Marx siglo XXI
 
Buscar
 
Nossa América
César Benjamin

Para Caros Amigos, março de 2006

Três regiões participam hoje, ativamente, da grande disputa mundial por riqueza e poder: a América do Norte, a Europa e o Leste da Ásia. A primeira é diretamente controlada pelo megaestado dos Estados Unidos, que consolidou seu domínio regional com o acordo do Nafta e pretende expandi-lo para todo o Hemisfério por meio da Alca. A segunda está em processo de unificação, com a formação de um megaestado continental, a União Européia. A terceira conta com pelo menos dois megaestados – o Japão e a China – com marcante atuação regional; a fortíssima integração é um dos motivos do êxito das economias asiáticas.

Três outras regiões do mundo não definiram projetos regionais nem construíram estruturas políticas capazes de levá-los adiante: o Oriente Médio, a África e a América do Sul. A primeira está sob ocupação militar. A segunda permanece paralisada por níveis de pobreza muito elevados e contenciosos internos muito graves.

Das regiões periféricas, é a América do Sul aquela que apresenta as melhores condições para constituir um projeto próprio. Nossas nações compartilham as mesmas aspirações por soberania, desenvolvimento e justiça. Nossos povos podem construir com facilidade uma identidade comum. Nossas economias são complementares. Em um mundo cada vez mais ameaçado pela escassez, contamos com recursos naturais abundantes, inclusive os energéticos e os biológicos, que serão cada vez mais importantes. Temos acesso aos dois grandes oceanos. Temos também indústrias, universidades e centros de pesquisa.

Uma região que, no século XXI, pode ser facilmente superavitária na produção de alimentos e de energia não pode aceitar passivamente a pobreza de suas populações e a condição periférica no mundo.

A construção da unidade continental é um sonho que percorre a nossa história. Está presente na vida e na obra dos nossos melhores intelectuais, lutadores e estadistas – o venezuelano Simon Bolívar, o cubano José Marti, o peruano José Carlos Mariátegui, o argentino Ernesto Guevara, o brasileiro Darcy Ribeiro, para citar apenas alguns.

Em períodos anteriores, pelo menos três causas impediram que essa unidade prosperasse:

(a) Durante a maior parte de nossa história, fomos economias primário-exportadoras, cujos centros dinâmicos ligavam-se diretamente ao exterior e eram comandados de lá. A infra-estrutura unia regiões exportadoras aos portos e estes, diretamente, à Europa ou aos Estados Unidos, de onde importávamos produtos industriais. As elites que comandavam essas economias articulavam-se muito mais fortemente com os centros estrangeiros do que com suas próprias sociedades.

(b) Permaneceu existindo um vazio econômico e demográfico no coração do continente, ocupado pela região amazônica e sua extensa periferia, onde predominavam atividades extrativistas dispersas. As distâncias interiores eram quase intransponíveis.

(c) O processo histórico de formação de nossas sociedades produziu diferenciações. No Brasil, na Venezuela, na Colômbia, no Chile e na Argentina predominaram povos novos; eles foram formados já no mundo moderno pela mistura de grupos humanos originários da própria América, da Europa, da África e até da Ásia, usados como força de trabalho pelo capitalismo europeu. Na Bolívia, no Peru, no Paraguai e no Equador predominaram povos herdeiros das civilizações pré-colombianas, cuja identidade está pulsando com cada vez mais força no continente.

Estão dadas as condições para superar esses fatores que impediram um projeto regional.

(a) Dos esforços desenvolvimentistas do século XX herdamos economias mais industrializadas, capacidade técnica mais desenvolvida e mercados internos mais fortes, além de uma incipiente rede de infra-estrutura voltada para efetuar ligações internas.

(b) O papel da Amazônia mudou. No século XXI, no lugar de um vazio econômico e demográfico, ela terá de constituir a base geográfica de um novo projeto comum de cooperação e desenvolvimento, capaz de garantir o controle de nossos povos sobre recursos estratégicos – como água doce, biodiversidade, fontes de energia e minerais –, além do domínio das biotecnologias.

(c) Cada vez mais, nossos povos têm de enfrentar juntos aquele que é o seu maior desafio, o de controlar os processos que definem o curso de sua própria história. Os povos herdeiros das civilizações pré-colombianas perderam o controle de sua história com a invasão européia. Os povos novos, formados depois da invasão, nunca tiveram esse controle. A modernidade européia, continuada na fase de hegemonia dos Estados Unidos, mantém todos os povos da América do Sul na condição comum de povos-objeto. Isoladamente, nenhum deles conseguirá tornar-se sujeito de sua própria história. É o que justifica o antigo sonho da unidade continental.

Neste início de século XXI, teremos de decidir: ou seremos incorporados à área sob controle direto do megaestado dos Estados Unidos, que no futuro poderá vir a ser formalmente declarada como a área do dólar, ou constituiremos uma área regional autônoma de cooperação e desenvolvimento, que poderá vir a ser o embrião de uma federação sul-americana. Há uma bifurcação em nosso caminho.

Os adversários da América do Sul têm o seu projeto: criação da Área de Livre Comércio das Américas; dolarização progressiva do continente; desnacionalização das economias e dos recursos naturais; transformação dos Estados nacionais em reféns do sistema financeiro internacional; isolamento ideológico e enfraquecimento das forças armadas; presença militar crescente dos Estados Unidos, especialmente na região amazônica; cooptação das elites pensantes e controle dos meios de comunicação de massa.

Mas, em quase todos os países, forças políticas cada vez mais representativas reconhecem que um projeto sul-americano alternativo é necessário e viável. Elas vêm obtendo sucessivas vitórias. Está no fim o ciclo da aventura neoliberal. Inicia-se um novo período da nossa existência.

O projeto sul-americano reforçará as tendências, já existentes, que apontam para o trânsito da unipolaridade para uma nova multipolaridade na geopolítica mundial. É preciso defini-lo com clareza e viabilizá-lo politicamente. O papel do Brasil é insubstituível. Precisamos deixar para trás a posição ambígua que temos tido e assumir claramente que a unidade da América do Sul tem de ser um elemento-chave da nossa política externa.

Um ambicioso projeto comum para a Amazônia, a integração da matriz energética continental e a criação de uma moeda contábil para regular o comércio intra-regional, de modo a libertá-lo da dependência do dólar, podem ser os primeiros grandes passos nessa direção. Estão ao alcance dos governos progressistas da região.


* César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, décima edição) e Bom combate (Contraponto, 2005). Alguns artigos seus estão publicados na página www.contrapontoeditora.com.br. Integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.

principal | economía | política | pensamiento | marx siglo XXI | debates
eventos | institucional | enlaces
Ir principal
Ir economía
Ir política
Ir pensamiento
Ir marx siglo XXI
Ir debates
Ir eventos
Ir institucional
Ir enlaces