Ecologia alternativa: aprendendo com os Índios Tupi Guarani

Por Victor Fucks

O Nível de sofisticação e desenvolvimento tecnológico alcançado pelas civilizações ocidentais contemporâneas constitui algo admirável e de grandes proporções. O controle de várias forcas e fenômenos naturais, a ênfase no individualismo, o culto quase ritualístico ao estimulo de "progressos," quantificações analíticas e resultados práticos, nos afetam em todos os sentidos, surpreendendo até Bacon, o criador desta filosofia. O impacto de diversas "maravilhas tecnológicas " indubitavelmente se faz sentir em nosso dia a dia. Essa ideologia acoplada ao sistema capitalista, cria uma constante geração e acumulo de riquezas, distribuição desigual de diversos recursos, dominação, exploração, superpopulação, poluição e "subprodutos." Como resultado outros , tais "maravilhas " perdem sua aura especial e passam a nos ameaçar, tornando-se "monstros" dos quais temos dificuldade de escapar. Estas ameaças não se restringem apenas à civilização Ocidental - que as criou - mas se estendem a outros povos, em outras regiões, eventualmente ameaçando a própria sobrevivência da vida, na terra.

Praticamente tudo o que fazemos, nossas opções e até mesmo criações estão ligadas a essa complexa estrutura, independente de nossas intenções. Este texto, por exemplo, está sendo escrito em um computador que por si só sintetiza parte do processo tecnológico. Este, por sua vez, se relaciona às técnicas de impressão, diagramação e distribuição da revista Utopia que, eventualmente, chega às mãos dos prezados leitores e, assim, por diante. As fábricas de computadores, acessórios etc. se relacionam em um complexo sistema econômico; do qual também fazemos parte. Deste sistema surgem diversos produtos que utilizamos em nossas vidas mas, ao mesmo tempo, geram-se problemas diversos como poluição e eventuais explorações capitalistas. Assim sendo, nos vemos em uma situação paradoxal, pois, se de um lado, apreciamos grande parte dos implementos tecnológicos, frutos de nossa civilização, por outro, nos achamos presos a esta maquina" deliciosa " e "terrível" ao mesmo tempo. Como usufruir dos diversos implementos tecnológicos sendo que nos tornemos vítimas de um sistema perverso e nocivo? As alternativas demandam modelos ainda mais complexos pois não seria desejável e suficiente abandonarmos nosso conforto e prazeres cosmopolitanos –ou não -, para irmos viver isoladamente, em regiões remotas ou entre sociedades que não interagem com o sistema ocidental. Movimentos sociais independentes que encararam este problema lograram apenas sucesso limitado, como no caso das fazendas socialistas Kibutz em Israel e as comunidades e atividades ligadas ao movimento da contra-cultura, nos Estados Unidos (Zicklin 1983). O isolamento também se torna praticamente impossível, pois o impacto ocidental se faz sentir, nas regiões mais remotas do planeta, como por exemplo, entre tribos Amazônicas, Africanas e Asiáticas, mesmo antes destas sociedades estabelecerem contato direto com a nossa sociedade. Um exemplo dessa questão refere-se ao uso de objetos metálicos e outros produtos industrializados por comunidades indígenas isoladas na Amazônia. Quando certos grupos indígenas foram "oficialmente" contatados pela FUNAI, vários indivíduos já dispunham de facas, sandálias de plástico e tecidos diversos. Estes foram adquiridos por contatos intermediários, ou abandonados por garimpeiros e viajantes.

A posição "ecológica" sugerida por Bookchin merece maiores considerações, uma vez que nos fornece um modelo teórico e não simplista. Neste modelo, o conceito de ecologia social propicia uma forma balanceada de relação entre todas as espécies biológicas e diversos fenômenos naturais e, ao mesmo tempo, considera a viabilidade de implementação deste processo de equilíbrio ecológico, através do uso de tecnologia. A visão de Bookchin envolve fatores e processos adicionais que consideram a complexidade dos fenômenos sociais e naturais em suas formas globais (holísticas) e interrelacionadas. Uma das virtudes do modelo de Bookchin é a consideração de fatores não diretamente ligados a imediata sobrevivência biológica de cada indivíduo, ou à visão utilitária e funcionalista de cada atividade humana, pois afinal fazemos mais do que simplesmente procurar alimentos e buscar proteções a fenômenos naturais. Bookchin refere-se às "sensibilidades preliterais " características de certas sociedades tribais. Os esparcos dados antropológicos contribuem pouco para engrandecer a argumentação do autor, dando a impressão de uma visão utópica e romantizada destas sociedades. Ou seja, faltam dados para demonstrar a transição das "sensibilidades preliterais" para as "sociedades orgânicas, com intensa solidariedade interna e com a natureza" (Bookchin 1982:44). As idéias de Bookchin poderiam adquirir maior relevância se pudessem ser testadas ou investigadas em contextos sociais específicos, para terem um profundo impacto em nosso "modus vivendi". Neste artigo procuro continuar o diálogo proposto por Bookchin, com exemplos específicos de uma sociedade tribal.

A seguir, tentarei abordar uma alternativa não tão utópica, pois vem sendo utilizada, com relativo sucesso e há séculos por comunidades indígenas amazônicas e, em particular, entre os Índios Tupi Guarani (Fuks 1989, Hill 1984, Kracke 1981 ). Este modelo de interação social e ecológico, longe de ser simplista, envolve interações diversas, em níveis diferentes e, ao mesmo tempo, preserva a individualidade de cada membro da sociedade. Nele a importância de bens materiais se torna irrelevante e secundária às artes e às emoções. Com isso, deixa de existir a noção ocidental de acúmulo de bens ou capital, que por sua vez, gera um ciclo hierárquico, com diversas relações desiguais. Evidências etnográficas ajudam a identificar este sistema entre as tribos Waiapi. Para os indivíduos dessa sociedade não há importância material e acúmulo de bens. A irrelevância da noção de acúmulo de bens pode ser evidenciada pelo fato dos Waiapi contarem apenas até 4. Tudo além de 4 cai na categoria genérica e distante chamada "iro ironte" que seria traduzível por nossa noção de "muitos".

Através dos meios de expressão artística, cada indivíduo aprende a conviver harmonicamente em grupo e com a natureza, mas mantendo sua individualidade a níveis dificilmente alcançáveis, no ocidente. Nestes contextos artísticos e de caráter festivo, cada indivíduo pode encontrar-se em situações nas quais cada um se relaciona entre si e com outras espécies de animais, insetos e peixes (Fuks 1989). Ao invés de perpetuar a visão ocidental de "dominação da natureza e desafios ao Cosmos," que por si só reflete a dominação da humanidade pela humanidade, o modelo Tupi-Guarani procura incorporar diversos conhecimentos sociais e naturais, de forma interativa. Neste, todos os indivíduos se relacionam entre si e com outras espécies. É importante frizar que estas relações mantêm um equilíbrio dinâmico no qual todos estão no mesmo plano, tanto no meio social quanto entre os Waiapi e outras espécies. Em diversos contextos, percebe-se a visão cíclica de complementariedade biológica, onde certas espécies protegem outras e geram produtos necessários para a sobrevivênica humana e de outras espécies. No ecossistema da aldeia onde se relacionam diversos indivíduos, de idéias, sexos e idades diferentes, existe também uma certa harmonia com o solo que lhes proporciona os alimentos e outros bens, com os rios e florestas, e com as diversas espécies que neles habitam.

Há vários anos, venho pesquisando uma pequena sociedade tribal no Amapá que emprega um sistema social compatível com as prioridades e dilemas individuais e sociais, mantém uma estreita relação com a natureza, estimula prazeres e diversas emoções. Trata-se da comunidade Indígena Waiapi, que pertence ao grupo lingüístico Tupi-Guarani. Os Waiapi vivem entre Brasil e a Guiana Francesa, sendo que meus estudos se concentram nas comunidades do Amapá que totalizam pouco mais de 300 habitantes. Estes, por sua vez, se dividem em diversas aldeias independentes e distantes várias horas ou dias entre si. O modelo social Waiapi possui ainda espaço para maiores subdivisões, com casas construídas em várias localidades e freqüentes migrações. A importância da fissão social se estende a outras comunidades Tupi-Guarani, como é o caso dos Índios Arawete (Viveiros de Castro, 1986). Este modelo não apenas cria as condições necessárias para contornar possíveis conflitos mas funciona, também, como forma de administração agro-florestal, ou seja, os recursos naturais de uma determinada região podem manter indefinidamente um determinado grupo de indivíduos. Em casos de explosão populacional estes recursos passam a ser utilizados ao extremo, causando sua exaustão e, freqüentemente, profundas mudanças no ecossistema. Especialmente na Amazônia, que se caracteriza por solos inadequados à agricultura de larga escala, a necessidade de se utilizar modelos que preservam a diversidade biológica e evitam a extinção de espécies, apontam cada vez mais para as soluções e técnicas desenvolvidas por sociedades tribais da região. Um certo equilíbrio populacional e demográfico, em uma determinada região, pode ser alcançado sem que seja necessário explorar o meio ambiente ao extremo, como demonstram os índios Waiapi.

Além do aspecto relativo a conhecimentos gerais da natureza amazônica, os Waiapi são encorajados a criar novas formas de expressão para serem compartilhadas, durante as festas coletivas. Esta expressão artística freqüentemente possui a função de ensinar à comunidade em geral aspectos do comportamento de certas espécies e de fenômenos naturais, gerando benefícios e, ao mesmo tempo, estimulando a liberdade artística e expressiva de cada membro da sociedade. Complementando a relação com o domínio natural, as festas coletivas dos Waiapi possuem, também, a possibilidade de acessar ou aumentar o conhecimento do domínio sobrenatural. Note-se que estes conhecimentos embasados em tradições orais e transmitidos de geração em geração permanecem flexíveis, podendo incorporar também os espíritos dos ancestrais Waiapi, novas espécies de peixes, insetos e animais, mudanças no seu comportamento e suas relações com os Waiapi. Como no meio natural e social, o meio espiritual também permanece flexível e ágil o suficiente para incorporar modificações das mais diversas.

Como veremos a seguir, os diversos mecanismos sociais, ecológicos e emocionais se relacionam e fazem parte de um complexo que cria um certo "ethos" dos Waiapi (Bateson 1980). Para podermos entender como estas três dimensões (social, ecológica e emocional) se relacionam, é importante que observemos aspectos gerais da sociedade Waiapi, suas estruturas, conceitos e mecanismos diversos.

A estrutura social dos Waiapi basicamente envolve famílias nucleares, grupos locais, liderança descentralizada e relações concretas e subjetivas entre si, com espíritos diversos e com outras espécies de animais, peixes e insetos. Como foi dito, anteriormente, os Waiapi vivem em grupos locais identificados por conexões com uma certa região e relações diretas com um líder. Este, por sua vez, não assume a posição hierárquica que o termo significa em nossa sociedade, e refere-se principalmente ao fato de esse "líder" ser uma pessoa de conhecimento. Na sociedade Waiapi, só existem especializações para os líderes das aldeias, os shamas e os "organizadores de festas," sendo que todas estas posições possuem caráter transitório e negam qualquer forma de hierarquia ou possível dominação. Esta sutil separação de classes relaciona se mais a um processo de socialização de conhecimento. Como enfatizam os Waiapi, os alunos de cada festa serão os professores das futuras gerações.

O líder de uma aldeia, segundo os Waiapi, é aquele que "achou um lugar" e que, por meio de relações familiares e demonstração da validade de seu conhecimento, pode atrair um grupo de famílias nucleares para uma certa região. O conhecimento do líder refere-se, principalmente, a fatores ecológicos que propiciam a escolha de solos adequados à agricultura, à falta de formigas e a outras espécies prejudiciais ao cultivo, bem como a fartura na caça, pesca e uso de demais recursos naturais (Fuks 1989). Este líder é, também, aquele que possui um vasto repertório de canções utilizadas nas festas coletivas (Fuks 1988). Estas canções não apenas representam mas freqüentemente descrevem características e propriedades ligadas às espécies honradas em cada festa. É importante frisar que a liderança Waiapi possui caráter passageiro e que, nas festas coletivas, todos os indivíduos são encorajados a serem "líderes" em performances diferentes. Desta forma, o conceito de liderança passa a ser diluído entre todos os membros da sociedade, o que eventualmente estimula níveis igualitários e desencoraja hierarquizações. Com isso, e com a ausência de posições dominadoras, a sociedade Waiapi cria um modelo neutro e interno que, por sua vez, será refletido na visão não antropocêntrica dos Waiapi e suas relações com outras espécies. Em nível de comunidade, o líder nunca ordena nada a ninguém mas, através de uma retórica sofisticada, pode ou não persuadir certos indivíduos a fazerem o que ele deseja. Este aspecto de liderança é genenlizável entre comunidades Tupi Guarani (Kracke 1978, 1981, Viveiros de Castro, 1986). Crianças podem recusar pedidos de favores feitos por adultos, bem como homens e mulheres de idades diferentes nunca são forçadas a aceitarem ou fazerem nada para ninguém. Tais "favores" são feitos por livre e espontânea vontade, estimulados apenas pelo uso de técnicas de sedução e persuasão oral.

Ducante as festas coletivas, esta liderança flexível se torna ainda mais aparente, com o resultado gradual de uma performance simultânea de diversos instrumentos musicais e vozes, levando a uma "cacofonia" ou polissincronia multisensorial envolvendo música, dança, caxiri (cerveja de mandioca), pintura corporal, etc. (Fuks 1988, 1989). Nesta estética, que funciona paralelamente a outros sistemas, cada indivíduo pode tocar ou cantar o que bem entender, seguindo apenas a estrutura básica de cada festa. Tais festas coletivas podem envolver um grande número de participantes, podendo até serem estendidas a outras aldeias. Em uma ocasião quatro aldeias organizaram um grande evento em reverência ao peixe paku açu. Em alguns casos, porém, apenas um pequeno número de participantes realizam festas coletivas, com o mínimo registrado envolvendo apenas três participantes. A importância destas festas e da música ,em geral, torna-se aparente quando observamos que elas constituem a atividade à qual os Waiapi dedicam a maior parte de seu tempo (Fuks 1989). Mesmo a agricultura somada às outras atividades de subsistência totalizam um número menor de horas. Alem de nos surpreendermos como os Waiapi podem se dar a esse luxo, ficamos perplexos, ao tentarmos entender como e por que as festas coletivas adquirem tamanha importância.

Uma razão para tanto refere-se a uma certa consciência ecológica (se usarmos nossos termos) refletida nestes eventos e aliada à possibilidade de expressar e sentir diversas emoções. Estes conhecimentos ecológicos e a expressão de emoções adquirem, também, um caráter didático, ilustrando-os às futuras gerações. A importância das formas de expressão orais em sociedade "preliteradas" não deve ser subestimada. Portanto as festas dos Waiapi adquirem uma certa função de ensino, em uma atmosfera prazeirosa que, freqüentemente chega ao êxtase. Estes aspectos (sociais, ecológicos emocionais) e suas interações ficam mais claros se observarmos detalhes da festa do mangengan, uma dentre as várias comemorações Waiapi.

A abelha mangangan aparece em grande número, no início da estação das chuvas, época que indica transformações marcantes na floresta amazônica, o início do plantio e atividades agrícolas subsequentes. A relação entre o complexo natural e ecológico com o modelo de organização social dos Waiapi e dos mangangan, é refletida nesta festa. Isto ocorre, após os participantes terem chamado os "mangangan", através de danças e canções alternadas com os sons das flautas chamadas "mangangan ra'anga ". O termo rá´anga indica uma certa imitação auditiva e multissensorial das espécies representadas. Para cada festa coletiva, os Waiapi fazem novos instrumentos musicais que, por sua vez, pertencem à classe também chamada ra'anga. As flautas da festa do mangangan são chamadas mangangan ra'anga, e as da festa do jaguar (onça) jawarun ra'anga. Com a chegada dos mangangan, os participantes se transformam neste "outro" e passam a agir de acordo com as características próprias, no caso, o mangangan. Uma dessas características é representada pela picada de "abelhas " que assume uma relação metonimica, pois um cinto de palha com formigas é colocado em volta dos participantes e dos membros da audiência.

Outra modificação no comportamento regular Waiapi (humano), passando para o comportamento dos mangangan (inseto), é indicada pela forma com que a cerveja de mandioca é servida aos participantes. Convém frisar que todas as festas coletivas dos Waiapi são marcadas, também, pelo consumo de cerveja de mandioca ou caxiri. As festas são avaliadas pela quantidade e qualidade da cerveja. Nestas, emerge sempre a pessoa do "caxiri jara" ou dono da cerveja caxiri. São suas esposas que preparam e servem o caxiri, durante as festas, seguindo uma ética elaborada e organizada no preparar e servir, de acordo com o conhecimento de cada participante sobre o tema (como por exemplo o mangangan) de cada festa (Fuks 1989). Após a transformação em mangangan, os Waiapi adquirem uma "licença artística " e, teatralmente, passam a beber o caxiri direto de um pilão e de forma aleatória. Assim sendo, as abelhas vivem, cantam, dançam e bebem caxiri, de maneira diferente dos Waiapi, mas os Waiapi se mostram dispostos a aprenderem algo com os mangangan, e fazem isso, usando todos os sentidos. Se não bastasse o efeito catártico das festas coletivas, cada participante pode reinterpretar o "cenário natural" e agir, de forma não usual. Estas formas não Waiapi, podem então ser testadas por indivíduos ou pela comunidade e, dependendo de sua validade pratica, podem vir a ser incorporadas à sociedade Waiapi, já que esta propicia espaço para constantes modificações.

Uma lição exposta na festa do mangangan se relaciona ao fato de as abelhas serem atraídas pelo cheiro e beleza visual de certas flores, que passam a ser abundantes na época das chuvas. Desta forma, em uma seção da performance, os participantes dançam com um buquê de flores. A seguir, as mulheres ou parceiras de cada participante recolhem estes buquê. Segundo os Waiapi, isso é a ´forma utilizada pelos mangangan que após recolherem o néctar das flores, levam-no a sua "casa", passando-o para suas famílias e amigos.' Neste caso, observamos a visão não antropocêntrica dos Waiapi, que observam o comportamento das abelhas e suas relações complementares com as flores. O efeito da polinização simultâneo à extração do néctar das flores pelas abelhas, é representado através da música, dança e representações visuais, olfativas e táteis. Tudo isso ocorre em uma atmosfera festiva, com muitas gargalhadas, reflexões e comentários sobre as "coisas de mangangan" que somados a um efeito quase anestésico da música, dança e caxirí gera um contexto marcado por fortes emoções. Ao mesmo tempo, festas como a do mangangan, ilustram como um grande ecossistema composto de diversos fatores se relaciona a um complexo "drama social". Neste modelo o homem não é apenas um simples ator, mas interage em termos de igualdade com outras espécies. Esta mesma atitude se reflete na forma não hierarquizada de organização social dos Waiapi. O poder quando emerge e permanece por muito tempo é ridicularizado e passa a ser repudiado (Clastres 1979, Fuks 1991). Isto acontece na realidade com a temível é venerável onça (também honrada, na festa do jawarun).

Segundo os Waiapi, a onça representa o pajé em sua eterna liminalidade entre os domínios humanos e espirituais. Tanto a onça quanto o pajé possuem poderes supernaturais que os distinguem dos outros. Tais poderes podem ser utilizados para o bem ou o mal dos Waiapi e de outras espécies de animais, peixes e insetos.

Assim sendo, as festas coletivas dos Waiapi se encaixam com outras instituições liberalizantes que, ao mesmo tempo, criam uma forma auto-suficiente e descentralizada de organização social, semelhante à "ecologia da liberdade" sugerida por Bookchin (1982). Esta autosuficiência, aliada à ênfase na criatividade artística, estimula a individualidade entre os Waiapi, mas considerando sempre o equilíbrio social na aldeia, o equilíbrio em relação a outras culturas e sociedades, o equilíbrio com outras espécies e espíritos, criando um super "multiecosistema global". Volto a frisar a complexidade deste sistema que, de maneira sutil, preza a interdependência e complementariedade de fatores sociais, emocionais e ecológicos. Neste complexo ecossistema, os Waiapi apenas contribuem com uma pequena parte sem se sobressaírem aos demais, ajudando-se uns aos outros.

CONCLUSÕES

As diferenças entre nossa sociedade industrial e a sociedade tribal dos Waiapi são evidentes e transplantar um modelo de um contexto para outro tende a ser impraticável. Mas, se observarmos nossas aspirações e necessidades básicas (incluindo não apenas nossa sobrevivência em termos de alimentação, moradia, desejos sexuais e outros) passamos a observar um número de semelhanças com os Waiapi. É importante frisar que a sociedade Waiapi não vive em um paraíso idealizado pela visão romântica criada sobre certas sociedades tribais. Os Waiapi freqüentemente se vêem forcados a enfrentar crises e catástrofes sociais e ecológicas.

De maneira análoga ao nosso conhecimento prático das condições climáticas, meteorológicas e geológicas, incapaz de prever com exatidão e evitar enchentes, terremotos e furacões, o conhecimento Waiapi também é vítima de erros e de elementos indeterminados. A suscetibilidade a doenças diversas e a capacidade parcial de curá-las ou controlá-las é outra semelhança entre a nossa sociedade e a dos Waiapi.

Apesar das semelhanças e diferenças entre nossa sociedade e a dos Waiapi, algumas sugestões de formas alternativas de controle ecológico, social e emocional podem ser inferidas. Creio que várias destas sugestões são perfeitamente compatíveis com nossos modelos e nos permitem encarar certos problemas sociais, econômicos, e ambientais, bem como as crises de razão, economia e ciência apontadas por Theodore Adorno, Karl Marx e Max Webern. Estas sugestões focalizam-se em idéias Waiapi que se assemelham ao modelo da ecologia social proposto por Bookchin e se ajustam as nossas necessidades e aspirações:

1. Manter um equilíbrio com aqueles que fazem parte de nosso "milieu" e com os quais interagimos regularmente, e com o meio ambiente em geral. De certa forma, vivemos nestas condições buscando tais equilíbrios, mas nos concentramos em nossos pequenos e isolados microcosmos. No modelo Waiapi, não apenas nossas relações com familiares e amigos mais próximos se mostram necessárias mas em um amplo contexto socio-ecológico. Neste modelo homeostático relativo existe espaço, também, para possíveis conflitos, suas resoluções, separações e eventuais interações. A relação refletida na consciência ecológica mais ampla pode ser esclarecida se observarmos a relação metafórica que mantemos com animais de estimação. O mesmo afeto e falta de exploração que demonstramos com nossos animais de estimação podem ser estendidos a outras espécies das quais usufruímos os subprodutos. Com moderação, podemos continuar a utilizar estes benefícios sem impor, subjugar, explorar e dominar "outros", humanos ou não.

2. Interação: Combinar os três elementos básicos do ethos Waiapi - igualdade social, consciência ecológica e liberdade emocional - constitui algo que podemos aprender. Segundo a abrangente "Ecologia Social" de Bookchin, existe uma certa compatibilidade entre possíveis igualdades sociais e consciências ecológicas, unidas pela falta de exploração e dominação, seja ela intra ou extra humana. Como vimos antes, no modelo Waiapi, isto também ocorre, mas para manter a sociedade em sua vitalidade plena é necessário um certo "tempero" a ser compartilhado por todos. Este "tempero" emerge justamente das emoções expressadas nos contextos artísticos, e levando junto um corpo de conhecimento que, por sua vez, reenfatiza as relações sociais igualitárias e as diversas formas de interação com o meio ambiente e com outras espécies. Esta visão não antropocêntrica, até nas sensações daquilo que consideramos marcadamente humano (emoções), mais uma vez afirma a falta de hierarquia na sociedade Waiapi, tanto internamente quanto em relação às outras espécies. Esta visão interativa poderia ser aplicada à nossa sociedade, de maneira análoga a uma grande orquestra, sem maestro e tocando uma grande sinfonia composta (de maneira não dogmática) ou improvisada por todos. Nesta grande orquestra, para que se faça música em conjunto, é necessário passar por processos e experiências semelhantes à afinação dos instrumentos musicais. Cada um se coloca à disposição, para ceder um pouco, até que se encontrem em um denominador comum, para então poderem expressar sua arte e, eventualmente chegarem a um estado de equilíbrio ou "communitas". Assim sendo, aplicando o modelo Waiapi, poderíamos tocar outras músicas com os temas que enfatizam a "harmonia" ou interação entre as consciências sociais e ecológicas e os "temperos" emocionais.

Minha intenção, neste artigo, foi mostrar a viabilidade de um modelo social utilizado por uma pequena sociedade tribal Amazônica. Através de forças socioculturais, pode-se criar uma sociedade que mantém um equilíbrio entre seus membros e em relação a outras espécies e ao meio ambiente. Nesse modelo interativo todos possuem liberdade para fazerem o que quiserem, mantendo suas individualidades e, ao mesmo tempo, considerando as formas de interação com "outros". Assim sendo, a expressão de emoções assume posição essencial no modus vivendi", e se relaciona com o conhecimento social e ecológico. Assim sendo, podemos aprender a ser índio e refletir sobre as idéias Waiapi, com resultados benéficos para todos.

Referências

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Revista Utopia #5