No
domingo, 11 de março, após uma marcha de mais de três
mil quilômetros, o subcomandante Marcos poderá dizer, dirigindo-se
a todos os mexicanos e em nome de 10 milhões de índios:
"Eis-nos aqui, somos a dignidade rebelde, o coração
esquecido da pátria!"
Ignacio
Ramonet, enviado especial
Pela
primeira vez, o subcomandante Marcos, chefe do Exército Zapatista
de Libertação Nacional (EZLN), sai da clandestinidade.
Usando sempre seu capuz, deixou a floresta Lacandona do Chiapas e, desde
24 de fevereiro, marcha pacificamente para a Cidade do México,
onde pretende chegar no domingo, 11 de março, após ter
percorrido mais de três mil quilômetros, atravessado 12
dos Estados mais pobres do país e participado do dia 1º
a 4 de março, no Estado de Michoacán, do Congresso Nacional
Indígena de Nurio.
Acompanhado
por 23 comandantes do EZLN, e escoltado por personalidades amigas provenientes
do mundo inteiro (entre as quais o Prêmio Nobel José Saramago,
o cineasta Oliver Stone, o sindicalista José Bové, o escritor
Manuel Vásquez Montalbán, Danielle Mitterrand...), o subcomandante
Marcos deverá entrar triunfalmente na Cidade do México,
seguindo simbolicamente o mesmo itinerário feito, durante a revolução
mexicana de 1911, pelo célebre rebelde Emiliano Zapata.
Na
imensa Praça do Zócalo, no centro da capital, e no meio
de uma multidão solidária estimada em várias centenas
de milhares de pessoas, o turbulento Marcos poderá então
dizer, dirigindo-se a todos os mexicanos e em nome de 10 milhões
de índios: "Eis-nos aqui, somos a dignidade rebelde, o coração
esquecido da pátria".
Terra,
raízes e história
Poucos
dias antes do início da marcha, Marcos nos recebeu, ao lado do
comandante Tacho e do major Moisés, mil quilômetros ao
sul da Cidade do México, no pequeno povoado de La Realidad (450
habitantes), no alto dos 1.500 metros da vertente chuvosa de uma montanha
coberta por um espesso velo de selva e perto de seu quartel-general
secreto.
Mascarado
com seu eterno capuz, equipado com um telefone via satélite,
com um boné surrado de cor indefinida, sua velha e pequena metralhadora
nas costas, explicou por que os zapatistas marcham no México:
"Essa marcha não é de Marcos nem do EZLN, é
a marcha de todos os povos indígenas. Ela quer mostrar que o
tempo do medo acabou. Nosso objetivo principal é que os povos
indígenas sejam reconhecidos pelo Congresso mexicano como sujeitos
coletivos de direito. A Constituição do México
não reconhece o índio. Queremos que o Estado admita que
o México é constituído por povos diferentes. Que
esses povos indígenas possuem sua própria organização
política, social e econômica. E que mantêm uma relação
forte com a terra, com sua comunidade, suas raízes e sua história.
Divulgação
da marcha
Não
reivindicamos uma autonomia excludente. Não exigimos uma independência
qualquer. Não queremos proclamar o nascimento da nação
maia, ou fragmentar o país em múltiplos pequenos países
indígenas. Queremos que sejam reconhecidos os direitos de uma
parte importante da sociedade mexicana, que possui suas próprias
formas de organização e reivindica que essas formas sejam
legitimadas. Nosso objetivo é a paz. Uma paz baseada em um diálogo
que não seja um simulacro. Um diálogo que permita estabelecer
as bases de uma reconstrução do Chiapas e favoreça
a reinserção do EZLN na vida política corrente.
A paz só será possível se a autonomia dos povos
indígenas for reconhecida. Esse reconhecimento é uma condição
importante para que o EZLN abandone definitivamente as armas e a clandestinidade,
participe abertamente da vida política e possa também
se dedicar à luta contra os perigosos projetos da globalização."
Após
nove meses de silêncio, a divulgação dessa marcha
em um comunicado de Marcos, a 2 de dezembro de 2000, dia seguinte à
posse do novo presidente do México, teve o efeito de uma bomba.
Toda a classe política foi pega de surpresa por essa iniciativa
audaciosa tomada em um momento bem particular.
Na
verdade, no dia 2 de julho de 2000, o Partido Revolucionário
Institucional (PRI), no poder durante mais de 70 anos, perdeu a eleição
presidencial para Vicente Fox, candidato do Partido de Ação
Nacional (PAN), de direita. E, ao contrário das grandes suspeitas
de fraude e de corrupção que haviam pesado sobre as eleições
dos dois últimos presidentes - Carlos Salinas (1988-1994) e Ernesto
Zedillo (1994-2000) -, a eleição de Vicente Fox foi unanimemente
reconhecida como reflexo da verdade das urnas. Pela primeira vez, depois
de muito tempo, Fox, que tomou posse no dia 1º de dezembro de 2000,
é um presidente cuja legitimidade parece incontestável.
Estratégia
política
Aliás,
Marcos admite em uma carta aberta dirigida ao novo presidente: "Fox,
ao contrário de seu predecessor Zedillo (que chegou ao poder
por intermédio do crime e com o apoio dessa monstruosa corrupção
que caracteriza o sistema do partido do governo), o sr. chega à
direção do Executivo federal graças à rejeição
que o PRI cultivou com zelo entre a população. O sr. sabe
muito bem, sr. Fox: ganhou a eleição, mas não foi
o sr. que derrotou o PRI. Foram os cidadãos. E não só
aqueles que votaram contra o partido do governo, mas também as
gerações anteriores e atuais que, de uma maneira ou de
outra, resistiram e combateram a cultura do autoritarismo, da impunidade
e do crime que os governos do PRI construíram ao longo de 71
anos." 1
Durante
a campanha eleitoral, Vicente Fox prometeu controlar, pacífica
e politicamente, o problema zapatista "em 15 minutos". A marcha
do subcomandante Marcos tomou-o de surpresa em pleno período
de "estado de graça" e obrigou-o a se ocupar, imediatamente,
da espinhosa questão indígena. "A idéia da
marcha é um golpe de gênio, o poder é obrigado a
ceder a um calendário de negociação fixado a partir
de então por Marcos, que dessa maneira retoma a ação.
E Fox é obrigado a aceitar, não só porque há
uma pressão nacional e internacional que o impele nesse sentido,
mas porque ele não ignora que, ao vir à Cidade do México
discutir com as novas autoridades, Marcos reconhece a legitimidade destas,
ao mesmo tempo que não reconhece a legitimidade de Salinas nem
de Zedillo, considerados pelos zapatistas, e por um grande número
de mexicanos, como fraudadores, trapaceiros e usurpadores", nos
diz o escritor Carlos Monsivais, que acaba de ter uma longa conversa
com Marcos. 2
Um
projeto para "todos os mexicanos"
O
antropólogo André Aubry, responsável pelos arquivos
diocesanos em San Cristóbal de las Casas e amigo do antigo bispo,
monsenhor Samuel Ruiz, acrescenta: "Em suma, o que Marcos reivindica
não é uma coisa do outro mundo. Ao organizar essa marcha,
ele exige que o novo presidente, Fox, diga que nação mexicana
ele deseja construir. Marcos simplesmente reivindica que os índios
façam parte dessa nação."
Jogador
experiente, o presidente Vicente Fox, uma vez passado o efeito surpresa,
reagiu favoravelmente ao projeto da marcha zapatista. Acalmando, inicialmente,
alguns espíritos exaltados em seu próprio círculo
que, como o governador do Estado de Queretaro, haviam tratado os comandantes
zapatistas como "traidores", ameaçando-os de morte,
Fox acabou admitindo que a marcha representava "uma esperança
para o México". Poderia agir de maneira diferente do presidente
Andrés Pastrana, da Colômbia, que no dia 8 de fevereiro
de 2001 compareceu à zona controlada pela principal guerrilha
do país para se encontrar frente a frente com o chefe mítico
da rebelião, Manuel Marulanda, "Tirofijo"?
Para
tranqüilizar possíveis investidores inquietos, Fox declarou,
no dia 26 de fevereiro passado, em Davos: "Ninguém deve
temer a marcha do EZLN no México. Não devemos ter medo
de incluir todos os mexicanos em um projeto que deve permitir a todos
alcançarem o desenvolvimento. A marcha será pacífica
e deveremos realizar um acordo de paz em Chiapas." 3
Três
condições para o diálogo
Em
seguida, o presidente Fox transformou-se em verdadeiro propagandista
da marcha: "Meu governo é a favor da marcha. Devemos acreditar
no EZLN e fornecer-lhe oportunidade de provar que realmente quer a paz.
O que está em jogo é nossa democracia nascente, e é
preciso mostrar que ela possui elasticidade suficiente para absorver
as diferentes formas de pensar, mesmo as mais radicais." 4 Enfim,
Fox não hesitou, retomando argumentos zapatistas, em lembrar
a vergonhosa sorte dos índios: "Basta de cinco séculos
de infâmia! Basta de ignorar os indígenas e de ser incapaz
de integrar os pobres e as populações marginalizadas!
Os índios do México foram submetidos a humilhações
racistas, a políticas públicas e privadas que levaram
à sua exclusão, a seu distanciamento da educação
e do desenvolvimento, que os impediram de se manifestar como cidadãos
livres e investidos de direitos."
O
zelo de Fox em favor da marcha acabou irritando o subcomandante Marcos:
"O presidente tenta, agora, apropriar-se da marcha zapatista e
chegaria até apresentá-la como uma marcha foxista. Essa
estratégia visa a pressionar o EZNL, tentando persuadir todo
o mundo de que a paz foi, por assim dizer, obtida, e que se ela não
for assinada é culpa apenas dos zapatistas. Trata-se de uma espécie
de chantagem. Ele busca a rendição incondicional do EZLN.
Enquanto sabe perfeitamente que reivindicamos, antes mesmo de iniciar
as negociações propriamente ditas, três modestos
sinais de boa vontade de sua parte: libertação de todos
os presos zapatistas, retirada do exército de sete posições
militares e ratificação dos Acordos de San Andrés
sobre os direitos dos indígenas, assinados pelo governo em 1996,
e que permaneceram letra morta até hoje."
A
opressão dos conquistadores
No
momento em que teve início a marcha, no dia 24 de fevereiro,
as autoridades tinham libertado apenas 60 de uma centena de detidos
zapatistas, e as forças armadas foram retiradas somente de quatro
das sete posições reivindicadas por Marcos e, finalmente,
os Acordos de San Andrés não haviam sido ratificados.
André Aubry explica: "Se Fox não tem condições
de cumprir as três condições que reivindicam os
zapatistas, isso significa que realmente não detém o poder,
que não comanda, que não é o chefe, e que o exército
está acima dele. Em suma, a tradição no México,
desde 1920, é de controlar os problemas políticos de maneira
militar. Foi o que, antes dele, tentaram fazer com os zapatistas os
presidentes Salinas e Zedillo. E não conseguiram. Se Fox quer
ter êxito e se quer realmente a paz, como não pára
de dizer, deve mostrar que realmente é o presidente, que comanda
o exército e que, em sinal de boa vontade, aceita as três
condições exigidas pelos zapatistas. Estes, por sua vez,
comprovam bem sua vontade de paz, deixando a clandestinidade e indo
desarmados para a Cidade do México. Marcos disse que o presidente
tinha até 11 de março e o fim da marcha para aceitar as
três condições. O que está em jogo merece
que o presidente faça um esforço, pois envolve a condição
dos índios. E a dívida do México em relação
a eles é imensa."
Na
verdade, durante os últimos 500 anos, as populações
indígenas foram parcialmente exterminadas, perseguidas, exploradas,
humilhadas e tiveram uma vida abominável. Foram exatamente os
sofrimentos desses índios do Chiapas, submetidos à opressão
brutal dos conquistadores, que o famoso dominicano Bartolomé
de Las Casas, bispo de San Cristóbal, descreveu no livro Breve
relato da destruição das Índias (1522). Seu testemunho
brutal permite imaginar o que significou, para os indígenas,
o pesadelo da conquista.
Uma
dívida de cidadania
Após
a independência do México, em 1810, e mesmo após
a Revolução de 1911, embora feita com o grito "Terra
e liberdade!", a sorte dos índios não melhorou. O
desdém, a exploração e o desprezo continuaram,
assim como a tentativa de sua lenta exterminação, praticada
a partir de então pelos grandes proprietários de terra,
fazendeiros do café ou do cacau, ajudados por bandos de assassinos
profissionais e milícias paramilitares. Na verdade, a Constituição
não reconhece a existência dos povos indígenas (10%
da população). Sob pretexto de que a maioria é
mestiça, o México exalta oficialmente a figura do mestiço,
mas ignora, e até despreza, seus índios.
Explica
o subcomandante Marcos: "De todos os habitantes do México,
os índios são os mais esquecidos. São considerados
cidadãos de segunda classe, uma dificuldade para o país.
Ora, não somos escória. Fazemos parte de povos com história
e sabedoria milenares. Povos que, apesar de pisoteados e esquecidos,
ainda não morreram. E aspiramos a nos tornar cidadãos
como os outros, queremos fazer parte do México sem perder nossas
particularidades, sem sermos obrigados a renunciar à nossa cultura,
em síntese, sem deixarmos de ser indígenas. O México
tem uma dívida conosco. Uma velha dívida de dois séculos,
que só poderá saldar reconhecendo nossos direitos."
O
apoio indígena
Os
índios continuam vítimas de uma espécie de genocídio
silencioso. Esquecidos por todos, "invisíveis", foram
condenados a ver suas línguas e seus valores mais do que milenares
se extinguirem inexoravelmente. Foi contra essa fatalidade que o EZLN
e o subcomandante Marcos se revoltaram.
Instalados
há sete anos nas verdes montanhas do Chiapas e nas florestas
úmidas do extremo sul do México, perto da fronteira da
Guatemala, os zapatistas denunciam a condição dramática
das comunidades indígenas. "Ser índio, no México,
não é simplesmente ter uma certa aparência física",
explica-nos o escritor e ensaísta Carlos Montemayor, autor de
um livro indispensável - Chiapas, la rébellion indigène
du Mexique 6 - para se compreender as raízes da revolta zapatista.
"É falar uma língua indígena, ocupar um território
ancestral, praticar os costumes tradicionais e aderir aos valores milenares
da comunidade em que se vive. No Chiapas, um terço da população
é indígena, ou seja, mais de um milhão de pessoas...
Com exceção dos Zoques, aparentados com os Popolucas e
com os Mixes, ali se encontra uma maioria de grupos pertencente à
família maia do México: Tzotziles, Tzeltales, Choles,
Tojolabales, Lacandonas, Mames, Mochos, Kakchikeles, num total de doze
grupos lingüísticos. Mas as importantes migrações
recentes modificaram profundamente a composição social,
ideológica e política das diferentes subregiões
da chamada floresta Lacandona, que representa a principal base social
do EZLN. Calcula-se que pelo menos 200 mil indígenas de etnias
diferentes apóiam, de uma maneira ou de outra, no Chiapas, o
EZLN."
A
singularidade do movimento
Estado
muito rico, o Chiapas possui as mais importantes jazidas de petróleo
assim como as maiores reservas de gás e fornece para o resto
do país 40% da energia hidrelétrica, o que, aliás,
permitiu ao México fornecer aos Estados Unidos a eletricidade
que faltou na Califórnia de uma maneira impressionante em dezembro
do ano passado... O sociólogo Herman Bellinghausen, um dos melhores
especialistas na insurreição zapatista, constata: "Apesar
de sua enorme riqueza, no Chiapas, um terço das crianças
jamais é escolarizado e apenas um em cada cem alunos chega à
universidade. Entre os indígenas, o analfabetismo ultrapassa
50% e sua taxa de mortalidade é 40% superior à dos habitantes
da capital..."
Para
protestar contra a sorte dos índios e, de uma maneira dramática,
chamar a atenção internacional para o destino dessas comunidades
humanas que se acham entre as mais abandonadas do mundo, o subcomandante
Marcos e o EZLN insurgiram-se, então, no dia 1º de janeiro
de 1994. Após combates que terminaram com dezenas de mortos,
os zapatistas ocuparam naquele dia quatro cidades importantes do Chiapas,
entre elas San Cristóbal de las Casas (50 mil habitantes).
"Mas,
ao mesmo tempo, e essa é a grande singularidade desse movimento,
Marcos compreende que o tempo das guerrilhas tradicionais, como as da
América Latina ao longo da segunda metade do século XX,
acabou", comenta Herman Bellinghausen. "Que o fim da guerra
fria, a queda do muro de Berlim em 1989, o desaparecimento da União
Soviética em 1991 e a ofensiva da globalização
modificaram radicalmente a situação geopolítica
e revolucionaram as estruturas do poder. Que outras forças, além
das forças políticas, conduzem, a partir de então,
os destinos dos países, entre as quais estão na primeira
fila os mercados financeiros e as lógicas livre-cambistas de
que o Acordo de Livre Comércio Norte-Americano é uma das
expressões."
O
ideal da globalização
Por
isso os zapatistas escolheram o dia 1º de janeiro de 1994, dia
da entrada em vigor do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano
(Nafta), entre o México, os Estados Unidos e o Canadá,
para irromperem na vida política mexicana. Ao mesmo tempo que
defendia a causa dos índios, Marcos marcou também de alguma
maneira, naquele dia, a primeira revolta simbólica contra a globalização.
Foi preciso esperar a mobilização internacional contra
o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) em 1998, seguida das manifestações
de Seattle contra a reunião de cúpula da Organização
Mundial do Comércio (OMC), em 1999, e das de Davos contra os
"donos do mundo", em 2000, para ver as novas revoltas se multiplicarem
contra a globalização. Marcos foi o primeiro que tentou
teorizar a articulação entre a lógica da globalização
e a marginalização dos pobres do hemisfério Sul.
Marcos
analisa: "A partir da queda do muro de Berlim, um novo super-poder
surgiu e se desenvolveu, estimulado pelos políticos neoliberais.
Os grandes vencedores da guerra fria - guerra que pode ser considerada
a terceira guerra mundial - são os Estados Unidos, mas, imediatamente,
acima dessa potência hegemônica, começa a surgir
o que se poderia chamar um super-poder financeiro, que começa
a dar as diretrizes a todo o mundo. Isso produz o que, em grandes linhas,
denominamos globalização. O ideal da globalização
é um mundo transformado em grande empresa e administrado por
um conselho de administração constituído pelo FMI,
pelo Banco Mundial, pela OCDE, pela OMC e pelo presidente dos Estados
Unidos. Nesse contexto, os governantes de cada país são
apenas representantes desse conselho administrativo, uma espécie
de gerentes locais. E o que vocês, no Monde Diplomatique, definiram
muito bem como o "pensamento único", é encarregado
de fornecer o vínculo ideológico para convencer todo o
mundo de que a globalização é irremediável
e que qualquer outra proposta seria quimérica, utópica,
irrealista. Na escala mundial, a grande batalha que se abre atualmente
- e que se poderia chamar de quarta guerra mundial - opõe os
partidários da globalização e todos aqueles que,
de uma maneira ou de outra, criam-lhe obstáculos. Tudo o que
impede o desenvolvimento da globalização está,
a partir de agora, ameaçado de destruição."
As
armas da comunicação
Qual
a relação disso com a situação dramática
dos indígenas? Continua Marcos: "Em sua fúria hegemônica,
a globalização apela para elementos da cultura. Ela aspira
a homogeneizar culturalmente o mundo. Em uma certa medida, a globalização
econômica significa a globalização do modo de vida
norte-americano. Os valores do mercado impõem-se por toda a parte.
Eles regem, a partir de agora, não só o funcionamento
dos governos, mas também o dos meios de comunicação,
da escola e até da família. O indivíduo não
pode ocupar um lugar na sociedade a não ser à medida em
que tenha uma capacidade de produzir e de comprar. Os critérios
do mercado eliminam, então, uma boa parte da humanidade que se
revelaria não-rentável. E isso diz respeito a todos os
indígenas da América Latina. A globalização
exige sua eliminação. Por meio de uma guerra aberta, se
preciso, ou de uma guerra silenciosa, se necessário. Sob pretexto
de que os índios não são úteis à
dinâmica da globalização, de que eles não
podem se integrar e poderiam até se tornar um grave problema
devido ao seu potencial de rebelião."
Conduzindo
uma luta concreta no meio das comunidades indígenas do Chiapas,
Marcos analisa sua própria prática de combate, situando-a
no contexto geopolítico internacional e no âmbito da globalização
em curso. 7 É um tipo de idealista prático, de estrategista
que usa os meios de comunicação, que utiliza a Internet
como uma arma, inundando o planeta com comunicados, textos, análises,
contos, parábolas e poesias. Estabelece relações
solidárias com centenas de associações cívicas
e dezenas de personalidade engajadas na defesa dos direitos das minorias.
Seu armamento utilizando os meios de comunicação revela-se
mais original e, em última análise, mais eficaz que o
do Estado mexicano. Desde o dia 12 de janeiro de 1994, ou seja, apenas
onze dias após o início da insurreição,
Marcos abandonou a opção pelas armas. Nem mais um tiro
foi dado pelos zapatistas, que adotaram, desde então, uma estratégia
não violenta para ganhar os corações e o espírito
da opinião pública internacional.
O
poder e os cidadãos
Chefe
carismático e promotor de um novo estilo de ação
política, sem arrogância e sem presunção,
Marcos revela-se além do mais um escritor talentoso, cheio de
humor e engraçado, citando normalmente seus autores preferidos
que, como Gramsci, caracterizam-se pelo pessimismo da razão e
otimismo da vontade: Cervantes, Lewis Carroll, Bertolt Brecht, Julio
Cortazar, Borges...
Compreende-se
por que, mesmo se marcha para a capital mexicana, Marcos não
busca o poder. Ele afirma, sorrindo: "O problema não é
conquistar o poder - sabe-se que o lugar do poder se encontra vazio,
a partir de agora. E que a luta pelo poder é uma luta pela mentira.
O que é preciso, no momento da globalização, é
construir uma nova relação entre o poder e os cidadãos.
Se assinarmos a paz, o EZLN cessará de fazer política
como fez até agora. Fará da política outra coisa,
sem capuzes, sem armas, mas a serviço das mesmas idéias.
Pois aprendemos que somos uma espécie de espelho e que refletimos,
à nossa maneira, outros movimentos de resistência através
do mundo. É por que nos sentimos solidários com outras
lutas. Como aquelas, por exemplo, dos homossexuais e das lésbicas,
objeto de todo o tipo de perseguições e discriminações.
Ou com as dos migrantes, contra os quais, por toda a parte, instalam-se
dispositivos racistas. Querem que as pessoas reneguem suas particularidades,
a cor de sua pele, sua origem ou o país em que nasceram. Querem
fazer-lhes sentir que ter nascido com aquela cor, ou naquele lugar,
é um crime. E que devem ser punidos por isso."
Política
com o rosto descoberto
Quando
vai tirar seu capuz? "No dia em que um indígena puder desfrutar
os mesmos direitos que um branco em qualquer lugar da República;
no dia em que o sistema do partido-Estado terminar e em que eleição
deixar de ser sinônimo de fraude", respondeu ele a Régis
Debray, que lhe fez a mesma pergunta 8 em 1996. A segunda condição,
por mais incrível que pareça, foi realizada, e a primeira
- se a marcha tiver êxito e se acreditarmos em Fox - deverá
ocorrer logo.
Eu
lhe faço então novamente a pergunta à medida que
a noite e a chuva começam a cair e que, aos poucos, La Realidad,
que ainda não tem eletricidade, cobre-se de sombras. E Marcos
responde: "O que é certo é que queremos nos desembaraçar
o mais rápido possível do capuz e das armas. Porque queremos
fazer política com o rosto descoberto. Mas não tiraremos
o capuz em troca de simples promessas. Os direitos dos índios
devem ser reconhecidos. Se o poder não o fizer, não só
retomaremos as armas, como outros movimentos bem mais radicais, bem
mais intolerantes, bem mais desesperados e bem mais violentos que o
nosso o farão. Pois a questão étnica, aqui e em
outros lugares, pode dar origem a movimentos fundamentalistas prontos
para todas as espécies de loucuras assassinas. Em compensação,
se tudo se passar como queremos e os direitos dos índios forem
reconhecidos, Marcos deixará de ser o subcomandante, o líder
ou o mito. Será compreendido, então, que a principal arma
do EZLN não terá sido o fuzil, mas a voz, as palavras.
E, quando a poeira levantada por nossa insurreição se
assentar novamente, as pessoas vão descobrir uma verdade fundamental:
em toda essa luta, essa resistência e essa reflexão, Marcos
terá sido apenas um combatente a mais. É por isso que
digo sempre: se você quer saber quem é Marcos, quem se
esconde por trás de seu capuz, pegue um espelho e mire-se, a
fisionomia que você descobrir é a de Marcos. Pois somos
todos Marcos."
A
noite caiu em La Realidad. Galáxias de vagalumes cintilam no
escuro. Atormentados pela organização da marcha, Marcos
e dois de seus amigos zapatistas se perdem na floresta, devorados de
repente pela vegetação e pelas sombras. Do sucesso dessa
marcha depende, em grande medida, a sorte dos povos indígenas
do México. E ela será um sucesso? Chegam-nos algumas palavras
do escritor José Saramago que dão novamente esperança
a todo o mundo: "Os zapatistas cobrem o rosto para se tornar visíveis
e, de fato, finalmente nós os enxergamos. Agora eles marcham
para a capital mexicana. Quando nela entrarem, no dia 11 de março,
a Cidade do México será a capital do mundo."
Traduzido
por Wanda Caldeira Brant.
*
Diretor geral de Le Monde Diplomatique.
1 "Lettre du sous-commandant Marcos au nouveau président
du Mexique", Dial (38, rue du Doyenné, 69005 Lyon), 16 de
dezembro de 2000.
2 La Jornada, México, 8 de janeiro de 2001.
3 Proceso, México, 4 de fevereiro de 2001.
4 Excelsior, México, 18 de fevereiro de 2001.
5 La Jornada, 15 de fevereiro de 2001.
6 Carlos Montemayor, Chiapas, la rébellion indigène du
Mexique, traduzido do espanhol por Rémy Kachadourian, ed. Syllepse,
Paris, a ser publicado no final de março de 2001.
7 Ler, especialmente, do sub-comandante Marcos, Desde las montañas
del Sureste mexicano, ed. Plaza y Janés, México, 1999.
8 "La guérilla autrement", artigo de Régis Debray,
Le Monde, 14 de maio de 1996.