CEPRID

Consequências da libertação de Alepo

segunda-feira 24 de Abril de 2017 por CEPRID

Alberto Cruz*

Com todas estas movimentações há um país que, na prática, desaparece do Médio Oriente: os EUA. E este desaparecimento tem um actor que o tornou possível: a Rússia.

A vitória do governo sírio sobre o conglomerado de forças islâmicas que controlavam os bairros orientais de Alepo – a partir de agora «os contras?» [1] - traz consigo uma reconfiguração não apenas do mapa político interno da Síria, mas também do Médio Oriente e mesmo mais. Não só porque esta vitória marca um antes e um depois da guerra, mas porque coloca claramente em cima da mesa três elementos dificilmente questionáveis: a) Bashar Al-Assad está de pedra e cal; b) A Rússia tem todas as cartas na mão; c) Os EUA deixam de ser o actor principal numa zona que até há muito pouco era do seu domínio exclusivo.

1. Antecedentes

Sem remontar aos seis anos de guerra e aos quatro que a cidade de Alepo já tinha de dividida em três sectores, um pró-governamental, outro curdo e outro em poder dos «contras», há que partir de um facto crucial que pôs em movimento toda a engrenagem da situação que agora se vive no país e na região. Foi quando, em 27 de Julho passado, depois de uma vitoriosa, mas não falada ofensiva do exército sírio e dos seus aliados lançada na zona norte da cidade, as forças governamentais conseguiram cortar todas as linhas de abastecimento de armas e combatentes à zona da cidade dominada pelos «contras». Alepo ficou cercada, com os «contras» cercados por forças governamentais e curdas, que cooperaram tacticamente com o governo, facilitando assim o seu triunfo.

Isto verificou-se dez dias apenas depois do golpe militar falhado na Turquia e relevou o que até então só se podia intuir. A Turquia, ao restabelecer relações políticas com a Rússia, depois do golpe falhado – é cada vez mais claro que o mesmo só pôde ser derrotado pela informação que a inteligência russa proporcionou ao governo de Erdogan –, tinha deixado de considerar, como sempre tinha dito, Alepo como a sua «linha vermelha» e a sua «zona de influência». Porque, ao mesmo tempo, a Turquia fez dois movimentos inusitados: tirou os seus militares de uma das zonas operacionais que os países que alimentam e sustentam os «contras» têm na Jordânia e controlou com mais rigor a passagem das suas fronteiras por homens e abastecimentos destinados aos «contras» na zona de Idlib, chegando à posição extrema de fechar qualquer passagem fronteiriça, tal como lhe tinha sido solicitado pela Rússia.

Sendo a ofensiva do governo sírio limitada a uma zona muito concreta, mas de grande importância estratégica, a posição turca de não intervir e nem sequer protestar foi considerada como um movimento tectónico que ia influenciar, como influenciou, não só os «contras», mas o futuro da guerra. Os restantes patrocinadores dos «contras» rapidamente se deram conta do que tudo isto implicava e, a partir das suas salas de operações, planearam um contra-ataque que recuperasse o statu quo anterior. Para isso foi escolhida outra zona da cidade, o sul, onde se supunha que havia menos forças governamentais. Quatro dias mais tarde, a 1 de agosto, lançou-se a ofensiva encabeçada pela isenta de pagamento de franchising à Al-Qaeda, a Frente para a Conquista do Levante – que tinha perdido o seu anterior nome, Frente Al-Nusra –, e a quem todos os anteriores grupos se subordinaram (um total de 15 desses grupos participou dessa ofensiva). O objectivo proclamado era o de romper o cerco de Alepo, mas na prática, o que se pretendia era duplo: por um lado fazer frente à Turquia, por outro demonstrar aos seus patrocinadores que a Frente estava viva e podia executar operações militares de envergadura. Além do mais, aquela ofensiva teve lugar no momento em que se ia realizar a reunião entre Erdogan e Putin, em Moscovo. Foi em 19 de agosto, e o objectivo geoestratégico da ofensiva era claro: meter a Turquia na ordem, obrigando-a a «normalizar» a sua atitude, isto é, voltar a ser o crivo passador dos «contras» e dobrar a Rússia. No caso de não atingir o objectivo a situação tornar-se-ia irreversível para os «contras» e os seus patrocinadores árabes e ocidentais.

Nessa ofensiva, os «contras» utilizaram praticamente tudo o que tinham, além dos seus melhores membros. A partir dos seus próprios portais na net anunciaram que, no total, se tinham mobilizado entre 9.000 e 12.000 combatentes e, pela forma como a batalha se desenrolou deve ter sido verdade. Ainda que, inicialmente, conseguissem romper o cerco, a perda de combatentes e material foi tão volumosa que não foi possível a sua reposição. Os cálculos mais conservadores estimam que os «contras» perderam entre um mínimo de 1.499 e um máximo de 1.903 mortos e cerca de 5.000 feridos. Isto é, o número total de baixas nessa ofensiva rondou os 60% dos combatentes. Por outro lado, o governo sírio e os seus aliados tiveram entre 480 e 516 mortos, enquanto o número de feridos terá superado os mil [2]. Os próprios «contras» anunciaram nos seus portais que tinham escassez de sangue para efectuar as transfusões necessárias devido ao alto número de feridos. Porém, este êxito não durou nem um mês, visto que em 4 de Setembro o governo sírio restabeleceu a situação e apertou ainda mais o cerco aos bairros orientais de Alepo em poder dos «contras».

O golpe não foi apenas material, foi também moral. Os «contras» entraram irreversivelmente em coma. Nem sequer os novos fornecimentos de material, que tanto a Arábia saudita como o Catar anunciaram, os salvaram da derrota. A Turquia retirou-se de cena e centrou-se exclusivamente nos curdos, ao mesmo tempo que aceitava o papel que de forma inteligente a Rússia punha na mesa: o pragmatismo sunita. A Rússia apoia a constituição de Ancara como o grande centro do mundo sunita afastado da hegemonia estado-unidense e das monarquias do Golfo Pérsico, especialmente do wahabismo da Arábia Saudita.

2. Consuma-se a derrota, e não apenas dos «contras»

As coisas chegaram a um ponto tal que ficou claro para quase todo o mundo o que se estava a passar. O governo sírio estava a ganhar a guerra graças à ajuda da Rússia (e do Irão) e os «contras» não tinham já a menor possibilidade de reverter a situação.

O Conselho do Atlântico [3], um centro de análise que fornece a ideologia à NATO no campo das relações internacionais, reconhecia que o mundo tinha dado uma volta inesperada, e que era a Rússia quem tinha quase todos os trunfos na mão. Num relatório do seu programa Syria Project dizia: «a Rússia ocupa agora uma posição forte e colocou os rebeldes numa situação extremamente difícil».

Apesar disto, ainda restava uma última possibilidade: que nas eleições presidenciais norte-americanas ganhasse Hillary Clinton, furibunda partidária do derrube de Al-Assad da presidência da Síria. No entanto, em 1 de Novembro os «contras» fizeram um último esforço para evitar o que já então parecia inevitável: a derrota.

Então, nem sequer houve um triunfo fugaz. Novos golpes, novas derrotas e a debacle. Entre outras coisas porque nessa ocasião os «contras» só puderam dispor de uns 3.000 combatentes devido às perdas sofridas na ofensiva anterior.

Para rematar o bouquet, Hillary Clinton perdeu as eleições. Trump, o novo presidente, tinha dito claramente que a política externa dos EUA ia mudar e que já não se centraria no derrube de governos considerados hostis. A sorte dos «contras» estava traçada.

Com uma clareza que não é habitual, o Conselho Europeu do Assuntos Exteriores [4] dizia, preto no branco, o quem quer que tenha olhos pode ver e o quem quer que não tenha perdido a sua capacidade de pensar pode deduzir: «já não há qualquer esperança real de depor Assad». E propunha uma mudança da abordagem europeia à questão da Síria partindo desta nova realidade: «com as forças da oposição síria, os seus patrocinadores regionais e grande parte da comunidade política europeia pondo as suas esperanças na vitória de Hillary Clinton, uma vez conhecidos os resultados eleitorais a abordagem europeia deve necessariamente mudar para uma melhor gestão da realidade da sobrevivência de Assad».

Toda a gente estava em estado de choque, incluindo os «contras». Foi esse o momento que o exército sírio aproveitou para, juntamente com os seus aliados – principalmente os palestinos que integram a «Brigada Jerusalém» [5] –, iniciarem a batalha final pela libertação de Alepo. Os bairros orientais em poder dos «contras» iam sendo libertados com rapidez, um após outro, numa demonstração de descoordenação dos «contras» que surpreendeu até os seus patrocinadores.

Depois dos fracassos das duas ofensivas anteriores, a única coisa com que os «contras» ficavam era a guerra da propaganda. Primeiro foi dito que se constituía o «Exército de Alepo para lutar contra o regime», depois, que a resistência não tinha sido possível porque Alepo tinha sido destruída pelos bombardeamentos russo. Depois…

A realidade era o que diziam os meios de comunicação dos países que estiveram, e ainda estão a apoiar os «contras»: «Para muitos organismos regionais e internacionais é um mistério incompreensível [o derrube dos «contras» como um castelo de cartas em Alepo], porque se esperava uma luta dura e digna, dada a importância estratégica da cidade». Um mistério que era muito fácil de explicar, como também se dizia: «as divergências entre os diferentes grupos, as acusações entre eles sobre quem é o responsável pelo desastre e como a inteligência militar [do governo] tem olhos, agentes e espias em todas as estruturas militares, de segurança e económicas dos grupos armados, o que permitiu ir acumulando imagens, informação e coordenadas de contra o quê, contra quem e onde agir». Inclusive, ia-se mais longe, deixando à vista outra das grandes mentiras da propaganda: «uma boa parte da própria população [dos bairros em poder dos «contras»] estava a proporcionar informação ao exército sírio [6].

Esta afirmação não de todo surpreendente se se tiver em conta o que disse a ONU depois de a Síria ter retomado o controlo completo da cidade. Suponho que não é preciso recordar que durante meses se massacrou insistentemente que a população «cercada» em Alepo ultrapassava as 250.000 pessoas. Inclusive chegou a dizer-se que nesses bairros morava meio milhão de pessoas. Nada mais longe da realidade, pois quando se deu a libertação da cidade verificou-se que esses números não eram verdadeiros. Segundo a ONU havia um total de 147.000 civis, 111.000 decidiram mudar-se para as zonas que eram controladas pelo governo e 36.000 para a zona que os «contras» controlam, a província de Idlib [7], quando se chegou a acordo para a sua evacuação.

Como consequência da derrota de Alepo, os «contras» estão na fase terminal da sua crise. Cada vez que se negoceia uma rendição com o governo, ela é feita nas condições determinadas pelo governo, e desde há algum tempo que as condições são sempre as mesmas: entrega do armamento pesado e transferência para Idlib. É uma província quase totalmente em poder dos «contras». Mas o governo está a actuar de forma inteligente, visto que ao transferir para ali todos os grupos dos diferentes grupos dos «contras» está a acentuar os confrontos e as divisões internas, debilitando assim qualquer hipotética estratégia, não apenas de combate mas também de coordenação política.

3. As navalhadas dos «contras» no governo

Um dos mantras propagandísticos dos que apoiam os «contras» é que há um segmento da população que não se revê nem nos radicais islâmicos nem no governo e que em várias ocasiões em que se decretaram tréguas houve manifestações populares de rejeição de uns e de outros. É uma meia verdade, mais mentira que verdade. É certo que em algumas cidades, que quase se podem contar pelos dedos de uma só mão, se verificaram manifestações desse tipo, mas isso é uma velha estória. A verdade é que os radicais islâmicos controlavam esses protestos desde o primeiro momento e que actualmente o controlo dos radicais islâmicos é total, incluindo a forma de governo do território que controlam, cada vez mais pequeno.

Como o maior território é a província de Idlib, para onde o governo os conduz cada vez que se rendem em alguma zona e recusam integrar-se na vida civil (na sua grande maioria são amnistiados, dando-se até o caso de em algumas cidades fazerem funções quase de polícia), há que falar da forma de alguns dos seus métodos de «governo». E nada melhor para isso que tomar como referência, uma vez mais, o Conselho do Atlântico [8].

Esta instituição fala concretamente do sistema judicial existente em Idlib e diz que «é semelhante à lei da selva», porque aplicando a Sharia e a Itijab elimina-se os inimigos internos e reforça-se o controlo de uns grupos pelos outros. Acrescente-se que cada grupo tem o seu próprio sistema judicial, que os predominantes são os ex-Nusra e Ahar al-Sham, e que as sentenças têm, inevitavelmente, que ver com o grau de afinidade ou parentesco das pessoas julgadas. «As pessoas influentes minam os seus veredictos» e estes tribunais «encontram sempre um qualquer pretexto legal para os seus actos ilegais. Diga-se que há que ter em conta que as decisões “são sempre favoráveis aos «contras» ”, que «as circunstâncias legais não mudaram desde que se instalou este regime» (em Idlib), e que também se afirma que «os líderes militares interferem directamente nos casos, de acordo com os seus interesses e objectivos», que «todos os juízes são pró-salafitas» e que «se acusam mutuamente de terem erros na doutrina e na aplicação da lei». Para não tornar a referência mais extensa, acrescentar apenas que «estes tribunais funcionam como organismos de segurança [das diferentes organizações] que aterrorizam os residentes locais porque têm liberdade total de deter, sequestrar ou inclusive assassinar as pessoas nas zonas em que são responsáveis». A citação é extensa, mas vale a pena porque põe em evidência uma realidade que muito poucas pessoas têm querido ver e que, com toda a crueza, reconhece também que uma outra seita antes muito prestigiada caiu agora numa paralisia sectária, a Al-Quds Al Arabi. Numa pouco usual mostra de reconhecimento dessa realidade, critica uma «oposição que há uns anos tinha o controlo das principais cidades da Síria e que está reduzida a umas poucas zonas sem relevância estratégica», entre outras coisas «porque não foi capaz de demonstrar que pode governar com eficácia os territórios que ocupa» e isso, logicamente, «foi rentabilizado pelo regime» [9].

Depois da derrota de Alepo todos os grupos que compõem os «contras» estão em luta entre si. Os assassínios de comandantes de este ou daquele grupo são habituais (sem esquecer a responsabilidade dos comandos especiais do exército sírio em alguns deles), e o desânimo espalha-se como nódoa de azeite entre os «contras». A estratégia do governo sírio está a dar frutos pois as divisões estão a acentuar-se. O facto de grupos diferentes terem de conviver numa zona limitada e, sobretudo de diferentes lealdades, está a mostrar-se um eficaz caldo de cultura. As suas divisões internas e a sua debilidade – juntamente com a pressão da Turquia – obrigaram já seis dos grupos que compõem os «contras» a aceitar o cessar de hostilidades proposto pela Rússia e pela Turquia [10].

4. A recomposição do Médio Oriente

Os EUA e a União Europeia nunca se arrependerão o suficiente pelo seu papel no golpe-de-estado falhado na Turquia. Se a implicação do primeiro parece clara, a inacção da segunda foi clamorosa. Isso enfureceu Erdogan e facilitou a movimentação da Rússia. A reconciliação da Turquia com a Rússia incluiu, entre outras coisas, a retoma o gasoduto «Corrente Turca (Turk Stream), pelo que a operação desenhada pelos EUA e os seus aliados árabes, Catar e Arábia Saudita, de trazer o gás para a União Europeia através da Síria – que foi a origem da guerra – passou definitivamente à história. Este era o grande trunfo que os EUA tinham para estrangular definitivamente a Rússia, juntamente com o conflito ucraniano, visto que por este país passa a parte de leão do gás utilizado pela União Europeia.

O principal prejudicado pelo modo como as coisas evoluíram e pela vitória do governo sírio é o Catar que, pouco a pouco, se foi habituando à ideia do que implica ter tomado partido contra a Rússia e os seus interesses na zona. Foi o primeiro país a dar conta do que se estava a passar e a iniciar uma aproximação silenciosa à Rússia que já se traduziu na compra de 19,5% das acções da principal petrolífera russa, a Rosneft, de propriedade estatal (10 de Dezembro de 2016). O Catar rompia com estrondo o suposto «isolamento» da Rússia e fê-lo quando a ofensiva final para libertar Alepo ainda estava em marcha, com o que, literalmente, deixou de rabo ao léu os seus patrocinados «contras». Então, já era evidente que os «contras» estavam a desmoronar-se como um castelo de cartas que, apesar de toda a sua retórica anterior, a Turquia considerava a cidade de Alepo e a província do mesmo nome (que era o pulmão industrial da Síria, ou que o era antes da guerra) dentro da sua zona de influência e que, com quem há que contar é com a Rússia e não com outros.

O Catar está já a começar a entender até onde levou a sua estratégia de apoio aos Irmãos Muçulmanos em geral, e aos salafitas e takfiristas na Síria em particular. Depois, para salvar a face e não perder definitivamente a possibilidade, por remota que seja hoje, de vender gás na Europa, o que tinha de fazer era iniciar uma nova relação com o país que neste momento tem todas as cartas na mão: a Rússia.

Já tinha havido outros movimentos nos países árabes de aproximação à Rússia, ainda que não directamente ligados à guerra contra a Síria. É o caso do Egipto. Este país está muito sentido com a Arábia Saudita por depois do golpe que derrotou os Irmãos Muçulmanos não terem chegado os milhões de dólares prometidos pela Arábia Saudita como contrapartida. Por isso, o Egipto moveu-se imperceptivelmente, não só para a Rússia mas também para o governo sírio. O Egipto e a Rússia fizeram manobras conjuntas no Sinai – um lugar onde há uma forte implantação do chamado Estado Islâmico –, os barcos russos têm facilidades no trânsito no Canal do Suez e discute-se a compra a compra de armamento russo pelos egípcios.

Por isso, não é de estranhar que no passado mês de Outubro o Egipto rompesse as ligações à Liga Árabe (onde o lugar da Síria foi atribuído aos «contras) e votasse no Conselho de Segurança da ONU uma resolução apresentada pela Rússia que era contrária a uma outra apresentada pela França e Espanha, em nome dos países ocidentais e árabes. Foi uma chamada de atenção que não passou despercebida, e que um mês mais tarde foi seguida de uma muito mais importante: o envio de 18 aviões de combate para a Síria e 200 soldados em «apoio ao governo sírio» na sua luta contra o chamado Estado Islâmico.

No entanto não é tudo, dias mais tarde, dia 20 desse vertiginoso mês de Dezembro, a Rússia, o Irão e a Turquia chegavam a um acordo sobre a Síria que definia novas linhas sobre a guerra e mostrava uma nova relação de poder na zona. Em síntese, estes três países acordaram que a Síria deve manter intactas as suas fronteiras, manter um estado secular, alcançar a paz inter-religiosa interétnica, combater o chamado Estado Islâmico e a Frente para a Conquista do Levante, ex Al-Nusra (Al-Qaeda) e dirigir as conversações directas que haja entre o governo sírio e os grupos dos «contras» que se juntaram ao fim das hostilidades, bem como alguns outros que não pegaram em armas. Pensar que quando a Rússia e a Turquia chegaram a acordo sobre o cessar das hostilidades, o fizeram sem ter em conta, por um lado, a Síria e o Irão (além de um actor não estatal como o Hezbollah) e a Arábia Saudita e o Catar, por outro, é não ter em conta nada de nada e não saber nada de nada. A Turquia foi rapidamente ao Catar explicar «profundamente» o conteúdo do acordo e anunciou também que se ia reunir ali com um representante saudita. Neste momento, a Turquia é a potência inquestionável da zona, com a inestimável ajuda da Rússia, ainda que seja uma situação que apenas agora começou a definir-se. Se o cessar das hostilidades tiver êxito, e não estamos a falar das conversações de paz do Cazaquistão, ficará nessa posição durante muito tempo.

Por seu lado, a Rússia também não esteve parada e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros viajou até ao Egipto para propor o comprometimento deste país no acordo de paz do Cazaquistão, como «mediador e garante», e estudar a possibilidade de enviar um contingente maior de tropas como «forças da paz» nas localidades que aderiram ao acordo de reconciliação que o governo promove. Se esta proposta russo-síria for aceite será o golpe de misericórdia no velho Médio Oriente e ver-se-á melhor que nunca essa recomposição em andamento.

5. E mais além

Mas o interessante é que com todas estas movimentações há um país que, na prática, desaparece do Médio Oriente: os EUA. E este desaparecimento tem um actor que o tornou possível: a Rússia. Dizer que os EUA perderam a guerra contra a Síria pode parecer muito atrevido, mas é bastante parecido com o que estamos a viver. Sem questionar que as primeiras semanas houve revoltas populares, e que a partir desse momento começou uma guerra de agressão contra a Síria por parte de uma associação de países encabeçados pelos EUA, Arábia Saudita e Catar, a verdade é que esta associação de países armou, financiou e manteve os seus patrocinados «contras» até ao ponto de, no final de 2015, darem a impressão de ir conseguir o seu grande objectivo: derrotar Al-Assad, seguindo o padrão usado na Líbia. Foi quando, a pedido do governo, a Rússia e a história mudaram de rumo até chegar a situação de agora: os «contras» estão derrotados, tal como a estratégia dos EUA, da Arábia Saudita e do Catar. Isto para não falar ainda da NATO.

A Rússia quis sempre chegar a um qualquer acordo com os EUA, mas tal não foi possível, entre outras coisas, pela divisão que havia entre o governo de Obama e o Pentágono. Foram dezenas de contactos, reuniões e acordos que não chegaram a parte alguma o que levou, a Rússia, perante a situação de enquistamento a que se chegou, a um movimento inédito: deixar os EUA à margem e iniciar conversações com outros atores. Primeiro com os amigos (Irão) e depois com os inimigos (Turquia). Isto colocou os outros na defensiva e à espera do que estes novos atores decidissem, e do que resultou tudo isto. Em muitos anos, esta é uma situação inédita que ainda é cedo para avaliar, mas o que toda a gente está a observar com muito interesse é que, se vitoriosa, ela marcará o rumo geopolítico do futuro. E é evidente que também se está numa situação precária, e que não se sabe o que se vai passar com a presidência de Trump. No entanto, por pouco que se verifiquem as suas promessas sobre a Síria teremos assistido ao nascimento de uma nova era na zona (e um pouco mais além).

Notas:

[1] O termo «contras» foi utilizado na Nicarágua sandinista para se referir aos diferentes grupos que se opunham ao governo da FSLN e que recebiam apoio desde o exterior do país, sobretudo dos EUA que foram os impulsionadores da guerra que se lançou contra a Nicarágua e que financiaram com salários e forneceram material militar aos «contras».

[2] http://elterritoriodellince.blogspot.com.es/2016/11/del-colapso-la-derrota-de-nuevo-otra.html

[3] http://www.atlanticcouncil.org/syriaproyect

[4] http://www.ecfr.eu/article/commentary_the_first_trump_test_european_policy_and_the_siege_of_aleppo7186

[5] Síria é um dos países onde se acolhem refugiados palestinos. Calcula-se que no país viviam antes da guerra uns 500.000, que na sua maioria continuam a viver aí, ainda que aproximadamente 100.000 se tenham mudado para o Líbano, alojando-se nos campos de refugiados ali existentes. Quando se iniciou a guerra os palestinos tentaram manter-se à margem. Havia duas posturas, a do Hamas, que defendia a participação ao lado dos «contras», e a das diferentes organizações de esquerda que defendiam a participação ao lado do governo. Esta situação durou mais de um ano, até que os «contras» tomaram o campo de refugiados de Handarat, situado no norte de Alepo, e atacaram os que defendiam o governo. Este campo ficou famoso no verão de 2016 por os «contras» terem decapitado um menino de 12 anos, por defender Al-Assad. Não obstante, desde 2012 e 2013 que a imensa maioria dos palestinos refugiados na Síria defendem o governo de Al-Assad e constituíram três brigadas de combate: a «Jerusalém», a «Galileia» e a formada pelo Exército de Libertação da Palestina. Além disso, organizações como a Frente Popular de Libertação da Palestina-Comando Geral, a Al Fatah Intifada e um ramo do Hamas denominado Aknaf Bait al Maqdis combate ao lado do governo sírio na zona central do país, especialmente nos arredores do campo de refugiados de Yarmouk, cujo controlo se reparte entre os «contras» e o chamado Exército Islâmico.

[6] The National, 12 de Dezembro de 2016 (principal jornal dos Emiratos Árabes Unidos).

[7] http://www.un.org/press/en/2017/db170111.doc.htm?__hstc=143095274.8e6501ed1ff01abb67548d3e30635247.1480686736463.1484425528466.1484469935998.10&__hssc=143095274.6.1484469935998&__hsfp=28287547

[8] http://www.achariricenter.org/factions-judicial-system-in-idlib-ar/

[9] Al-Quds Al-Arabi, 2 de janeiro de 2017 (jornal editado en Londres.

[10] Faliak al-Sham (Legião do Levante), Jaish al-Islam (Exército do Islão), Suvar al-Sham (Revolução do Levante), Jaisj al-Mudzhahiddin (Exército dos Mujaidines), Jaish Idlib (Exército de Idlib) e Dzhabhat al-Shamiya (Frente do Levante). Inicialmente também se juntou o próprio Ahrar al Sham (Movimento Islâmico do Povo do Levante), mas depois de um agitado debate interno decidiu retirar a sua assinatura do acordo. Este grupa conta já com uma importante divisão, porque a maioria dos seus membros são partidários da fusão com a antiga Frente Al-Nusra (Al-Qaeda). Estes dois grupos são os que controlam a província de Idlib. O resto não passa de comparsas sem a menor influência política ou social, pelo que o cessar de hostilidades será, no melhor dos casos, parcial e com âmbito militar muito reduzido, mas que terá importância política se se conseguir algum acordo.

* Escritor e jornalista especializado em Relações Internacionais

Tradução de José Paulo Gascão


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