou um empréstimo ao Fundo Monetário Internacional. Algo que o próprio Caldera, durante a campanha eleitoral, havia assegurado que não faria nunca. Além disso, o presidente abriu a PDVSA (a corporação estatal de petróleo venezuelana) a um processo de paulatina privatização (que não chegou a se materializar) até a vitória de Chávez e seu Polo Patriótico, nos comícios de 1998. Outro acontecimento importante que ocorreu durante o governo de Caldera foi que este garantiu à Chávez a absolvição da sua pena, devido às pressões que exerceram os partidos de esquerda que lhe davam estabilidade governamental, como foi o caso do MAS (Movimento Al Socialismo) e do anteriormente citado PCV.

Depois de dois anos na prisão, Hugo Chávez recuperou a liberdade e ainda que a princípio tenha mostrado interesse em sair como candidato presidencial, foi definitivamente convencido por Luis Miquilena (empresário, ex-comunista e proprietário do Diáro Clarín) e José Vicente Rangel (reconhecido jornalista e ex-candidato clássico da esquerda venezuelana10). Foi assim que, nas eleições de 1998, respaldado pela coalizão eleitoral Polo Patriótico (mescla de nacionalistas, socialdemocratas de esquerda e comunistas11), Hugo Chávez conseguiu 56,20 % dos votos frente ao seu rival direto, Henrique Salas Romer, que, com o Projeto Venezuela (centro-direita) conseguiu 39,97%. Desta maneira, os 56,20% de votos representavam a 33% do censo eleitoral, devido à alta abstenção. Ou seja, apesar da grande diferença com o seu principal concorrente, somente um de cada três venezuelanos com direito a voto elegeram a Chávez12. A partir desta data, devido à dialética, fruto do enfrentamento entre uma oposição de direita moribunda com uma ideologia elitista, classista e, inclusive racista, e umas classes populares em movimento que pouco a pouco foram instalando no poder a alguns dos seus membros, entramos na configuração do cenário básico dos anos seguintes. Cenário que, a modo de teatro político, seria articulado, não sem certo maniqueísmo e interesses pessoais de toda índole, pelo enfrentamento entre “chavistas/oficialistas” (todos aqueles partidos, agrupações e cidadãos a favor do governo de Chávez) e “esquálidos/ opositores” (todos aqueles contrários ao governo de Chávez). No final de 1998, a chamada “Revolução Bolivariana” conseguiria seu aceso ao poder do Estado com o apoio de uma parte importante do povo venezuelano.

2. O governo Bolivariano, a dialética do chavismo dentro e fora do Estado.

2.1 1998/2007 Enfrentamento in crescendo.

Em 1998, Hugo Chávez vence as eleições com um projeto de corte nacionalista, centro-esquerdista e anti-neoliberal que, apesar disso, fugia de se posicionar como de esquerda. As hemerotecas nos ajudam a recordar quando Chávez afirmava que “seu governo não era de esquerda e nem de direita”13, José María Aznar era “seu amigo”14 e mostrava simpatia ideológica pela terceira via de Tony Blair15. Inclusive declarava buscar um “capitalismo” “com rosto humano” para o seu país. Em 1999, se aprovaria a ainda vigente Constituição da “República Bolivariana da Venezuela”16, com o respaldo de impressionantes 71,2% dos votos, que não resultaria tão impressionante se entendemos que não chegavam nem à metade da população com direito eleitoral (45,9%) (CIDOB), mas que acaba sendo notável se entendemos a usual baixa participação do povo venezuelano, devido ao descrédito do sistema de partidos imperante na IV República. A constituição de 1961, própria dos anos do punto-fijismo e da velha República, seria substituída por una nova constituição de corte progressista nas liberdades civis e nos direitos sociais, enquanto que se mostrava protecionista e intervencionista no âmbito econômico. A nova Carta Magna manteve o apoio das forças do Polo Patriótico e coagulou a ilusão no projeto bolivariano encabeçado por Hugo Chávez. A Constituição também dava um poder superior ao Presidente da República e estendia prazo de convocatórias eleitorais presidenciais de cinco para seis anos.

Em 2002, o governo de Chávez sofreu um golpe de Estado que durou três dias, até que uma mescla entre as pressões populares e uma parte do exército o reconduziram ao poder. O golpe de Estado foi apoiado pela direita clássica: militares, a cúpula empresarial venezuelana e os seus meios de comunicação, a elite da Igreja católica e, ao que tudo indica, pelos Estados Unidos, com outros grupos de capitalistas forâneos com seus governos títeres, como pareceu ser o caso do espanhol José María Aznar, outrora aliado de Chávez. A ofensiva da direita continuou, apesar do retorno de Chávez. No final do mesmo ano, ocorreu uma greve petroleira por parte dos mesmos setores, em 2004 o referendo revocatório (que Chávez venceu) e, em 2006, no zênite da pressão internacional e da demonização do governo bolivariano em toda a imprensa burguesa mundial, Chávez voltou a vencer as eleições presidenciais com seu recorde eleitoral até agora (62,84%). Esta ascensão entre enfrentamentos com as elites e o aumento eleitoral terminaria por ser freada com a perda do Referendo Constitucional, em dezembro de 2007.

2.2 2007/2012 Consenso in crescendo.

A partir da derrota no Referendo Constitucional por uma pequena margem (51,01%), o governo venezuelano fez uma série de gestos favoráveis à burguesia (nacional e internacional) para distender as relações, que chegavam a um ponto de enfrentamento considerável. O referendo citado tentava reformar a Carta Magna de 1999 com novos artigos mais socializantes, que abriam a possibilidade de um controle maior por parte do Estado em setores estratégicos da economia, com o qual não estavam de acordo setores da direita do próprio governo. A Reforma continha algumas importantes características: redução da jornada laboral para 6 horas, a inclusão de novas formas jurídicas de propriedade socialista, a institucionalização das Missões Bolivarianas17, um maior poder popular em detrimento dos governos estaduais e prefeituras, a proibição do latifúndio, uma maior carga ecológica, etc. Era uma virada à esquerda não exento de contradições18. A partir da entrevista concedida em 2008, com o Presidente da República de Bielorrússia, Chávez entendeu que o socialismo não deveria ser necessariamente antiempresarial e nele poderia caber os empresários “patriotas”. Isto foi aproveitado pelo setor direitista do governo para cercar o círculo de confiança do presidente Chávez e dar uma explicação derrotista à perda do referendo, no sentido de que o povo não se encontrava preparado para “tanto socialismo”. Personagens de corte socialdemocrata de direita e centro nas esferas de poder “bolivariano”, como Diosdado Cabello, Jorge Rodríguez ou Andrés Izarra, viram fortalecidas suas concepções.

2.3 Relações exteriores

O enfoque do sistema-mundo nos ensina a entender que o que passa em qualquer país do sistema não envolve fundamentalmente as forças que operam neste território, mas sim na arena internacional. Chávez e o chavismo, com sua mescla polimorfa de sensibilidades políticas, em todo caso de preeminência burguesa, mas mais nacionalista e à esquerda que a candidatura presidencialista de Capriles, em 2012, em representação da MUD (Mesa de Unidade Democrática, mais tarde conhecida como “Unidade Venezuela”), tem seu sustento na arena internacional no bloco liderado pela aspirante a potência hegemônica internacional, China. Enquanto que a MUD, uma coalizão ainda mais polimorfa de partidos onde a hegemonia se situa na centro-direita, tem seu sustento internacional no bloco liderado pelos Estados Unidos. Neste clássico eixo estadunidense teríamos os seguintes países e organizações regionais do sistema mundial: Estados Unidos, a União Europeia, Índia, Japão, Austrália e Coreia do Sul. Na América Central e América do Sul, destacam-se México e Colômbia. Por outro lado, no eixo postulante liderado pela China, teríamos a: China, Rússia, Bielorrússia, Brasil, Argentina, Irã e Coreia do Norte. Em particular Rússia e China são muito importantes para o governo chavista, pois a primeira fornece material bélico19 e a segunda contribui com financiamentos e investimentos diretos no território venezuelano (além de participar na formação de quadros do PSUV20). Neste sentido, as mudanças ideológicas que produziram o “socialismo de mercado”, inaugurado por Deng Xiaoping em 1978 no gigante asiático, também tiveram sua influência em considerável número de dirigentes do Partido Comunista de Cuba, país que atua como um grande referencial e exemplo de dignidade e independência histórica diante dos Estados Unidos. Por tanto, no lugar de introduzir melhoras na democracia de base ou de deixar de utilizar a lei do valor para sair da lógica capitalista21, parte da direção cubana aspira a introduzir reformas pro capitalistas no mercado, sem perder a hegemonia do Partido na sociedade. Neste sentido, é curioso fixar-nos no terceiro partido (por apoio eleitoral) da coalizão chavista, o Movimento Revolucionário Tupamaro (o TUPAMARO)22. Composto por autênticos militantes com uma direção formada ao calor da guerrilha urbana e com uma alta formação marxista-leninista é um partido que tem como uma das suas máximas influências o pensamento de Mao Zedong23, que está em franca desvalorização entre a maioria dos dirigentes do PCC24.

O chavismo, na comarca latino-americana (como diria Galeano) teve maioritariamente um componente progressista, enquanto tentaram unir aos países latino-americanos, anteriormente fragmentados quando não enfrentados pelo predomínio da política do quintal, patrocinada pelos Estados Unidos. Cabe mencionar as iniciativas da ALBA, Petrocaribe ou Telesur. A Venezuela esteve a favor de reconhecer as guerrilhas colombianas como grupos guerrilheiros e não terroristas, ainda que também tenha entregado à Colômbia vários membros das FARC. No eixo latino-americano seus aliados mais firmes tem sido a Bolívia de Evo Morales, Cuba de Fidel e Raúl Castro, o Equador de Rafael Correa e a Nicarágua do veterano Daniel Ortega. Em menor medida, mas muito mais importante por seus pesos específicos, o chavismo tem conseguido o apoio, ou ao menos a compreensão, da Argentina e do Brasil, com os Kirchner e os governos de Lula e Dilma, respectivamente. Também no Uruguai, onde o Frente Amplio e, em especial, o atual presidente do país, “Pepe” Mujica, mantém uma boa relação com o Executivo bolivariano. De fato, o apoio uruguaio foi essencial para a incorporação da Venezuela como membro de pleno direito ao Mercosul, em 31 de julho de 2012.

No Oriente Próximo e no mundo árabe, a Venezuela tem jogado um papel dual, posicionando-se claramente a favor da Palestina, diante do sionismo israelense, mas mantém também posições muito polêmicas, como seu apoio acrítico à Líbia de Gadafi e à Síria de Bashar al-Assad. Parece que, em geral, tem prevalecido um interesse geoestratégico para com um eixo ideológico nas suas relações com os líderes dos diferentes países do mundo. Exemplo disso foi sua reconciliação midiática (não na Venezuela) com o rei Juan Carlos, da Espanha, depois do seu desencontro com o monarca na Cúpula Ibero-americana de 200725.

Estamos vivendo um novo período que chamei de Nova Ordem Multipolar Transitória (NOMT) (Illescas), fruto do fim da URSS e da hegemonia unipolar estadunidense. Nesta nova fase histórica do sistema-mundo, será importante saber com que bloco se posicionará a Venezuela, em caso de desatar-se um novo conflito internacional. A competição intercapitalista dos dois blocos anteriormente expostos (estadunidense ou chinês) pode levar-nos a uma nova Guerra Mundial, como ocorreu na Grande Guerra, por motivos semelhantes (Lenin). A Venezuela tem uma das reservas mais importantes de petróleo e será fundamental tanto para um cenário bélico como para um pós-bélico. Uma vez passado o período NOMT, poderemos viver um renovado período capitalista, com nova potência hegemônica (Arrighi, 2007) e novos modelos de acumulação de capital (Fontes, 2010) ou, pelo contrário, mudar para um sistema-mundo não capitalista, que bem poderia ser ou socialista, se as forças populares são predominantes, ou pior que o capitalista, se as elites lograrem impor sua hegemonia e se o modo de produção capitalista já não for viável para os seus interesses (Wallerstein, 2005). Outros autores, como Minqi Li apontam que a ascensão da China e da Índia levarão as contradições do sistema-mundo capitalista ao seu nível máximo, gerando fome crônica e acelerando a mudança climática, que provocará que diversas partes do mundo sejam submergidas pelo mar, provocando, por sua vez, massivas migrações. Li propõe como única saída a conformação de um sistema-mundo socialista que afronte estas catástrofes que ocorreriam, segundo seu critério, a meados deste século XXI (Li, 2008). Se o fim do capitalismo não coincide com o fim da espécie, talvez sim possa cumprir-se a teleologia marxista e, depois de séculos de capitalismo, chegue irreversivelmente um tipo de socialismo mundial (Marx e Engels, 1999), que, esperamos, inclua aprender com os erros do “socialismo realmente existente” na URSS e seus satélites, pelo bem da humanidade (Buzgalín, 2004).

3. Chavismo como ideologia: entre o projeto popular e o populismo.

Se atendermos à acepção majoritariamente descritiva do conceito de “ideologia” sustentada por Lenin, Gramsci ou Eagleton26 (mas também por Marx e Engels), e não à contraditória, que émajoritariamente pejorativa, exposta por Marx e Engels em “A ideologia alemã” (1846), enquanto à “falsa consciência”, poderíamos dizer que o significado da etiqueta “chavismo” tem oscilado segundo as conjunturas e os anos que Chávez leva no poder. Mas, dizendo isto, não acrescentaríamos nada de novo ao leitor, pois o mesmo tem ocorrido com outros termos políticos, como “progressista”, “revolucionário” ou “internacionalista”, que foram modificando seu conteúdo, enquanto o continente permanecia navegando pelas tumultuosas águas da história contemporânea. O que sim é certo é que, neste tempo de média duração, que vai desde que Chávez ganhou suas primeiras eleições até os dias em que escrevo estas linhas (1998/ fins de 2012), o “chavismo” tem mantido certas constantes que caberia enumerar:

Um esquerdismo nacionalista amplo que busca oferecer serviços públicos de qualidade, que compreendem educação, saúde e direitos sociais, às maiorias venezuelanas.

Um latino-americanismo sincero que compreende todos os países ao sul dos Estados Unidos, incluídos México e o Caribe. Ou seja, toda aquela região conhecida pela Doutrina Monroe como o “quintal” dos Estados Unidos. Seu projeto internacional se baseia na doutrina de Bolívar e também recolhe referentes como o revolucionário e poeta cubano José Martí ou o guerrilheiro marxista Ernesto Che Guevara.

Um nacionalismo militante, digno, contra o imperialismo dos Estados Unidos, às vezes estridente na propaganda, em alguns momentos quase caindo no ridículo e, em outros, recordando o chauvinismo rançoso de atores tão dissimulados como os Estados Unidos ou a Coreia do Norte27.

Um amor a prova de bombas por Hugo Chávez, que vai desde o sincero reconhecimento das suas qualidades como estadista e “revolucionário” até o fanatismo próprio dos fenômenos de fãs da indústria cultural ou as teologias mais exaltadas das religiões monoteístas.

Ser um aglutinante para englobar a uma mescla difícil de partidários que inclui famílias que, de outro modo, poderiam ter uma convivência muito complicada entre cristãos progressistas, muçulmanos, marxistas-leninistas, socialdemocratas nacionalistas, trotskistas, filo maoístas e nacionalistas de toda índole.

Não é que Chávez realmente tenha tanto poder teórico (tem, sim, de convicção) como para estabelecer uma ideologia coerente e orgânica seguida por todos os seus partidários, é que seus partidários não têm um plano melhor que os unifique. Chávez e o chavismo são uma necessidade marcada pela impotência dos nacionalistas, dos socialdemocratas e dos comunistas de quase todo signo de lançar seu próprio programa com o apoio do povo. A rebufo da velocidade que lhes proporciona a vela do chavismo, ao menos navegam. Os mais formados politicamente, como o PCV ou os Tupamaros, guardam esperanças de ir cultivando as consciências do povo chavista para fazê-los superar este estado que tem muito a ver com o mito infantil do super-herói, onde o povo delega responsabilidades ao líder/herói para que lhe salvem a papeleta28. E estes grupos esperam consegui-lo como a velha toupeira, escapando dos fortes ventos da superfície, que provém da hegemonia capitalista imperante no sistema-mundo e em setores do próprio governo chavista.

Notas

Jon E. Illescas Martínez, também conhecido com o seudônimo de Jon Juanma, é doutorando naUniversidad de Alicante e na Universidad Complutense de Madrid. Atualmente está desenvolvendosua tese doutoral sobre a geopolítica das indústrias culturais hegemônicas no sistema-mundo, coma ajuda da Fundação CajaMurcia (BMN). Recentemente publicou seu livro “Nepal, a revoluçãodesconhecida. Crise permanente na terra de Buda”. Seu email é jonjuanma@gmail.com . O presente artículo foi finalizado em 21 de dezembro de 2012.

Para entender a conexão que se estabeleceu entre Chávez e o povo venezuelano, ler a análise de: Guédez, Martín: A la luz del 4 de febrero de 1992. Aporrea, 4 de fevereiro de 2008:http://www.youtube.com/watch?v=KnSbHh4s9HU

Em 25 de dezembro de 1991, as autoridades soviéticas decidiram pela dissolução da URSS, apesar a do referendo de 17 de março, quando o povo votou maioritariamente (77,8%) a favor da sua manutenção.

Os partidos socialdemocratas se desviaram de suas típicas receitas keneysianas do pós- II Guerra Mundial após o triunfo do neoliberalismo como doutrina econômica hegemônica desde os anos oitenta do século passado em grandes zonas do sistema-mundo, em especial em vários dos países centrais (deste momento) como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e outros importantes da semiperiferia, como Índia, China, Brasil ou Argentina.

Fagocitar, incluir em um conjunto mais amplo com sua própria lógica e leis.

Para os semiólogos, a iconosfera é toda aquela parte da biosfera onde habita o homem, toda aquela área onde o ser humano deixa sua impressão cultural (sinais, imagens, etc.).

O movimento, de carácter cívico-militar, que substituía o movimento clandestino exclusivamente militar chamado Exército Bolivariano Revolucionário 200, o qual devia seu nome ao fato de que foi fundado em 1977, justo 200 anos depois do nascimento de Simón Bolívar. Desta forma, o MBR-200 foi a continuação do EBR-200,desde a sua refundação por Hugo Chávez, em 1982.

Comitê de Organização Política Eleitoral Independente.

Pode-se ver em vídeo no seguinte link: http://www.youtube.com/watch?v=ipS0xZQfyk8(2012/12/06) ou consultar seu discurso completo em:http://www.analitica.com/bitblioteca/caldera/4f.asp (2012/12/06).

Na década dos anos setenta e início dos anos oitenta, apresentou-se como candidato da esquerda ampla venezuelana, mas, a partir destas datas, trabalhou como jornalista em diferentes programas até se transformar em um popular apresentador/entrevistador da televisão venezuelana.

A coalizão estava formada, de maior a menor importância eleitoral, pelo partido de Chávez, o Movimento V República (mutação do movimento cívico-militar MBR-200 à arena política), o PCV (mescla de comunistas marxistas-leninistas e eurocomunistas), o MAS (eurocomunistas dissidentes do PCV) e o PPT (Pátria Para Todos, socialdemocratas clássicos, humanistas e progressistas das mais variadas tendências).

Isto, por suposto, também ocorre em muitos países do centro do sistema capitalista, com altas abstenções.

Marcano, Cristina: “El enigma de Chávez”. Letras libres, janeiro de 1999:http://www.letraslibres.com/revista/arena-internacional/el-enigma-de-hugo-chavez(2012/12/15).

Posteriormente, chamaria em reiteradas ocasiões de “fascista” ao ex-presidente espanhol, do Partido Popular (direita). Mas isso seria depois da sua “conversão” ao socialismo, em 2004/2005. Anteriormente, ambos tiveram uma boa relação, de fato Aznar apoiou o processo de mudanças iniciado por Chávez com a Reforma Constitucional de 1999. Para ver suas declarações a favor do “capitalismo de rosto humano”, ver: El País, 5 de dezembro de 1998:http://elpais.com/diario/1998/12/05/internacional/912812408_850215.html (2012/12/14).

A Terceira Via foi um projeto da ala direita dos partidos socialdemocratas europeus para “centralizar” seu ideário político em tempos de hegemonia neoliberal. Um exemplo paradigmático ocorreu no Reino Unido, onde no Partido Laborista, o setor direitista, a raiz das teorias do sociólogo Anthony Giddens, “centralizou” seu projeto político depois do furação neoliberal que, durante toda a década dos anos oitenta, significou o executivo de Margaret Thatcher (1979/1990). A Terceira Via não era contrária a certas privatizações, sempre que o mercado estivesse “bem regulado”. Na Alemanha, sua cara mais conhecida foi o caso de Schröder e, na Espanha, Felipe González ou Rodríguez Zapatero.

Daí por diante, o país seria conhecido nas instituições internacionais com esse nome oficial, em homenagem a Simón Bolívar, enquanto que à bandeira se incluiria uma estrela.

Instituições de carácter transitório, que buscam dar educação e saúde públicas para os empobrecidos, superando as instituições herdadas da IV República, onde as resistências haviam sido maiores. Destacam a Missão Barrio Adentro (saúde), Mercal (alimentação subsidiada), Sucre (estudos universitários) e Vivienda Venezuela (construção de moradias) entre muitas outras.

Illescas Martínez, Jon E. (Jon Juanma): “Si fuera venezolano votaría sí”. Rebelión, 2 de dezembro de 2007: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=59928

Ainda que também o façam outros países não tão amigos de cara à galeria, como Espanha, país que desde 2004 a 2010 vendeu a Chávez armas pelo valor de 28 milhões de euros. Com a mudança no Executivo, em 2011, a situação não se reverteu e o Ministro de Defesa do direitista Partido Popular apelidou a Chávez, depois das suas escaramuças com o rei Juan Carlos I, em 2007, de “grande amigo”. Talvez porque enquanto pronunciava estas palavras, em Caracas, uma delegação da empresa pública Navantia estava negociando a venda de novos produtos bélicos ao governo bolivariano, aos quais se iriam somar aos oito navios de guerra acordados em 2005 (com o Executivo do PSOE). Ver en:http://elcomercio.pe/actualidad/1443334/noticia-espana-elogia-chavez-negocia-venta-material-militar-venezuela (2012/12/09).

A princípios de fevereiro de 2009, a China e a Venezuela chegaram a diversos acordos multilaterais, assinados pelo vice-presidente chinês Xi Jinping, entre os quais se encontrava a formação de quadros do PSUV: El Universal, 18 de fevereiro de 2009:http://www.eluniversal.com/2009/02/18/pol_art_china-ayudara-a-form_1273106.shtml (2012/12/09)

Como propunha o Che e, em certa medida, Ernst Mandel a princípios da Revolução Cubana.

Partido marxista-leninista de influência maoísta, atualmente legal. Antes do chavismo, combatia ilegalmente contra os funcionários corruptos, os agentes da CIA e os narcotraficantes que incomodavam a população dos bairros empobrecidos, como a Parroquia del 23 de Enero, no município Libertador (próximo a Caracas).

Junto a Marx, Engels, Lenin e o Che, entre outros, sem esquecer referencias à figura histórica de Jesus de Nazaret.

Principalmente entre as massas trabalhadoras e camponesas chinesas, que tem sido as grandes sacrificadas pelo crescimento da classe media e os magnates chineses.

O famoso “Por que você não se cala?” dito pelo rei Juan Carlos I a Chávez, quando este discutia com Zapatero.

Para estes autores, todos teriam uma ideologia, isto é, alguns determinados posicionamentos políticos que estariam integrados em nossa concepção do mundo. No sistema capitalista pode existir uma ideologia burguesa (pró-capitalista) e outra proletária (pró-socialista), com independência da classe social à que pertença o indivíduo (existem muitos trabalhadores pró-capitalistas). Por suposto, também há distintas ideologias de grupos particulares, como o feminismo, o ecologismo, etc. A todas estas, haveríamos que acrescentar as religiões (e suas diferentes teologias), que teriam elementos em sua cosmovisão tendentes a projetar-se no cenário político.

O nacionalismo é como um resfriado, as vezes ter-se um pouco pode ser bom para expulsar os vírus externos que atacam ao corpo (imperialismo cultural), mas se nos descuidamos e o deixamos crescer, pode chegar a ser perigoso, e, beirando ao absurdo pode transformar-se em uma paranoia mitomaníaca que facilmente pode desembocar em um chauvinismo e em um racismo que fazer crer a quem o padece que seu povo é único no mundo. E daí a vê-lo superior, só é preciso um passo. As indústrias capitalistas do esporte se nutrem este sentimento e o potenciam.

Ler a excelente novela-cómic de Julio Cortázar, “Fantomas contra los vampiros multinacionales”.


Página de abertura do sítio | Contacto | Planta do sítio | Espaço privado | Estatísticas de visitas | visitas : 4134192

Acompanhar a vida do sítio pt  Acompanhar a vida do sítio Territórios  Acompanhar a vida do sítio América Latina   ?

Sítio realizado com SPIP 1.9.2p + ALTERNATIVES

Creative Commons License