Carta
ao Sr. Juan Gelman
Para: Juan Gelman, América Latina
De:
SupMarcos, México
Don Gelman:
Faz dias que esta carta anda coçando entre as mãos. Foi
levada por um ou outro vento, mas não a levaram muito longe.
Parece que hoje, finalmente, ela se deixa escrever e, assim, como sua
luta obstinada, com raiva e digna teimosia, começam a sair as
letras, as palavras, os sentimentos. Talvez se lembre: você me
entrevistou naqueles tempos do Encontro Intercontinental e me fez falar
de poesias e outros anacronismos. Eu o conheci através de seus
poemas, num desses livros que costumávamos carregar nos primeiros
solidários anos da guerrilha que, em seguida, o mundo conheceria
como Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Sei
muito bem que o título soará estranho para muitos, mas
não para você, provado como foi e está sendo em
seu longo ir e vir levando estas lembranças e memórias
que alguns chamam notícias. Seja como for, parece excêntrico
colocar o tamanho de uma bala como título de uma carta: "5.56
mm. NATO". Assim, permita-me discorrer um pouco sobre o tema, afinal
de contas sou apenas um soldado, um soldado muito diferente, mas, no
fim das contas, um soldado.
"5.56 mm. NATO" é a classificação militar
para referir-se à bala que, entre outros, é usada pelo
fuzil M-16 (e suas variantes A-1 e A-2), pelo AR-15 - ambos de fabricação
norte-americana - pelo Galil israelense, a Steyr Aug austríaca
e outras armas. A classificação comercial é "calibre
223". Sim, é a mesma bala, mas uma é para uso militar,
muito freqüente entre os exércitos da América Latina,
e a outra é para as caçadas.
A história desta bala é a história de uma mentira.
Quando as grandes potências militares caíram no despropósito
de humanizar a guerra (antes nas Convenções de Haia, depois
na de Genebra), foi acordada a proibição das balas expansivas,
ou dum-dum. O raciocínio foi impecável: numa guerra, o
objetivo é provocar baixas ao inimigo, e por baixas se entendem
mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros.
Logo, para humanizar a guerra o que deve ser feito é reduzir
o número de mortos e feridos. Por isso, se pronunciaram pelo
uso de "balas duras", que apenas perfuram a carne humana mas
não levam à morte quando não atingem nenhum órgão
vital, e se a provocam não causam "dor excessiva".
Daí que se proibiram as balas expansivas que, ao perfurarem o
corpo se abrem ou se fragmentam, ou seja, "se expandem", e
o estrago que provocam é maior que o das balas simples, pois
não afetam só o lugar por onde penetram, e sim uma área
maior.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO,
em suas iniciais em inglês), encabeçada pelos Estados Unidos,
adotou a bala calibre 7.62 mm., que, desde então, ficou conhecida
como "7.62 NATO". O Pacto de Varsóvia, encabeçado
pela então URSS, adotou o mesmo calibre, 7.62 mm., mas com o
cartucho mais curto que o da 7.62 NATO (51 mm. o da NATO e 39 mm. o
soviético). A arma básica de infantaria utilizada pelo
Pacto de Varsóvia foi o fuzil automático Kalashnikov (AK)
cujo último modelo, o AK-47, prolifera no mercado negro. Por
sua vez, a OTAN (e os países periféricos) adotou diversas
armas para o calibre 7.62 mm. x 51 mm., ou 7.62 NATO. Entre eles esteve
o Fuzil Automático Leve (FAL), de fabricação belga,
e, mais recentemente, o G-3, de patente alemã. O Exército
mexicano trocou o FAL pelo G-3 e chegou a fabricá-lo depois de
adquirir os direitos.
Mas, no auge da Terceira Guerra Mundial (como a chamamos nós
zapatistas) ou guerra fria (como é conhecida na história
atual), os norte-americanos procuraram a forma de tornarem suas armas
mais letais, ao mesmo tempo em que burlavam os tratados que eles mesmos
haviam assinado. Foi assim que, entre os anos de 1957-1959 e a pedido
do Comando da Armada Continental (EUA), nasceu a bala calibre 5.56 mm.
(regularizada em 1964). Mais fina que a 7.62 mm. e muito mais rápida,
a 5.56 mm. não apresentava vantagens só na hora de carregá-la
(um soldado de infantaria podia levar até o dobro de munições
de 5.56 mm. do que de 7.62 mm., mas com o mesmo peso e em menor espaço),
mas significava também grandes lucros para as empresas bélicas
norte-americanas (tão inocentes como a General Motors, a General
Eletric, a Ford, etc.), porque sua aprovação significava
substituir totalmente o armamento de infantaria dos Estados Unidos (que
naqueles tempos era de carabinas M-1 e M-2, o velho Garand e a Thompson),
ou seja, mais vendas.
Una nova bala significava uma nova arma, e toda a indústria bélica
se concentrou em demonstrar as qualidades do novo calibre. Para convencer
o Pentágono apresentaram a melhor característica da bala
calibre 5.56 mm.: tinha uma ponta fraca. O que é que isso significa?
Bom, que uma bala como a 5.56 mm., com ponta fraca, se dobra ao entrar
em contato com a carne e começa a girar de forma errática
no interior do corpo. Resultado? Mais terrível que a expansiva,
pois, se o orifício de entrada da bala era, de fato, de 5.56
mm., o de saída (caso isso acontecesse) era até 10 vezes
maior. Quando a bala não saía, ela destruía ossos,
músculos, órgãos. Conclusão: sem usar balas
expansivas, o exército norte-americano começou a utilizar
uma bala mais letal, com maior capacidade de matar e que deixava com
menores chances de vida o alvo humano que a recebia (além de
aumentar de forma considerável o sofrimento do ferido).
Estou falando do auge da guerra fria. Naqueles dias, os Estados Unidos
imaginavam o futuro cenário da guerra mundial em terras européias
e tendo como inimigos os exércitos do Pacto de Varsóvia.
O futuro "teatro de operações" estava perfeitamente
localizado numa longa linha que separava a Europa Ocidental da Europa
Oriental: grandes cidades, amplas e rápidas vias de comunicação,
muitos espaços abertos, etc. De acordo com esta visão,
a lógica do Pacto de Varsóvia era simples: lançar
ondas e mais ondas de soldados e blindados até vencer a resistência
inimiga. Por isso, os exércitos dos dois pactos (de Varsóvia
e da OTAN) substituíram suas armas básicas de infantaria
por fuzis de assalto (grande volume de fogo a um curto alcance, menos
de 500 metros). A Guerra da Coréia havia demonstrado os limites
do M-14 (versão semi-automática do Garand M-1). Foi assim
que nasceram os protótipos do que, em seguida, seria chamado
de M-16, fabricado pela Colt em Connecticut, Estados Unidos.
Mas tanto a bala como o fuzil de assalto precisavam ser testados "em
condições reais". Foi assim que o governo norte-americano
decidiu que seu quintal incluía o sudeste asiático e interveio
militarmente no Vietnã. Com os novos M-16 e sua reluzente calibre
5.56 mm., as tropas dos Estados Unidos invadiram o Vietnã, e
os combates provaram que o M-16 e a calibre 5.56 mm. não eram
tão bons como diziam. A bala é extremamente veloz e leve,
assim que qualquer toque contra uma folha ou um graveto mudava radicalmente
sua trajetória (e, como era de se esperar, na selva asiática
abundavam as folhas e os gravetos); além do mais, o fuzil era
muito afetado pela umidade, um mecanismo pouco eficiente do ferrolho
provocava seu entupimento, com a conseqüente falha no disparo.
Para os soldados norte-americanos não foi nada agradável
ver chegar uma onda de vietcongs (como chamavam os guerrilheiros vietnamitas),
apontar contra eles seus M-16, disparar e ouvir só um "clic".
Para o Pentágono não causava maiores preocupações
que alguns de seus rapazes perdessem a vida e os combates nas selvas
vietnamitas. Afinal, nem a arma e nem a bala tinham como cenário
esta guerra, e sim a guerra futura em território europeu e contra
o Pacto de Varsóvia. O fuzil foi sendo modificado ao longo da
guerra no Vietnã: reforçou-se a antecâmara para
resistir à corrosão da pólvora, instalou-se uma
alavanca adicional ao ferrolho para garantir seu fechamento e ajustou-se
a mola de recuperação para reduzir a cadência de
tiro. Assim nasceram o M-16 A-1 e o M-16 A-2. Com a calibre 5.56 mm.
e o fuzil M-16 como arma básica de sua infantaria, o exército
dos Estados Unidos já estava pronto para uma nova guerra mundial.
Paralelamente
ao M-16, foi desenvolvido o AR-15 (versão semi-automática
daquele), que seria logo exportado para os países da América
Latina, mais concretamente para suas polícias e seus esquadrões
de contra-insurreição.
No México, o AR-15 é a arma predileta dos policiais da
Segurança Pública estadual. Especializados em assassinar
camponeses e indígenas, a polícia de Segurança
Pública de Chiapas experimentava alegremente os efeitos da calibre
5.56 mm. nos corpos morenos de suas vítimas. Quando descemos
das montanhas, no dia 1º de janeiro de 1994, nos deparamos com
muitos AR-15 que os valorosos policiais abandonavam em sua grandiosa
fuga; mas essa é outra história.
Quando o senhor Zedillo toma o poder no México, depois do assassinato
de seu predecessor (Luis Donaldo Colosio), e fracassa a sua tentativa
militar de fevereiro de 1995, ele e o Exército federal decidem
ativar grupos paramilitares para combater o EZLN "sem o desgaste
na opinião pública causado pela atuação
direta das tropas federais" (Memorando interno da presidência
à SEDENA, documento classificado, março-abril de 1995).
Os detalhes foram resolvidos pelo especialista em contra-insurgência,
o general Mario Renán Castillo, sob a supervisão de seu
superior, o general Enrique Cervantes Aguirre, pelo então governador
de Chiapas (e hoje agregado da embaixada do México em Washington),
Ruiz Ferro, e o Partido Revolucionário Institucional (PRI). O
acordo era este: o Exército entraria com a instrução
e a direção estratégica e tática, o PRI
colocaria a tropa e o governo estadual daria o armamento e os equipamentos.
Assim que, logo, os novos grupos paramilitares em Chiapas se viram dotados
de fuzis de assalto AR-15 e AK-47 (conseguidos no mercado negro patrocinado
pelos militares).
Acteal é a palavra que define cabalmente a estratégia
governamental em Chiapas. As balas que destroçaram os 45 homens,
mulheres e crianças nessa comunidade, no dia 22 de dezembro de
1997, eram, em sua maioria calibre 5.56 mm., algumas 7.62 mm. e um ou
outro 22 para fuzil de cano longo. As três crianças que,
alguns meses atrás, foram para os Estados Unidos para serem atendidas
por cirurgiões especializados, apresentam os efeitos do calibre
da mentira: o 5.56mm.
Hoje, 05 de janeiro de 2000, 30 indígenas zapatistas do município
de Chenalhó, Chiapas, sofreram uma emboscada por parte de policiais
da Segurança Públicas e de priistas. Foram atacados enquanto
saíam para colher o seu café. Após horas de tortura,
o governo libertou 27 deles e deixou presos os outros três, acusados,
diz ele, de provocar a matança de Acteal. O papel ridículo
do governo não se limita ao fato, conhecido por todos, de que
foi Zedillo que provocou a matança do dia 22 de dezembro de 1997,
e tampouco ao despropósito de querer responsabilizar os zapatistas,
que são apenas vítimas dos paramilitares. Não,
vai mais além, porque a detenção se dá no
contexto de uma suposta iniciativa de paz do governo federal que oferece,
entre outras coisas, a libertação dos zapatistas presos.
E não só não os liberta, como aumenta o seu número
com os pretextos mais ridículos. Uma mentira faz com que hoje
se somem mais três indígenas às centenas de zapatistas
presos pelo simples e imperdoável fato de serem isso mesmo: zapatistas.
Eu sei que a esta altura da carta você se pergunta porque ela
tem você por destinatário. Bom, acontece que alguns meses
atrás li na revista Proceso que você derrubou um general
argentino, coisa pouco freqüente, e que fez isso com palavras (algo
inaudito). A razão do seu empenho foi então ofuscada pelo
escândalo do affaire Clinton-Lewinski (não sei se é
assim, o escrito pornô não é a minha especialidade).
Mas agora, mais recentemente, ficou mundialmente conhecida a sua campanha
para encontrar seu neto(a). Agora, o mundo inteiro sabe que seu filho
e sua nora foram assassinados pela ditadura militar argentina (talvez
com uma bala calibre 5.56 mm.), e que o filho(a) de ambos foi vendido
no mercado negro das crianças que, além da tortura, parece
ser a especialidade dos exércitos latino-americanos. E este negócio
da compra-venda dos filhos dos desaparecidos políticos vem tendo
o mesmo efeito da 5.56 mm.: não só penetra ferindo, como
começa a girar lá dentro causando mais e mais estragos.
É como se o desaparecido deixasse em herança a seus filhos
a sua mesma condição. Ou seja, um crime sofrido pela vítima
... e por aqueles que seguem na sua descendência.
Vi a sua carta ao governo do Uruguai e li sua resposta à resposta
desse governo (no La Jornada). Li ambas e entendi porque havia caído
aquele general argentino. Tenho certeza de que ele nunca imaginou que
um dia teria que enfrentar um poeta e, o que é pior, um poeta
insensato. Porque você é isso mesmo, um poeta (ainda que,
às vezes, se disfarce de jornalista), e é insensato porque
agora, nos dias de hoje, é assim que chamam aos que não
se rendem e nem se conformam.
Enfim, o que queria dizer-lhe é que nós zapatistas o apoiamos,
que desejamos que o ou a encontre, que seu neto ou neta (que já
deve ser uma homem ou uma mulher feita) merece saber que teve os pais
que teve e a sua história. E, sobretudo, merece saber que tem
um avô que sempre o ou a procurou, que nunca se rendeu, que derrubou
um general com algumas palavras, que comoveu o mundo com sua causa e
que o mate já não é tão amargo quando se
toma com alguém que queremos, e outras coisas que, com certeza,
você vai querer que ela ou ele saiba.
E isso de calibre 5.56 mm., Acteal, paramilitares e sua luta vêm
ao caso porque, agora que foi colocada a polêmica para ver se
o segundo milênio já terminou em 1999 ou se não
terminará até que acabe o ano 2000, algo tem que ser dito.
E nós zapatistas dizemos que não, que nem o milênio
e nem o século terminaram. Não acabarão até
que haja justiça, vida e liberdade. Não acabarão
até que a justiça se cumpra, que se castiguem os verdadeiros
culpados e que outro Acteal seja assim impossível. Não
acabarão até que você encontre seu neto ou neta.
Não, nem o século e nem o milênio podem dar-se por
encerrados com estas pendências. É uma vergonha para a
humanidade dizer que já entrou num novo milênio enquanto
Acteal continua pendente na memória e um poeta-avô procura
seu neto desaparecido. Nada terminará enquanto os calibres das
mentiras deste século e deste milênio continuam dando voltas
dentro de nós, destroçando-nos, matando-nos.
Por isso, don Gelman, esta carta era só para dizer-lhe que, na
verdade, esperamos poder-lhe dizer um dia: Feliz Século Novo!
Feliz Novo Milênio!
Valeu. Saúde e que o tempo liberte, enfim, a nossa história.
Das montanhas do Sudeste Mexicano,
Subcomandante
Insurgente Marcos.
México, janeiro de 2000.
P.S. ARMAMENTISTA. Obviamente, a arma que carrego é um fuzil
AR-15, calibre 5.56 mm. O peguei emprestado de um policial no dia 1º
de janeiro de 1994. Claro, ele corria tanto que não cheguei a
ouvir a sua resposta. Tenho ele aqui, ontem servia para matar os indígenas,
hoje serve para que não os matem, ou para que não seja
impunemente.
Tradução
de Emilio Gennari