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Um Novo Desafio
Ricardo Antunes
I
O Século XX viu desmoronar muitos dos engenhos criados pelas forças sociais do trabalho e pela esquerda. O alvissareiro empreendimento soviético iniciado em 1917, as lutas de libertação nacional em tantas partes do Terceiro Mundo, a expansão do “bloco socialista” no Leste Europeu, a corajosa e rebelde Revolução Sandinista, para lembrar alguns exemplos fortes, cujo desmoronamento ou derrota tristemente presenciamos nas últimas décadas do Século que se foi. Se ainda há a heróica resistência cubana, o prolongamento bastante alterado (e mesmo adulterado) do empreendimento revolucionário chinês, quase tudo que de fundamental se intentou na batalha pela demolição do capital, foi de algum modo derrotado ou reposto pelo domínio do capital. O mesmo se deu em relação à organização sócio-política de classe, aos partidos que propugnavam pela representação dos trabalhadores. Creio que podemos afirmar, hoje, que a forma partido, erigida tanto pela variante social-democrática, quanto pela vertente dos partidos comunistas tradicionais, ambas exauriram-se ao longo deste (curto) Século XX.
O primeiro, porque aceitou, num processo por certo complexo, que aqui não
podemos recuperar, o compromisso de ganhos imediatos, reais, de melhoria das
condições de trabalho e vida, em troca do abandono cabal de qualquer
esforço visando à construção de um empreendimento
societal socialista, de novo tipo, que colocasse em cheque a lógica do
capital. Restrita a alguns países do Norte (tendo o Sul como suporte
de exploração e sucção fundamental), o compromisso
socialdemocrática estruturado entre o capital, o trabalho e o estado,
permitia, por um lado, que o movimento operário e sindical de tipo socialdemocrático
conquistasse direitos sociais em troca da negação de uma ação
socialista efetiva. Desse modo, os interesses do capital garantiam seu futuro,
enquanto o mundo do trabalho melhorava, de modo contingente, o seu presente.
A intensificação das lutas sociais dos anos 60 desmontaram a institucionalização
dessa variante de representação política do trabalho; conforme
nos recordou Alain Bihr, os trabalhadores cansaram-se de perder sua vida para
ganhá-la. (Bihr, Da Grande Noite à Alternativa, Boitempo).
Os partidos comunistas também sentiram fortemente as conseqüências
das derrotas do Século XX. Com o fim da União Soviética
deu-se, entretanto, um movimento diverso: por um lado, um forte processo de
socialdemocratização dos PCs (caso do PCI, que majoritariamente
se tornou PDS, Partido Democrático de Esquerda); outros PCs simplesmente
desapareceram e alguns, como o PCP (de Portugal) e PCF (França), procuram
resistir. Outros ainda- e estes estão dentre os exemplos mais interessantes
- reestruturaram-se, procurando refundar o movimento de esquerda. É o
caso do Partido da Refundação Comunista, PRC, na Itália,
que aglutinou as forças de esquerda oriundas do antigo PCI.
A vigorosa tese leniniana, estampada em Que fazer? (que conforme lembrou Lenin,
alguns anos após a publicação do livro, era tão
somente um compêndio de tática iskrista, nem mais, nem menos),
foi transplantada do solo russo, onde ela tinha forte sentido (lembremos do
czarismo autocrático e ditatorial russo) para assumir validade universal
e, a partir de então, foi crescentemente dogmatizada pelo stalinização
do PC soviético e também, com suas diferenças, em grande
parte dos PCs que seguiam aquela orientação. O partido de vanguarda,
centralista e democrático em seu desenho e propositura iniciais, expressão
típica da particularidade da autocracia czarista russa, representante
efetivo daquela realidade do movimento operário, impulsionado pelos núcleos
de operários e intelectuais revolucionários, pouco a pouco, depois
de 1924, com a morte de Lenin, se transformava no partido de cúpula,
centralista, burocrático, eliminador das diferenças pela prática
bárbara e brutal dos expurgos, desconsiderando cada vez mais os interesses
reais das forças sociais do trabalho.
Fracassadas as duas maiores experiências de partido, a socialdemocrática
e a dos partidos comunistas tradicionais de linhagem stalinista ou neostalinista,
encontramo-nos, hoje, no início deste Século XXI, com um questão
central, crucial: como estruturar um partido que possa ser contemporâneo
aos desafios de nosso tempo? Que possa superar o enorme desgaste em que se encontram
esses organismos de representação política? Que possa ser,
ao mesmo tempo, renovado e radical? Que seja capaz de recuperar os valores mais
essenciais do socialismo, capaz de resgatar o valor central da humanidade social
(Marx), que esteja a altura dos enormes desafios do nosso tempo, onde a destrutividade
ambiental e da natureza, a degradação do trabalho, a superfluidade
das mercadorias, o fetichismo das coisas, o estranhamento das subjetividades,
o predomínio quase inquestionável da mercadoria/dinheiro e sua
financeirização, para não falar na barbárie belicista
imposta pelos EUA, seu império imperialista e seus seguidores, hoje dominantes,
possam definitivamente perecer.
Que seja, ao mesmo tempo, um movimento social e político, anti-institucional,
contrário ao predomínio da lógica parlamentar, calibrada
pelo calendário eleitoral e que, ao contrário, tenha forte impulsão
tendo como base as forças hegemônicas alternativas do trabalho,
organizado pela base, capaz de aglutinar também aquele/as que hoje estão
expulsos do trabalho, vivenciando o flagelo do desemprego, forças sociais
que se encontram em grande medida ausentes de representação política.
Que recuse a política da ordem e também a anti-política,
o que somente pode se efetivar através do exercício da política
radical. Que consiga ainda combinar forte presença de base, sem sucumbir
ao vanguardismo e às formas superadas de centralismo.
Trata-se, portanto, de reconstruir e redesenhar um novo partido (um partido
político distinto, para lembrar as indicações de Marx,
mas na contextualidade do nosso tempo), que somente poderá encontrar
força, vitalidade, impulsão, densidade, se estiver fortemente
ancorado nas forças sociais do trabalho, em seu sentido ampliado, com
sua nova polissemia, seu caráter multiforme, recusando a “linha
de menor resistência” (Mészáros, Para Além
do Capital, Boitempo), dadas pelo atalho institucionalista, marcadamente eleitoral,
subordinadamente parlamentar, que acaba, mais cedo ou mais tarde por transformar-se
num partido da ordem.
II
Esse caminho alternativo não tem sido fácil. O Partido dos Trabalhadores, o mais forte partido de esquerda do Brasil e da América Latina, que se tornou referência internacional, não foi capaz de consolidar esse caminha alternativo. Com o enorme processo de desertificação social do país, resultado das transformações ocorridas ao longo dos anos 90 (neoliberalismo, financeirização da economia, reestruturação produtiva do capital, desregulamentação, informalidade e precarização do trabalho, privatização da res publica etc.), o PT também acabou por converter-se num partido da ordem, exauriu-se enquanto partido de esquerda, capaz de transformar a ordem societal, para se qualificar enquanto gestor dos interesses dominantes no país. O PT converteu-se num partido que sonha em humanizar o nosso capitalismo, combinando uma política de privatização dos fundos públicos, atendendo tanto aos interesses do sindicalismo de negócios quanto especialmente aqueles presentes no sistema financeiro nacional e especialmente internacional que efetivamente dominam.
Este quadro nos leva a buscar uma nova alternativa político-partidária,
capaz de preencher o enorme vazio político e ideológico socialista,
aberto depois do transformismo do PT, cujo núcleo dominante é
responsável pela condução do governo Lula. O sucesso dessa
empreitada, entretanto, “está em buscar laços profundos
com os movimentos sociais, com a nova polissemia que caracteriza o mundo do
trabalho, combinando um forte pluralismo socialista, capaz ainda de ser simultaneamente
renovado e radical, respondendo aos desafios que o século XXI nos impõe”.
(Conforme nosso depoimento em Crítica Social, n. 4, 2004, RJ)
Trata-se, portanto, de superar o centralismo e o institucionalismo através
da pujança e força das lutas sociais de classe, incorporando também
decisivamente e de modo transversal, as dimensões de gênero, etnia,
a luta ecológica etc, fundamentais todas elas quando se pensa no presente
e futuro do gênero humano, articulando-as decisivamente à luta
contra a lógica do capital.
Sua força central - e nunca única - se encontra no trabalho, elemento
estruturante da vida societal e que deve ser compreendido em seu sentido abrangente
e multiforme. E esse empreendimento é imprescindível, de modo
que se possa definitivamente eliminar o trabalho abstrato, fetichizado e estranhado,
vigente no mundo do capital e que dever ser completamente eliminado da sociedade
humana, resgatando o sentido do trabalho como atividade vital ( Marx), criadora
e constitutiva do gênero humano.
Um organismo que auxilie na recuperação do sentido de pertencimento
de classe que os partidos da ordem estão impossibilitados de representar.
Capaz de recuperar o sentido estruturante do trabalho humano e societal, contra
o sentido desestruturante do trabalho assalariado sob o capital. Esse é
um desafio crucial do nosso século, empreendimento para o qual as formas
envelhecidas de partido estão impossibilitados de realizar. O que nos
coloca um novo desafio, dentre tantos existentes: como auxiliar na organicidade
dos diversos movimentos sociais, na heterogeneidade das forças sociais
do trabalho, qualificando-as organicamente para os embates com o capital na
era de sua mundialização e quando também estamos presenciando
a mundialização das lutas sociais do trabalho. Capaz de articular
de modo íntimo luta social e luta política, sem que uma se distancie
da outra.
Estamos num momento de novos experimentos que devem, entretanto, tomar o passado
recente como matéria de reflexão, balanço e análise.
Tudo isso nos obriga a buscar alternativas, novos caminhos que apontem para
uma nova sociedade, aprendendo com as lutas passadas e refletindo sobre as mais
recentes. Sabemos, entretanto, que as respostas exigidas são radicais.
Do contrário, vamos repetir as tragédias anteriores. A forma partido,
quer em sua variante social-democrata, quer aquela assumida pelos partidos comunistas
tradicionais, está falida. Como, então, estruturar um partido
político distinto, de classe, socialista, anticapitalista, que expresse
ao mesmo tempo uma forte participação de base, capaz de aglutinar
e empolgar as forças sociais que hoje se encontram à margem representação
política e que recuse fortemente a prevalência da ação
institucional, parlamentar, sustentando-se na política radical?
Esse é, no Brasil de nossos dias, o desafio maior do recém-criado
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que pretende auxiliar na refundação
e reorganização da esquerda brasileira, depois do fracasso do
PT. Projeto este que, por certo, precisa do apoio de várias forças
de esquerda, hoje ainda no PT, bem como setores que se encontram fora das estruturas
partidárias vigentes, bem como aqueles que se encontram em outros grupamentos
e partidos de esquerda que abraçam a idéia de um organismo político
socialista e radical, organizado democraticamente pela base, anti-capitalista
e capaz de conviver com a pluralidade das forças socialistas e de esquerda,
que nos ajude a reconquistar o sentido de humanidade, liberdade, igualdade e
emancipação presentes no ideário socialista. E esse é,
hoje, o nosso novo desafio assumido pelo PSOL. Que poderá nos ajudar
a enfrentar outro desafio monumental: a construção de uma alternativa
societal socialista no limiar do século XXI. Talvez a única alternativa
de salvar a humanidade que já vivencia a barbárie.
Alguns dirão: la vêm as cinzas... Mas nós responderemos
com as belas palavras nosso poeta Mário Quintana: “que importam
as cinzas, se a chama foi bela e alta”.
Ricardo Antunes é Professor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (UNICAMP) e autor, dentre outros, de A Desertificação Neoliberal no Brasil (Autores Associados), Os Sentidos do Trabalho (Boitempo, 7ª edição) e Adeus ao Trabalho? (Cortez/Unicamp, 8ª edição).
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