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Lula e o livre comércio (ou a unidade dos indiscerníveis)

César Benjamin

A forma predominante de dominação ideológica não é mais o ocultamento dos fatos, um estratagema bastante primitivo, usado pelas ditaduras. Hoje, a dominação se faz muito mais pela capacidade de nomear. Mário de Andrade dizia: “As pessoas não pensam as coisas, elas pensam os rótulos.” Tinha razão. Boa parte do jornalismo econômico contemporâneo, por exemplo, tornou-se uma grosseira arte de rotular.

À lei que define que os recursos públicos devem ser prioritariamente usados para pagar juros ao sistema financeiro, em detrimento de todos os demais gastos do Estado, rotula-se “lei de responsabilidade fiscal”. À prática de cortar gastos essenciais, para sustentar esses mesmos pagamentos, rotula-se “disciplina” ou “austeridade”, necessárias para formar um “superávit” metafísico (denominado, espertamente, “superávit primário”). Ao desmonte dos mecanismos de defesa de uma economia periférica e frágil rotula-se “abertura”. Aos efeitos do desvio de finalidade das contribuições sociais – recolhidas pelo Estado, conforme a Constituição, para financiar o sistema de Seguridade Social – rotula-se “déficit da Previdência”.

Os meios de comunicação difundem esses chavões e, pela repetição, os incorporam à linguagem comum. Feito isso, não há mais debate possível. Quem pode ser contra “responsabilidade”, “disciplina”, “austeridade”, “abertura”, “superávit”, coisas evidentemente tão boas? Quem se habilita a defender, a sério, “irresponsabilidade”, “indisciplina”, “gastança”, “fechamento” e “déficit”?

Em plena vigência de um regime político que garante liberdade de imprensa, paradoxalmente, quase ninguém tem acesso aos conteúdos das questões. Tudo fica paralisado nos rótulos, usados para bloquear sistematicamente o pensamento.
Essa prestidigitação semântica, que sustenta a ideologia econômica dominante, é imensamente frágil. Poderia desfazer-se por meio de um simples ato de renomear. Os pontos de vista seriam automaticamente modificados, por exemplo, se trocássemos o nome da “lei de responsabilidade fiscal” para “lei que define que pagar juros ao sistema financeiro é mais importante do que investir em serviços essenciais”. Os exemplos poderiam se multiplicar.

Só quem controla os meios de comunicação pode nomear e renomear de forma eficaz. O esforço de pensamento, voltado para ultrapassar a rotulagem e penetrar no conteúdo das questões, torna-se um ônus de quem rema contra a maré. É muito mais fácil surfar no bom senso dos rótulos.

É nesse contexto que devemos avaliar as afirmações de Lula em convescote recente com George W. Bush, em Brasília. Nosso presidente apresentou-se, mais uma vez, como o campeão do “verdadeiro” livre comércio, combatendo a hipocrisia dos países ricos, que dizem defender essa causa, mas não a praticam: “Em nenhum momento estamos pedindo qualquer benefício ou privilégio. O que estamos pedindo é que os países desenvolvidos façam uma política de comércio exterior em que sejamos tratados com igualdade. Queremos apenas a oportunidade de competir livremente.”

É bonito. Engana os trouxas. Mas é perigosíssimo. Se Lula conhecesse um pouco da história do pensamento econômico latino-americano não diria semelhante bobagem. Pois, também nesse caso, o nome da coisa – “livre comércio” – tem sido cuidadosamente escolhido para impedir o conhecimento do problema. Afinal, quem pode ser contra a idéia de “livre comércio”? Não é a liberdade um conceito legítimo em si?

As aparências enganam. O debate sobre o comércio internacional foi substancialmente aperfeiçoado, entre nós, pelo esforço intelectual de Raúl Prebisch. Seu principal argumento pode ser assim sintetizado, passo a passo: o comércio exterior de países periféricos apresenta forte assimetria, com exportações concentradas em bens primários e de baixo valor agregado, e importações de bens e serviços mais intensivos em capital, técnica e conhecimento.

A dinâmica desses dois subconjuntos é muito diferente. Pois, na medida em que a renda das sociedades cresce, diminui a participação relativa do primeiro subconjunto, seja pela menor utilização de matérias-primas nos produtos finais, seja pela descoberta de novos materiais, seja pelo aumento da participação dos bens industriais e dos serviços na cesta de consumo das populações (isso se chama, em economia, elasticidade-renda menor do que 1). O inverso também é verdadeiro: os países ricos produzem, em maior proporção, os bens cuja demanda cresce mais do que o crescimento da renda (em economia, elasticidade-renda maior do que 1).

Por causa dessa assimetria, políticas de proteção aplicadas no centro e na periferia têm conseqüências bem diferentes. A proteção dos mercados dos países centrais, quando atinge os produtos ofertados pela periferia, retarda o crescimento e aumenta a vulnerabilidade dos países periféricos, reduzindo sua capacidade de contribuir para o crescimento do comércio mundial, visto como um todo.

A proteção seletiva dos mercados da periferia tem um efeito contrário. Pois os países periféricos em via de modernização continuarão necessitando realizar importações no limite de suas possibilidades, e por isso sempre farão o maior esforço exportador que esteja ao seu alcance. A proteção seletiva de seus mercados permite diminuir sua vulnerabilidade externa, tornando mais completa a sua base produtiva e aumentando sua renda interna, sem diminuir (ao contrário, aumentando) o volume de suas importações. Esse tipo de proteção altera apenas a composição dessas importações, concentrando-as naqueles produtos que os países pobres realmente não têm condições de produzir.

Prebisch desmontou o argumento liberal em seus próprios termos, demonstrando que a adoção de níveis adequados de proteção pelos países periféricos, ao aumentar sua renda sem diminuir sua propensão global a importar, maximiza o potencial do comércio mundial. Por isso, ele dizia, “a confiança do GATT [hoje Organização Mundial do Comércio] no livre jogo das forças de mercado e a proposta, dela decorrente, de reduzir igualmente as tarifas só seriam corretas se se aplicassem a países com estruturas econômicas homogêneas”.

Ou seja: quando o centro se abre para receber exportações da periferia, a periferia responde aumentando suas importações oriundas do próprio centro. Quando a periferia se abre da mesma maneira, a recíproca não é verdadeira. Neste caso, os países periféricos tendem a ter déficit nas contas externas, forçando-os a aumentar seu endividamento (e sua fragilidade) ou a reduzir suas importações.

Chegamos assim ao aspecto central do argumento de Prebisch, que é puramente econômico e nada tem de ideológico: em um sistema internacional marcado por forte heterogeneidade, a maximização do livre comércio não coincide com a maximização do comércio. Logo, por uma questão de eficiência, países que apresentam estruturas muito diferentes não devem ser submetidos às mesmas regras comerciais.

Para obter maximização do comércio – que é, de fato, o desejável – é preciso reconhecer uma realidade histórica: as trajetórias de desenvolvimento, entre países e entre regiões, são desiguais. Por isso, dizemos nós, a proposta da Alca, que Prebisch não chegou a conhecer, é um equívoco sem conserto.

Ao apresentar-se como o campeão do “verdadeiro livre comércio”, o presidente Lula, um pouco por deslumbramento, um pouco por ignorância, um pouco por irresponsabilidade, um pouco por bajulação aos Estados Unidos, rompe com a melhor tradição do pensamento latino-americano e adere ao discurso hegemônico nos países centrais. Ninguém se iluda. Se o Brasil, como diz Lula, quer “competir livremente” com os Estados Unidos, é forçoso reconhecer que, a depender do nosso presidente, a Alca virá. Precisamos apenas conseguir negociações mais favoráveis. É o que defendia Fernando Henrique Cardoso, que por isso, em seus oito anos de governo, também não assinou o tratado proposto pelos Estados Unidos. Queria barganhar condições um pouco melhores.

Um dos princípios da lógica de Leibniz é o da unidade dos indiscerníveis: se não podemos estabelecer diferenças entre duas coisas quaisquer, devemos admitir que elas são uma só. Lula e Fernando Henrique, nesse e nos demais assuntos, são indiscerníveis. A luta política que se trava hoje no Brasil, em torno das CPIs, é apenas uma guerra de grupos pelo controle de verbas e nomeações, que alavancam negócios. O projeto para o país é o mesmo. A fala de Lula sobre a importância do “livre comércio” reafirmou isso mais uma vez.

César Benjamin é autor de A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto, 1998, nona edição) e Bom combate (Rio de Janeiro, 2004).
Caros Amigos, novembro de 2005

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