Marx siglo XXI
 
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A necessária retomada do tema da transição

César Benjamin

Conseguir sintetizar este tema em trinta minutos excede muito a minha capacidade. Tentarei compactar ao máximo minha intervenção, sabendo que, ao fazê-lo, estou deixando de fora inúmeras outras abordagens, inúmeros outros problemas, que são igualmente importantes, além da abordagem e do problema específico que vou enfocar. Minha escolha parte da constatação de que falo para um público de militantes de esquerda. Logo, é com o pensamento de esquerda – ou, pelo menos, com uma importante tradição deste pensamento – que escolhi dialogar. Deixo de lado, por isso, a crítica a outras correntes menos representadas aqui.

Nossa geração de militantes vive um paradoxo bastante angustiante. De um lado, o socialismo nunca foi tão necessário. Não preciso me estender sobre isso. Com certeza, todos os que estão aqui percebem os sinais de barbárie que se multiplicam, seja na esfera material, com o processo de exclusão social galopante no Brasil e no mundo, seja nas esferas cultural e espiritual, com a crescente perda de sentido da existência humana. Resumidamente, podemos dizer que no mundo contemporâneo o processo de acumulação de capital precisa cada vez menos das pessoas. Isso significa que a criação de riqueza abstrata, que é o objetivo do capitalismo, descolou radicalmente das necessidades humanas. Por isso, para defender a humanidade, precisamos superar esta forma de organização social voltada para a multiplicação de riqueza abstrata. O socialismo nunca foi tão necessário.

De outro lado, paradoxalmente, tem sido muito difícil pensar, visualizar e descrever o processo de transição a uma outra forma de organização social. Esta angustiante combinação de urgência e falta de clareza não é nova. Tem aspectos comuns com situações vividas, em momentos anteriores, por gerações de revolucionários que nos antecederam. Comecemos por aí.

* * *

Como se sabe, Marx alterou profundamente o modo de abordar a questão do socialismo, comparado aos pensadores que o antecederam. Não se preocupou em descrever uma sociedade ideal. Dirigiu seu esforço intelectual para compreender a gênese e a dinâmica da sociedade que tinha diante de si, e demonstrou que ela era portadora de contradições que sinalizavam a necessidade de que fosse superada e a possibilidade real de sua superação. Conferiu assim, ao movimento socialista, uma teoria muito mais poderosa e um novo arsenal de conceitos. Colocou o socialismo na história. Talvez tenha sido a sua maior contribuição. Mas sua obra deixou poucas indicações – e indicações muito genéricas – sobre o processo de transição e sobre o modo de organizar a sociedade futura. Num primeiro momento isso não pareceu especialmente angustiante, pois os socialistas consideraram que, no devido tempo, a própria história ofertaria as condições de preencher esta lacuna. A idéia de que a humanidade não se coloca questões que não possa resolver conduzia à expectativa de que, quando a questão da edificação da ordem socialista se colocasse de fato, como um problema prático, as condições da sua solução também estariam presentes, de alguma forma.

Por isso, essa questão não angustiou a primeira geração de revolucionários marxistas. O problema se tornou agudo – e dramático – na Rússia na década de 1920. Com a tomada de poder em 1917 e o fim da guerra civil em 1921, o desafio de impulsionar a transição ao socialismo deixou de ser abstrato e adiável. Ao contrário, tornou-se o problema central da ação política. Houve então, em torno do tema, um debate que mobilizou os teóricos bolcheviques e outros revolucionários da época. A forma como este problema foi pensado e resolvido naquelas circunstâncias acabou por marcar profundamente a história do socialismo no século XX.

Quais foram as bases teóricas da solução então encontrada? De maneira muito simplificada, podemos dizer que, para modelar o processo de transição, os bolcheviques foram buscar dois elementos presentes na obra de Marx. O primeiro diz respeito à substituição do trabalho complexo pelo trabalho simples na produção moderna, especialmente a de tipo industrial. Ao descrever a evolução do capitalismo, Marx mostrara como o capital expropriava o saber dos trabalhadores e transferia este saber para as máquinas. Com o advento da grande indústria, cada vez mais, era a máquina que conduzia o processo produtivo, sob controle de um trabalhador crescentemente desqualificado. Marx ainda tinha diante de si um mundo em via de destruir o trabalho artesanal, o qual exigia uma grande qualificação do trabalhador. No artesanato e na manufatura, o saber estava depositado no trabalhador, na sua mente, no seu corpo, na sua experiência de vida e em seu longo aprendizado prévio. Com a constituição da grande indústria, para lembrar uma imagem que o próprio Marx utilizou, crianças passavam a executar a supervisão de máquinas, as quais realizavam, elas mesmas, o trabalho. A vanguarda das forças produtivas era a grande indústria, e ela operava com uma força de trabalho crescentemente homogênea. Ficara para trás o mundo heterogêneo das corporações de ofício, das guildas, dos mestres e dos aprendizes. A sociedade moderna, filha do capitalismo, era caracterizada pela existência de grandes massas humanas não qualificadas, cada vez mais concentradas e homogêneas.

O segundo elemento da obra de Marx que os teóricos bolcheviques, ao debaterem a transição, enfatizam e destacam é o processo de concentração e centralização do capital. Ainda no capitalismo, grandes empresas, monopolistas ou oligopolistas, tendiam a controlar todos os mercados, de modo que as economias modernas, cada vez mais, passariam a girar em torno de um número relativamente pequeno de conglomerados. Também era uma enorme mutação, quando vista em perspectiva histórica.

Combinados e levados às últimas conseqüências, esses processos – a desqualificação do trabalho e a concentração do capital – produziriam uma simplificação na estrutura social e no sistema econômico, com destruição em massa das classes intermediárias e das empresas de pequeno e médio porte, que eram sobrevivências do passado. Na visão dos bolcheviques da década de 1920, isso criava uma espécie de ante-sala histórica para a adoção de um planejamento que tudo pudesse abranger. Uma economia simplificada pelo predomínio de poucas grandes empresas, de um lado, e uma humanidade também “simplificada” pelo amplo predomínio de massas trabalhadoras homogêneas e concentradas, de outro.

Daí a centralidade do conceito de planejamento na construção da nova sociedade. O papel histórico do capitalismo seria o de criar as forças produtivas que aprofundariam irreversivelmente o caráter social do trabalho, criariam grandes organizações produtivas, aumentariam a produtividade, etc. E o limite histórico do capitalismo seria o seu elemento anárquico, gerador de irracionalidades e crises. O socialismo herdaria aquelas condições, típicas de uma economia industrial moderna. Concentrando a propriedade no Estado e adotando o princípio do planejamento, ele superaria a anarquia, constituindo-se assim em uma forma superior – pois mais racional e mais eficiente – de organização social. A economia funcionaria como se fosse formada por uma única empresa, de porte gigantesco. Lênin citava o exemplo da empresa alemã de Correios, com sua minuciosa divisão de tarefas, sua racionalidade administrativa, para esclarecer em uma imagem como funcionaria a economia socialista, em contraposição à anarquia do capitalismo. Bukharin chegou a antever que a consolidação, a extensão e o aperfeiçoamento do planejamento permitiriam que a economia soviética funcionasse praticamente sem moeda em um prazo de mais ou menos trinta anos, pois um sistema administrado de trocas tornaria desnecessária a moeda, que seria um instrumento típico de uma economia mercantil. No debate econômico de então prevalece, com grande ênfase, a idéia de que socialismo é planejamento. Nisto residiria a diferença fundamental em relação ao capitalismo anárquico. Em 1928, na seqüência desse debate, a União Soviética iniciou os seus planos qüinqüenais.

* * *

Os liberais, evidentemente, reagiram. Intensificou-se uma controvérsia que se projetou longe. Vamos lembrá-la de passagem, pelos elementos importantes que ela traz para a nossa discussão atual. A principal crítica dos liberais ao planejamento enfatizou a questão da eficácia na alocação de recursos em sociedades complexas. Ainda na década de 1920, Ludwig von Mises, da escola austríaca, definiu o sistema de preços relativos como a única medida socialmente disponível para aferir a escassez relativa de cada recurso. Por isso, na ausência de uma economia de mercado que permita a livre flutuação dos preços torna-se impossível aferir essa escassez e calcular custos; sem essas informações, é impossível tomar decisões racionais de investimento. Para Mises, uma economia planificada, baseada em relações administrativas entre os agentes, estaria condenada por definição à irracionalidade macroeconômica. Por sua capacidade de comandar recursos de forma centralizada, a economia planificada poderia obter êxitos em setores considerados politicamente prioritários, não mais (mesmo nesses casos, segundo ele, os êxitos envolveriam muito desperdício e alocação desastrada de recursos).

Esclareçamos bem este ponto. Na economia em via de construção na União Soviética, Mises dizia, autênticas operações de compra e venda só se realizam na esfera dos bens de consumo, que em qualquer sociedade moderna envolvem um minoria de unidades produtivas. Antes de se transformar em bem de consumo, cada material passa por transformações sucessivas, que envolvem um sem-número de transações. Se elas não foram regidas por relações mercantis, não se poderá calcular a eficácia e o desperdício presentes no sistema, nem premiar uns e punir outros, conforme a produtividade obtida. Se não há dinheiro nem trocas mercantis – ou se um e outro não percorrem toda a extensão do sistema – não há não há relações econômicas entre os agentes e falta uma medida racional, objetivamente reconhecível, de valor.

Friedrich Hayek, outro integrante da escola austríaca, também afirmava que uma economia centralmente planejada não funcionaria. O sistema de equações que exprimiria o equilíbrio geral dessa economia seria tão grande e complexo que se tornaria operacionalmente inviável implantá-lo. O tempo requerido para recolher, organizar e processar as informações – chegando a resultados a serem devolvidos à ponta do sistema – inviabilizaria a eficácia de um projeto desse tipo, já que as sociedades complexas são muito cambiantes.

A crítica de von Mises é mais fundamental que a de Hayek, pois diz respeito à consistência lógica do planejamento, e não às suas dificuldades operacionais. Hayek diz que um planejamento eficaz é tão difícil que, na prática, não pode existir. Mises diz que um planejamento eficaz é impossível, pois, ao ser implantado, ele elimina o sistema de medida necessário ao cálculo econômico. É um argumento forte. Mas, curiosamente, pode voltar-se também contra a idéia de eficiência das economias de mercado. Pois o cálculo econômico empresarial, tal como defendido por von Mises, só poderia ser feito com pleno rigor se os empresários conhecessem o custo de oportunidade de todos os investimentos possíveis, o que pressupõe um conhecimento completo, por cada empresário, de todas as alternativas existentes em dado momento, além de mobilidade plena dentro do sistema. Esses empresários eficazes seriam muito parecidos com os demônios de Laplace, para usar um exemplo da história das ciências. Isso, evidentemente, é impossível (aliás, a hipótese de Laplace já foi logicamente refutada pela matemática moderna). Assim, o cálculo empresarial tampouco pode realizar-se com exatidão, de modo que a posição de von Mises nos conduz, no máximo, à hipótese de que nem o planejamento nem o mercado garantem eficiência econômica ótima. Esta seria uma espécie de linha do horizonte para ambos os sistemas. (Essa constatação tem uma conseqüência política importante: quando nos prometem eficiência, empresários e planejadores nos vendem uma mercadoria que não podem entregar, mas que tem servido para legitimar o poder desses grupos.)

Até onde sei, essa linha de argumentação jamais foi usada. As críticas liberais tiveram duas respostas clássicas no campo marxista. Oskar Lange se mostrou sensível aos problemas indicados por elas e nunca escondeu sua admiração pelo arcabouço matemático do sistema de equilíbrio geral de tipo walrasiano, tão a gosto dos liberais. Mesmo assim, procurou resolver os problemas de otimização dentro do socialismo. Se os preços são índices de escassez, dizia, eles podem ser estabelecidos racionalmente fora de relações econômicas de troca. Basta mimetizar o mercado, combinando, num mesmo sistema de mão dupla, um órgão central e unidades produtivas públicas, porém dotadas de grande autonomia. Modelos econométricos reproduziriam o mecanismo de cálculo que teria lugar em um mercado perfeitamente concorrencial, que não existe no capitalismo. O sistema imaginado por Lange, um excelente matemático, teria as vantagens do mercado sem as desvantagens deste.

Lange aceitava a problemática fundamental de von Mises (o cálculo econômico é um aspecto essencial do problema e nenhum mecanismo substitui completamente o mercado), mas tentava solucioná-la no âmbito de um sistema baseado na propriedade pública dos meios de produção. Maurice Dobb, no entanto, foi mais radical. Contestou que o próprio problema colocado por Mises tivesse grande importância em uma economia socialista. Com efeito, Mises trata do uso mais eficiente de recursos dados, enquanto o planejamento é essencialmente um mecanismo voltado para mudar a configuração de uma economia e aumentar os recursos mobilizáveis por ela. Se buscamos câmbios estruturais rápidos, dizia Dobb, o mercado não é só ineficaz, mas também contraproducente, pois a demanda que ele revela e atende não é idêntica às necessidades sociais em geral, mas a estas necessidades nos marcos da distribuição de renda e de capital preexistentes. Só quem já detém renda e capital é reconhecido pelo mercado como gerador de demanda, e só estes acionam sua capacidade alocativa de recursos (se um milhão de pessoas têm fome, mas não têm dinheiro, o mercado não “vê”, ou não reconhece, essa demanda). Nesse sentido, ele é um mecanismo econômica e socialmente conservador.

Além disso, Dobb prosseguia, o mercado coordena os investimentos a posteriori, por meio de movimentos já dados de preços relativos, e depende de decisões atomizadas, quase sempre presas a horizontes de curto prazo. O planejamento, em contrapartida, coordena os investimentos a priori, por meio de decisões políticas. Muitos investimentos perfeitamente justificados tendo em vista as necessidades de conjunto do sistema e/ou de sua passagem para outro patamar de acumulação não são percebidos pelo mercado, que é míope, não vê longe. Assim, nos países em que o desenvolvimento é o problema central e em que as necessidades básicas não estão satisfeitas, o planejamento é mais eficaz. Dobb considera que o problema central para a teoria econômica do socialismo é o da aceleração do desenvolvimento num contexto de mutação em curso, e não o do cálculo numa configuração econômica já dada. Por essa via, afirma a supremacia do plano, mais eficaz para alavancar forças produtivas de grandes dimensões.

A meu ver, a História confirmou parcialmente a tese de Dobb, mas mostrou que ela era insuficiente. Voltarei a isso. Por agora, retornemos aos bolcheviques.

* * *

Do ponto de vista da política e da organização do poder, os bolcheviques construíram uma visão da transição que era coerente com aquela imagem, que apresentamos antes, de uma sociedade que tendia à simplificação. A idéia central, também nesse caso, se inspira nos clássicos. Sociedades de classes necessitam de instituições políticas muito complexas, porque nelas é preciso gerenciar um poder exercido sobre os homens, contra os homens. A dominação de alguns sobre as maiorias exige grandes aparatos burocráticos, policial-militares e ideológicos. Nessas sociedades, em última análise, a política seria a gerência desses aparatos e dessas relações de poder. Daí a necessidade de um Estado.

Na construção do socialismo, superada a fase inicial revolucionária, e caminhando a sociedade para a abolição das classes, a administração dos homens – ou seja, a política no sentido tradicional – seria cada vez menos necessária. O aparato social regulatório se voltaria cada vez mais para administrar (racionalmente) as relações dos homens com as coisas. Daí a idéia de que a transição seria caracterizada também por uma rápida simplificação da política, aspecto complementar do processo de simplificação da economia.

Na teoria bolchevique, inspirada diretamente em Lenin, a separação entre partido e classe trabalhadora, típica da fase pré-revolucionária, seria superada no momento da revolução pela fusão dos dois pólos. A revolução era a fusão do partido revolucionário com a classe, levando à criação da classe revolucionária. Esta fusão se desdobraria na construção de um Estado-comuna, cuja simplicidade e transparência ajudariam a ligar cada vez mais – e definitivamente – o dia-a-dia dos cidadãos e a administração da vida social. Desapareceria, portanto, a separação entre Estado e sociedade. Daí o pequeno interesse dos bolcheviques em debater com mais profundidade a questão da arquitetura institucional do novo poder. Não era preciso construir uma teoria sofisticada sobre o funcionamento do Estado, pois o Estado estaria em processo de extinção.

Nesse contexto, a solução para a problemática da transição ao socialismo resultou em um binômio fundamental: planejamento econômico, de um lado, e superposição de partido, classe e Estado, de outro. Criou-se assim, como disse, um modelo, uma matriz de pensamento, que marcou profundamente a história do socialismo no século XX. Aplicado primeiro em um país atrasado e depois em outros igualmente atrasados, este modelo obteve diversos êxitos no período que se seguiu. A administração centralizada e o planejamento aceleraram brutalmente a acumulação primitiva de capital industrial, ajudando a concentrar os recursos escassos, antes dispersos, e colocar estes recursos a serviço de objetivos bem-definidos. Isto tornou possível investimentos em grande escala e a rápida multiplicação da produção em massa de insumos e bens padronizados.

Nas fases iniciais da industrialização, as alternativas são poucas e as decisões a tomar são relativamente simples, até porque as necessidades a satisfazer são elementares e padronizadas: aumentar a oferta de insumos básicos (como aço, combustíveis, eletricidade), realizar obras de infra-estrutura, construir habitações e transportes de massas, produzir vestuário básico, generalizar o acesso à educação, etc. Nesses contextos, são dois os problemas centrais da administração econômica: reunir os escassos recursos disponíveis, de forma a obter escala, e implantar um plano coerente de investimentos nos setores-chaves. Combinando centralização econômica (planejamento) e centralização política (autoritarismo), o modelo soviético criou condições para isso e, em alguns casos, recuperou com grande rapidez o atraso econômico nas sociedades em que foi implantado. Não é pouca coisa. Alimentar, vestir, dar habitação, etc., a grandes massas humanas que nunca tinham tido acesso a estas condições não foi tarefa fácil. Naquele momento histórico, naquelas sociedades, dificilmente teria sido cumprida pelo capitalismo.

Compreende-se agora que eu tenha dito acima que a tese de Dobb foi parcialmente confirmada pela História. Enfatizo o advérbio parcialmente. Pois nada disso resolveu o problema da transição ao socialismo. Na verdade, gerou uma grande confusão: a capacidade de recuperar atrasos do passado foi confundida com a construção da sociedade do futuro. O que assistimos no fim do século XX não foi o fim da possibilidade do socialismo, mas o esgotamento de um modelo de transição pensado na década de 1920 em uma sociedade atrasada.

* * *

Isso nos remete para a necessidade de reabrir a questão, observando, à luz do mundo atual, os fundamentos teóricos das decisões tomadas naquela época. Só assim a crítica pode ser radical, sem ser preconceituosa, negativista e sectária. Vamos revisitar rapidamente esses fundamentos. A sociedade moderna era caracterizada pela simplificação e homogenização do mundo do trabalho, com a generalização do trabalho simples. No mundo contemporâneo, no entanto, assistimos a recriação em larga escala do trabalho complexo. Aquelas massas humanas homogeneizadas e não qualificadas, que permanecem existindo e se reproduzindo em larga escala, já não estão mais sendo colocadas, pelo capital, dentro do mundo da produção. São remetidas para fora dele. Elas ocupam cada vez menos o coração do sistema capitalista, e por isso perdem força política.

Na tradição clássica marxista, o proletariado ocupa uma posição especial por dois motivos principais. O primeiro: com ele, o capitalismo estava formando uma “classe universal”, cuja dominação não obedecia mais a lógicas particulares – locais ou nacionais, de caráter religioso ou étnico, baseadas em tradições, e assim por diante –, mas a uma lógica geral, que logo incorporaria toda a humanidade; e a pobreza dessa classe não resultava mais de “leis naturais”, ou de uma baixa produtividade do trabalho: era uma pobreza artificialmente produzida em uma sociedade vocacionada para aumentar rapidamente a produtividade do trabalho. Como disse Marx na Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, essa classe sujeita a “cadeias radicais”, esse grupo social que era a dissolução de todos os grupos anteriores, não reivindicaria um direito particular, pois não estava sujeita a uma opressão particular. Só poderia emancipar-se, emancipando toda a sociedade.

Além disso, o proletariado era uma classe profundamente integrada ao sistema capitalista, no sentido de que era essencial ao processo de produção, e ao mesmo tempo excluída desse sistema, pois não tinha nenhum controle sobre esse processo que ele mesmo impulsionava com seu trabalho. Essa dupla especificidade transformou o proletariado em um grupo humano tão especial para o marxismo. Uma classe social completamente excluída tem pouca força política, e uma classe social completamente integrada não tem potencial transformador. A classe social revolucionária tem de ter esse duplo perfil – integrada e excluída, excluída e integrada – para ser forte e ter interesse na mudança.

Ora, quando olhamos a conformação do mundo contemporâneo e pensamos a transição ao socialismo, comparando com aquela situação do início do século XX, vemos que há um problema político reaberto, o problema do agente fundamental (ou grupo de agentes fundamentais) dessa transição, pois a posição do proletariado industrial não é mais a mesma. Mais do que isso: a economia do futuro não pode ser pensada como a recriação e a radicalização do modelo fabril do século XIX.

Quanto à centralização e concentração de capitais – o outro alicerce teórico da política bolchevique da década de 1920 –, este é um processo que permanece em curso (aliás, de modo bastante acelerado e visível), mas também em relação a ele é preciso fazer algumas considerações. Assim como o trabalho complexo é permanentemente destruído pela expansão capitalista, mas também é recriado por esta mesma expansão, as classes médias e empresas de porte pequeno e médio são permanentemente destruídas e permanentemente recriadas. Resulta daí uma economia e uma estrutura de classes, a ela associada, que não tendem à simplificação, pelo menos da forma como foi imaginada pelos bolcheviques. Desaparecem setores inteiros de atividades, mas surgem novos setores. Em torno de cada megaempresa gravitam centenas de outras, de menor porte. Desenvolvem-se atividades não padronizáveis, nas quais não há economias de escala, especialmente no setor de serviços, cuja importância é crescente.

É interessante notar que a construção teórica de O capital contempla perfeitamente essa dinâmica. Ao contrário do que muitos dizem – porque, na verdade, nunca foram às fontes –, o Marx da maturidade, o Marx que fez a crítica da economia política (ao contrário do Marx do Manifesto) não imaginou que o desenvolvimento capitalista devesse levar a uma sociedade simplificada, com um enorme proletariado homogêneo e miserável. Foi um crítico ácido da “lei de bronze dos salários”, defendida por Lassalle, que sustentava a “teoria do empobrecimento” do proletariado; sempre divergiu de Bakunin, que associava pobreza e revolução; e formulou com grande consistência teórica a possibilidade de caminhos alternativos para o desenvolvimento capitalista, baseados na expansão da mais-valia relativa (que introduz a possibilidade de um conflito de classes de soma positiva, para usar uma expressão da moderna teoria dos jogos).

Essa discussão nos levaria longe demais. Refiro-me a ela, de passagem, para dizer que nunca foi tão necessário retornar a Marx. Um dos elementos de nossa crise teórica é o fato de que Marx continua sendo muito citado, mas é cada vez menos lido, tanto pelos que o atacam quanto pelos que pensam segui-lo. É um autor que desenvolve raciocínios complexos, longos e muito rigorosos, que exigem disciplina, paciência e gosto pela profundidade, em um mundo cada vez mais dominado pela imagem, a fugacidade, a rapidez e a superficialidade. As pessoas não têm mais nem vontade nem tempo para ler um filósofo alemão da estatura de Marx. Afirmo, no entanto, que os elementos centrais da descrição do capitalismo contemporâneo estão lá, em sua obra, e os elementos centrais da formulação da alternativa também estão lá, em germe.

* * *

Também no que diz respeito à forma política da transição precisamos olhar criticamente a matriz bolchevique da década de 1920. Pois o processo histórico real mostrou que a fusão entre o partido e as massas, típica do período revolucionário, não evoluiu na União Soviética para níveis crescentes de transparência da política, nem dentro das próprias instituições e, muito menos, em relação à vida do cidadão comum. No período pós-revolucionário, ocorreu uma visível “desfusão”, que não havia sido prevista e que transformou o marxismo-leninismo, tal como usado nas décadas que se sucederam, numa teoria legitimadora do autoritarismo. Essa “desfusão” não foi acidental. Ela ocorrerá sempre que a sociedade não contar com um aparato institucional sofisticado e complexo, que valorize a política – o que implica valorizar a participação e a representação, o equilíbrio de poderes, etc. A idéia de um Estado de direito, com equilíbrio de poderes, de uma sociedade regida pela lei, em que o cidadão se sinta forte e defendido em relação ao próprio Estado, é uma conquista civilizatória da qual não podemos abrir mão.

Vou concluir. Ao contrário do que se diz, o problema da transição ao socialismo está dramaticamente reaberto. O Marx economista enfatizou a crítica à exploração do trabalho, que hoje muitos discutem, mas é preciso não esquecer que o Marx filósofo – que é o mais importante – enfatizou a perda de controle da humanidade sobre sua própria capacidade criadora, através de um perigosíssimo processo de alienação de sua liberdade essencial. Nunca estivemos tão imersos nisso, em um mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro, cultua-se o dinheiro, este verdadeiro deus da nossa época – um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, do amor. Um deus que se tornou imensamente destrutivo. E muito perigoso: a acumulação de riqueza abstrata é, por definição, um processo sem limites.

O problema da transição, no entanto, não pode ser solucionado pela retomada das formulações realizadas em uma sociedade atrasada há oitenta anos atrás, independentemente do esforço feito por seus autores e do contexto que os cercava. Pois, na esfera da economia, o socialismo soviético foi pensado como uma continuidade da matriz produtiva capitalista que existia até então, matriz que o próprio capitalismo alterou.

Repensar o socialismo no século XXI é repensar um modo de produção que rompa profundamente com a lógica associada a essas matrizes. O socialismo não deve ter como meta fazer melhor do que o capitalismo as coisas que o capitalismo faz. Não cabe ao socialismo ser mais eficiente que o capitalismo, pois não há eficiência abstrata. Cabe ao socialismo, antes de tudo, reorganizar a sociedade, preservando e valorizando todas as conquistas civilizatórias que lhe antecederam, e recolocando o ser humano no centro. Tem de haver uma diferença de qualidade entre os dois tipos de organização social. Uma sociedade regida pela lógica da acumulação de riqueza abstrata, que não tem nada a ver com as necessidades humanas, e uma outra sociedade, possivelmente menos eficaz na produção de mercadorias, mas que restabeleça um outro tipo de relação entre os homens e seja muito mais “eficaz” – desculpem-me o termo horroroso –, por exemplo, na produção de cultura, em todas as suas dimensões. O socialismo não pode pretender ser um capitalismo que se libertou das suas próprias crises, o que, de resto, é algo impossível. Tem que ser pensando como uma outra sociedade, com outros valores, outros fins e outra dinâmica.

No campo da política, por sua vez, é necessária uma formulação sofisticada sobre a questão do poder político e do Estado, pois ainda precisaremos deles por muito tempo. Os problemas da atividade pública, da estruturação e regulação dos mecanismos de poder, da representação, do equilíbrio, da rotatividade, do não-esmagamento da sociedade pelo Estado, do combate à lógica da burocracia – esses problemas nos impõem, como desafio teórico, construir uma teoria positiva do Estado e da política no socialismo.

Acho que estão aí os dois grandes desafios teóricos colocados para a nossa geração: imaginar qual é a qualidade nova de um novo modo de produção, rompendo com a idéia de que esse modo de produção é um capitalismo mais eficiente e sem crises, e construir uma teoria da democracia socialista. Se enfrentarmos esses desafios teóricos, poderemos contribuir para a superação da profunda crise que a humanidade experimenta neste início de século.

Muito obrigado.

Consulta Popular, Brasil

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