Comunicado do SubComandante Marcos


Por Emilio Gennari (Trad.) 16/02/2003
Novo comunicado do EZLN

Hoje, 16 de fevereiro de 2003, se completam sete anos do momento histórico em que Governo mexicano e EZLN assinaram os Acordos de San Andrés sobre direitos e cultura indígenas.
A escolha desta data para o envio da tradução é só para lembrar que não esquecemos da traição consumada na reforma constitucional de abril de 2001, onde governo e parlamentares violaram descaradamente o conteúdo dos copromissos assumidos em 1996, e que, dia após dia, reafirmamos o compromisso ao lado da luta e da resistência zapatista.
Boa leitura e um "Não à Guerra !" do tamanho do mundo.
Grande abraço
Emilio.

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL.

MÉXICO.

Fevereiro: Puebla, a segunda estela.
(A resistência e a outra igreja, a dos equivocados).

A vela e a sombra continuam tremendo. Afastando a fumaça e a folha de “janeiro” do calendário, a mão revela FEVEREIRO. Contraditório e luminosos, e, com ele, outro olhar, outra mão e outra palavra: PUEBLA.

É fevereiro, um mês que convoca a história, com todas as suas luzes e contradições. É Puebla, terra onde as contradições anunciam esperanças.

Puebla. De acordo com o INEGI, no ano 2000, conta com mais de 5 milhões de habitantes, dos quais mais de meio milhão, maior de cinco anos, fala uma língua indígena. No que é hoje o seu território sobrevivem indígenas Nahuas, Totonacas, Mixtecos, Otomíes e Popolucas.

É fevereiro e é Puebla. Sobre Tehuacán, uma pequena nuvem azul, delicada como princesa, emoldura e não oculta o sol.

Como se o fizesse seu vassalo, a pequena nuvem obriga o sol, não a seguir seu obstinado trajeto rumo ao ocidente, mas sim a voar rumo ao norte. Lá, em plena Serra Mixteca, se vislumbra um pico rodeado de barrancos. Sobre ele se distingue uma muralha, como se este fosse um lugar preparado para proteger a resistência. Parece que se trata de Tepexi, o velho. Os nahuas o chamaram de “Pedra Partida” e os popolucas o nomearam de “Monte Pequeno”. Aí repousam e descansam enquanto o sol conta à nuvem uma história que a faz corar e lhe ensina:

Contam os antigos mixtecos que o mundo nasceu da união de duas grandes árvores, na solitária Apoala, ao pé de uma gruta, no rio Achiutl. Unidas por suas raízes, estas duas árvores das origens criaram o primeiro casal mixteco e dos filhos de seus filhos nasceu Yacoñooy, o que atira flechas no sol.

Contam estes antigos que Yacoñooy era um guerreiro pequeno, mas valente e audacioso, que nada temia por grande e poderoso que parecesse.

Porque, dizem estes sábios indígenas, se carrega a estatura no coração e costuma acontecer que aqueles que parecem pequenos de fora são grandes na grandeza do seu coração; e aqueles que se apresentam como fortes e poderosos em sua aparência, na verdade, são de coração pequeno e frágil.

E dizem também que o mundo é grande e está cheio de gigantescas maravilhas porque pessoas de físico pequeno souberam encontrar em seu interior a força que engrandece a terra.

Contam também que o tempo marcava os primeiros meses do calendário da humanidade e que Yacoñooy saiu para ver novas terras para fazê-las crescer com o trabalho e a palavra. Encontrou-as e viu que o sol aparecia como o único e poderoso dono de tudo o que se iluminava à sua luz. E naquele momento o sol matava a vida do que era diferente e só aceitava as coisas que lhe fossem espelho e prestassem homenagem à sua grande grandeza.

E contam que, vendo isso, Yacoñooy desafiou o sol dizendo-lhe: “Você, que com sua força domina estas terras, eu te desafio para ver quem é maior e pode assim dar grandeza a estes solos”.

Confiando em seu poder e força, o sol riu e ignorou o pequeno ser que, do chão, o desafiava. Yacoñooy voltou a desafiá-lo e assim falou: “Não me espanta a força da tua luz, tenho por arma o tempo que amadureceu em meu coração”, e tendeu o seu arco, apontando o flecha bem no centro do soberbo sol.

O sol riu de novo e então apertou o cinturão de fogo do seu calor de meio-dia em torno do rebelde, para encolher ainda mais o pequeno.

Mas Yacoñooy se protegeu com o seu escudo e ficou aí resistindo enquanto o meio-dia cedia o lugar à tarde. O sol via impotente como sua força diminuía com o passar do tempo, e o pequeno rebelde continuava aí protegido e resistindo debaixo do seu escudo, esperando o tempo do arco e da flecha.

Vendo que o sol se debilitava com o passar do tempo rumo ao entardecer, Yacoñooy saiu do seu refúgio e, empunhando o arco, feriu até sete vezes o grande sol. Com o crepúsculo, o céu inteiro foi se tingindo de vermelho e, por fim, o sol caiu, mortalmente ferido no solo da noite.

Yacoñooy esperou um tempo, e vendo que a noite impedia ao sol de seguir o seu combate, disse: “Venci. Com o meu escudo resisti ao seu ataque. Fiz do tempo e da sua soberba os meus aliados. Guardei a minha força para o momento necessário. Venci. Agora a terra terá a grandeza que o coração dos meus semear em seu seio”.

E contam que, no dia seguinte, o sol voltou, recuperado, para tentar reconquistar a terra. Mas já era tarde demais. O povo de Yacoñooy já colhia o que havia semeado durante a noite.

Foi assim que, por ser vencedor no céu, Yacoñooy é chamado “O que atira flechas no sol”, e os mixtecos foram chamados habitantes das nuvens.

Desde então, os mixtecos pintam em xícaras e cabaças a vitória de Yacoñooy. Não para se vangloriar pela vitória, mas sim para lembrar que a grandeza se traz no coração e que a resistência é também uma forma de combate.

De céu de Tepexi, a nuvem segue até Puebla de Zaragoza, anotou a história e com dissimulação disfarça de chuva as lágrimas que lhe limpam o rosto e cobrem a cidade.

Puebla, a cidade capital, sede do governo do estado. “Terra onde foi quebrado o chamado Plano Puebla-Panamá”, dirá a história assim como agora diz...

Que quando o governo estadual anunciou a construção de uma rodovia com pedágio da capital do estado até Tecamachalco, através da expropriação de 800 hectares para o parque Milenium, os camponeses da região se rebelaram e chegaram a avisar que, se continuassem com a expropriação, se levantariam em armas.

Os camponeses argumentaram, não sem razão, que as expropriações nunca trouxeram benefício algum aos atingidos. Três governadores têm realizado expropriações abertas, que nem sequer cumprem com o princípio legal de expropriar para a utilidade pública, pois fizeram isso para beneficiarem particulares.

Em Tepeaca, a oposição dos camponeses contra a expropriação de terras para a construção da rodovia Puebla-Tecamachalco e a construção do parque Milenium foi fundamental. Uniram-se na União Camponesa Emiliano Zapata Vive, e, em primeiro lugar, procuraram o diálogo com o governo estadual através da Secretaria de Vias Públicas e Transportes do Estado. Ao pedido de diálogo e informação, os funcionários e a polícia responderam com ameaças e intimidação, ocultação dos planos (os camponeses conseguiram uma cópia do plano original que inclui a instalação de maquiladoras e outras empresas, inclusive de um campo de golfe financiado pela fundação de Carlos Peralta) e promessas pouco confiáveis (como em outras ocasiões), de empregar os camponeses expropriados nas novas plantas industriais. Os camponeses da União Emiliano Zapata Vive rechaçaram esta possibilidade, já que levantaram seu direito de continuar sendo camponeses e estão dispostos a defenderem com a vida suas terras, as mesmas que querem pagar, como garantem, “por um valor menor do que o de um refresco”.

O projeto Milenium parou desde meados de 2002, em parte por falta de dinheiro e por pressões entre os grupos de cima que disputam a maior fatia, mas, sobretudo, pela firme defesa da terra feita pelos camponeses de Tepeaca e arredores.

A história vem de antes:

Quando Mariano Piña Olaya governava estas terras, expropriou, com o pretexto de construir a rodovia Puebla-Atlixco, grandes extensões de terra que, em seguida, se transformaram em lotes exclusivos. Perseguições, prisões, uso constante da força pública para desalojar os camponeses, foram algumas das ações que caracterizaram esta “expropriação”.

Durante o governo estadual de Manuel Bartlett Díaz (esta personagem que, com o comendador Diego Fernández de Cevallos e o mordomo Jesus Ortega, desenharam a contra-reforma da lei indígena) parte dos terrenos expropriados por seu antecessor foram reordenados em sua propriedade para a criação de um centro comercial exclusivo, de um clube de golfe (La Vista) com seu também exclusivo loteamento habitacional do mesmo nome, avaliando e vendendo lotes em dólares. Agora o senhor Bartlett aparece como “patriota” defensor da soberania nacional, opondo-se à privatização do setor elétrico... até que cheguem ao preço (em dólares, de preferência).

Durante o mesmo governo, se colocou em andamento o Plano Passeio de São Francisco que incluía 20 conjuntos residenciais do Centro Histórico na parte oriental da cidade capital e onde viviam, nos bairros mais antigos de Puebla, milhares de pessoas de bem poucos recursos. A “expropriação” foi feita com o conseqüente desalojamento de pessoas pobres às quais não se oferecia nenhuma opção de moradia. Os imóveis foram avaliados e pagos aos proprietários a preços muito baixos, mas o projeto não foi realizado por completo, mas sim foi reduzido a cinco conjuntos.

Desta superfície, a maior parte está desocupada e só foi construída uma imitação grosseira de um centro de convenções que funciona parcialmente. Os tão alardeados investimentos estrangeiros não chegaram para instalar hotéis de luxo, comércios, várias salas de cinema, enormes estacionamentos, áreas verdes e até uma “pequena lagoa” que, prometeram, seria como a dos dois centros comerciais de Houston. A cidade sofreu uma grande destruição em sua parte mais antiga, aí onde, em suas origens, foi fundada Puebla. Ficou então evidente a cumplicidade da delegação do Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH) para realizar esta destruição do patrimônio histórico e arquitetônico.

Se com o governo de Guillermo Jiménez Morales a pressão se dirigiu contra o campo (com a ajuda da enteada de Raul Salinas de Gortari: Antorcha Campesina), com Piña Olaya o alvo foi a cidade. Criou-se assim a polícia montada, o chamado Comando Canófilo e a polícia secreta, e se colocaram em marcha três grandes corpos de operação: o SWAT, o Laurel e o Mercúrio. Seus objetivos? O controle repressivo de Puebla, Atlixco, Texmelucan. Resultados? Matanças (Jocalpan, em 1991), assassinato de líderes (Gumaro, Melitón Hernández, Sebastián Garcia) e a perseguição a movimentos democráticos (o ataque contra a emérita Universidade Autônoma de Puebla, as agressões contra o sindicato da Volkswagen e o dos telefônicos).

Quando chegou Manuel Bartlett, encontrou um terreno abandonado em dois sentidos: primeiro porque o seu predecessor iniciou o processo de limitação do uso das terras; e, segundo, que tanto Jiménez Morales como Piña Olaya haviam feito a maior parte do trabalho de repressão, a maior parte do processo de aniquilação de líderes e de contenção do movimento camponês, urbano, popular e dos movimentos sindicais.

Então, Bartlett lançou o seu projeto (criado por três empresas de consultoria estrangeiras: Alzati. McKenzie e MKS), “Megaprojeto Puebla Plus”, que incluía um setor periférico “ecológico”, um aqueduto de Nealtican para a cidade de Puebla, um aterro sanitário na região sul da cidade, e a desapropriação da área principal dos bairros do centro histórico de Puebla para a realização do projeto Passeio de São Francisco.

Legalização do desalojamento, é isso que está por trás da lei Cevallos-Bartlett-Ortega.

A nuvem continua seu vôo sob o céu e sobre o solo de Puebla. Neles vê sim a exploração, mas também a resistência.

Nos centros urbanos e seus arredores têm proliferado as maquiladoras. Estas, em sua grande maioria, atuam com contratos de proteção que se resumem a: baixos salários (10 vezes menos do que é pago nos EUA e 5 vezes menos que em Taiwan), horas-extras não pagas, mais de oito horas de trabalho por dia. De acordo com a denúncia da Rede de Solidariedade e Defesa do Trabalho, organização de advogados, psicólogos e antropólogos que assessora gratuitamente os trabalhadores, o TLC está acabando com a indústria têxtil de Puebla, e em empresas como a Kukdong batem nos trabalhadores como se a história tivesse voltado à época do porfirismo.

Sim, os principais conflitos oriundos da maquiladora vêm dos maus-tratos aplicados aos trabalhadores, da falta de contribuições e, em casos extremos, dos atrasos nos pagamentos dos já míseros salários semanais. E preocupa o fato de que ambos os extremos da autoridade governamental, que são a força pública e a Comissão Estadual de Direitos Humanos, se colocam do lado dos empresários coreanos e contra os protestos das trabalhadoras mexicanas.

Mas, sempre longe dos meios de comunicação e das ridículas campanhas eleitorais, a resistência nas terras de Puebla aumenta.

No município de Puebla, o chamado Movimento Cidadão exige “o cancelamento do programa de Desenvolvimento Urbano Municipal bem como da Declaração de Utilidade Pública por não ter sido consultada nossa população conforme manda o artigo 10 inciso XIII da Lei de Desenvolvimento Urbano do Estado de Puebla”.

Em San Lorenzo Almecatla se denunciam as ações, por parte do governo, para expropriar suas terras comunais e ejidais com a finalidade de implantar polpudos negócios com as empresas que querem implantar seus parques e áreas industriais na região. O governo alega uma insuficiência de áreas para implantar parques industriais na região que hospedaria potenciais investimentos mexicanos e estrangeiros que desejem instalar-se em Puebla.

Já em 1997, sem o mandato da Assembléia Geral dos ejidatários, 36 ejidatários foram obrigados a assinar um contrato com a empresa alemã Lagermex e Bralemex SA de CV recebendo pelo uso da terra $ 27,50 Pesos por metro quadrato, irregularidade perante a qual o Representante Ejidal reivindicou da empresa e exigiu a devolução das terras. O agora ex-governador Manuel Bartlett, para garantir à empresa a posse da terra, recorreu ao procedimento de expropriação para “fim público” diante do qual os camponeses entraram com uma liminar. Por sua vez, o governador Melquíades Morales, através dos mesmos procedimentos de Bartlett, conseguiu outros 10 hectares de terra agora para a empresa Loteadora Industrial do Norte.

No campo, em Huehuetla, há uma tendência a recuperar a cultura e a identidade totonaca. Neste conflito, se impulsiona o projeto educativo e o reconhecimento dos lugares sagrados como é o caso de Kgoyomachuchut onde estão os restos mortais de um templo ancestral. O Centro de Estudos Superiores Indígenas “Kgoyom” se encarrega de dar a educação média superior (preparatória) através de um programa de estudos apegado à cultura totonaca, onde se ensina medicina tradicional, língua totonaca, história a partir da história da comunidade, da cultura e das demais culturas; etnoagricultura e computação entre outras matérias. Este projeto se mantém como eficiência acadêmica através da assessoria de profissionais da sociedade civil, altamente capacitados em diferentes áreas, que oferecem o seu trabalho como serviço, e que vêm da CESDER, da IBERO, da UDLA e da BUAP.

A organização dos indígenas totonacas está crescendo para transformar-se numa organização regional, a Unidade Totonaca-Nahua, Unitona, e avançar assim na defesa dos direitos e da cultura indígenas.

O movimento cidadão, organização de Tlaxcalancingo, município de Cholula, empreendeu uma resistência específica contra o recurso legal da “expropriação para fins de utilidade pública”, já que, através dele, os três níveis de governo podem alterar o uso do solo agrícola e expropriar terrenos ejidais ou comunais de forma quase impune. São estas suas palavras: “Nós consideramos duas alternativas: uma que, ao saber de uma autoridade de nossas comunidades que estão fazendo planos às escondidas do povo, nós os obriguemos a fazer com que nos consultem como estabelecido pela lei e que nós sejamos participes destes planos de desenvolvimento. Fizemos isso em Tlaxcalancingo, mudamos esta lei que nos diziam que era muito difícil porque eram decisões federais e que havia muitos interesses estrangeiros e tudo isso, bom, pois, nós sensibilizamos a comunidade, lhe dissemos da enganação em que caíram quando nos tiraram os 1082 hectares e, bom, se sensibilizaram e apoiaram.

E outra alternativa é que nós consideramos colocar uma muralha, é a defesa do resgate, da preservação da nossa cultura, se nós preservarmos, se nós educarmos nossos filhos, e todos os cidadãos, na importância de continuar preservando a nossa cultura, esta é uma barreira, uma barreira que se coloca, porque, bom, na melhor das hipóteses vocês estão num centro urbano, nós estamos a 100 KM, agora já o temos ao virar a esquina, nós achamos que independentemente da defesa política, da resistência política, se deve fazer também uma resistência cultural; nós estamos resgatando agorinha nossas tradições, nossos costumes, ou seja, nossa cultura, para que, desta maneira, possamos resistir diante dos embates destes planos de desenvolvimento que nos atingem de muitas formas”.

Já entardece quando a nuvem chega a uma Cholula eriçada de torres e campanários de igrejas. Cholula. Não é seu primeiro nome, nem as cúpulas das igrejas seu único céu. “Tlamachihualtépetl” foi seu primeiro nome e significa “pico feito à mão”.

Isso que se vê aí, com o vulcão Popocatépetl às suas costas, é o templo da Virgem dos Remédios, colocado em cima de um pico feito por mãos de homens que, como a montanha, têm a cor da terra.

Quem dá suporte e sustentação ao templo católico é a grande pirâmide de Cholula, a maior da América Central. Mas esta igreja parece mais ter sido imposta sobre o alicerce. Como se quisesse dizer “Venci e domino aqueles que são o material de construção destes solos”.

Cholula. Aqui a nuvem deve deixar as alturas para ver e aprender o que há nas grutas que o conhecimento abriu na terra. Seguindo uma série de túneis, a nuvem não encontra só a história humana que levantou esta maravilha, mas também a história atual. Porque aqueles que construíram também o chamado “Pico de Jade”, “Pico Precioso” ou “Pico Divino”, e sobre cujo sangue e cultura se levantou a igreja que abençoou a espada conquistadora, ainda hoje continuam sendo a cor da terra.

Mas há igrejas e igrejas, aprende a nuvem quando caminha rente ao solo.

É verdade, existe a igreja que herdou a soberba, a estupidez e a crueldade do conquistador hispânico. O alto clero que escolhe ficar só do lado do poderoso e em cima dos que, em baixo, são a cor da terra, sem que para isso importe o tempo marcado pelo calendário. O Onécimo Cepeda que, com outros nomes, se reproduz em todo o território mexicano distribuindo bênçãos nos campos de golfe, nos restaurantes de luxo, nas mesas soberbas onde tudo o que há é em abundância, menos a dignidade e a vergonha.

A igreja que, quando reza, pede o PAN egoísta ao qual serve, e do qual se serve para estar acima daqueles que estão em baixo.(1) A igreja da opressão e da soberba. Agora herege, adora os deuses do Poder e do dinheiro. A que reza para que a conquista continue e não pare até eliminar os primeiros habitantes destes céus. A que é indulgente com o crime feito governo e empresa, e condena ao fogo do inferno e terrestre a rebeldia daqueles que pedem justiça e paz.

Mas, é verdade, há também outra igreja. A que herdou a humildade, a honestidade e a nobreza. O baixo clero que está na opção pelos pobres. A igreja que escolhe estar do lado dos marginalizados sem que para isso importe a festividade religiosa. Os párocos, freiras, seculares e homens de fé que não impõem e nem se impõem, que trabalham em baixo, ombro a ombro, com aqueles que fazem parir a terra, andar as máquinas, caminhar as mercadorias.

Esta outra igreja a formam os equivocados. Porque onde diz “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, eles lêem “amarás o teu próximo mais do que a ti mesmo”. E onde diz “bem-aventurados os pobres de espírito porque deles e o reino dos céus”, eles lêem “bem-aventurados os que se aproximam dos pobres porque com eles será o reino de justiça na terra”. E onde diz “não roubarás”, eles lêem isso mesmo: “não roubarás”. E onde diz “não mentirás”, eles lêem “não prepararás a resignação e o conformismo”.

Em Puebla e em toda a república mexicana, esta outra igreja caminha de mãos dadas com os povos indígenas e com eles resiste e luta.

A nuvem vá embora, já escondida entre a noite de fevereiro. Nesta mesma folha do calendário, longe, nas montanhas do sudeste mexicano, uma equivocada em toda a sua vida, uma velha amiga velha, uma mulher pequena de estatura e de grande coração, reza. Mas não reza para pedir o próprio alimento, mas sim para que não faltem nem o caminho nem o amanhã no andar daqueles que, sem nome e sem rosto, são a cor que são da terra...


Das montanhas do sudeste mexicano.

Subcomandante Insurgente Marcos.

México, janeiro de 2003.

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(1) Em espanhol, a palavra PAN significa “pão”, mas é também a sigla do Partido de Ação Nacional, ao qual pertence o presidente Vicente Fox.

Este comunicado foi publicado no La Jornada em 03/02/2003.


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