Ecologia alternativa: aprendendo
com os Índios Tupi Guarani
Por
Victor Fucks
O
Nível de sofisticação e desenvolvimento tecnológico
alcançado pelas civilizações ocidentais contemporâneas
constitui algo admirável e de grandes proporções.
O controle de várias forcas e fenômenos naturais, a ênfase
no individualismo, o culto quase ritualístico ao estimulo de
"progressos," quantificações analíticas
e resultados práticos, nos afetam em todos os sentidos, surpreendendo
até Bacon, o criador desta filosofia. O impacto de diversas
"maravilhas tecnológicas " indubitavelmente se faz
sentir em nosso dia a dia. Essa ideologia acoplada ao sistema capitalista,
cria uma constante geração e acumulo de riquezas, distribuição
desigual de diversos recursos, dominação, exploração,
superpopulação, poluição e "subprodutos."
Como resultado outros , tais "maravilhas " perdem sua aura
especial e passam a nos ameaçar, tornando-se "monstros"
dos quais temos dificuldade de escapar. Estas ameaças não
se restringem apenas à civilização Ocidental
- que as criou - mas se estendem a outros povos, em outras regiões,
eventualmente ameaçando a própria sobrevivência
da vida, na terra.
Praticamente
tudo o que fazemos, nossas opções e até mesmo
criações estão ligadas a essa complexa estrutura,
independente de nossas intenções. Este texto, por exemplo,
está sendo escrito em um computador que por si só sintetiza
parte do processo tecnológico. Este, por sua vez, se relaciona
às técnicas de impressão, diagramação
e distribuição da revista Utopia que, eventualmente,
chega às mãos dos prezados leitores e, assim, por diante.
As fábricas de computadores, acessórios etc. se relacionam
em um complexo sistema econômico; do qual também fazemos
parte. Deste sistema surgem diversos produtos que utilizamos em nossas
vidas mas, ao mesmo tempo, geram-se problemas diversos como poluição
e eventuais explorações capitalistas. Assim sendo, nos
vemos em uma situação paradoxal, pois, se de um lado,
apreciamos grande parte dos implementos tecnológicos, frutos
de nossa civilização, por outro, nos achamos presos
a esta maquina" deliciosa " e "terrível"
ao mesmo tempo. Como usufruir dos diversos implementos tecnológicos
sendo que nos tornemos vítimas de um sistema perverso e nocivo?
As alternativas demandam modelos ainda mais complexos pois não
seria desejável e suficiente abandonarmos nosso conforto e
prazeres cosmopolitanos –ou não -, para irmos viver isoladamente,
em regiões remotas ou entre sociedades que não interagem
com o sistema ocidental. Movimentos sociais independentes que encararam
este problema lograram apenas sucesso limitado, como no caso das fazendas
socialistas Kibutz em Israel e as comunidades e atividades ligadas
ao movimento da contra-cultura, nos Estados Unidos (Zicklin 1983).
O isolamento também se torna praticamente impossível,
pois o impacto ocidental se faz sentir, nas regiões mais remotas
do planeta, como por exemplo, entre tribos Amazônicas, Africanas
e Asiáticas, mesmo antes destas sociedades estabelecerem contato
direto com a nossa sociedade. Um exemplo dessa questão refere-se
ao uso de objetos metálicos e outros produtos industrializados
por comunidades indígenas isoladas na Amazônia. Quando
certos grupos indígenas foram "oficialmente" contatados
pela FUNAI, vários indivíduos já dispunham de
facas, sandálias de plástico e tecidos diversos. Estes
foram adquiridos por contatos intermediários, ou abandonados
por garimpeiros e viajantes.
A
posição "ecológica" sugerida por Bookchin
merece maiores considerações, uma vez que nos fornece
um modelo teórico e não simplista. Neste modelo, o conceito
de ecologia social propicia uma forma balanceada de relação
entre todas as espécies biológicas e diversos fenômenos
naturais e, ao mesmo tempo, considera a viabilidade de implementação
deste processo de equilíbrio ecológico, através
do uso de tecnologia. A visão de Bookchin envolve fatores e
processos adicionais que consideram a complexidade dos fenômenos
sociais e naturais em suas formas globais (holísticas) e interrelacionadas.
Uma das virtudes do modelo de Bookchin é a consideração
de fatores não diretamente ligados a imediata sobrevivência
biológica de cada indivíduo, ou à visão
utilitária e funcionalista de cada atividade humana, pois afinal
fazemos mais do que simplesmente procurar alimentos e buscar proteções
a fenômenos naturais. Bookchin refere-se às "sensibilidades
preliterais " características de certas sociedades tribais.
Os esparcos dados antropológicos contribuem pouco para engrandecer
a argumentação do autor, dando a impressão de
uma visão utópica e romantizada destas sociedades. Ou
seja, faltam dados para demonstrar a transição das "sensibilidades
preliterais" para as "sociedades orgânicas, com intensa
solidariedade interna e com a natureza" (Bookchin 1982:44). As
idéias de Bookchin poderiam adquirir maior relevância
se pudessem ser testadas ou investigadas em contextos sociais específicos,
para terem um profundo impacto em nosso "modus vivendi".
Neste artigo procuro continuar o diálogo proposto por Bookchin,
com exemplos específicos de uma sociedade tribal.
A
seguir, tentarei abordar uma alternativa não tão utópica,
pois vem sendo utilizada, com relativo sucesso e há séculos
por comunidades indígenas amazônicas e, em particular,
entre os Índios Tupi Guarani (Fuks 1989, Hill 1984, Kracke
1981 ). Este modelo de interação social e ecológico,
longe de ser simplista, envolve interações diversas,
em níveis diferentes e, ao mesmo tempo, preserva a individualidade
de cada membro da sociedade. Nele a importância de bens materiais
se torna irrelevante e secundária às artes e às
emoções. Com isso, deixa de existir a noção
ocidental de acúmulo de bens ou capital, que por sua vez, gera
um ciclo hierárquico, com diversas relações desiguais.
Evidências etnográficas ajudam a identificar este sistema
entre as tribos Waiapi. Para os indivíduos dessa sociedade
não há importância material e acúmulo de
bens. A irrelevância da noção de acúmulo
de bens pode ser evidenciada pelo fato dos Waiapi contarem apenas
até 4. Tudo além de 4 cai na categoria genérica
e distante chamada "iro ironte" que seria traduzível
por nossa noção de "muitos".
Através
dos meios de expressão artística, cada indivíduo
aprende a conviver harmonicamente em grupo e com a natureza, mas mantendo
sua individualidade a níveis dificilmente alcançáveis,
no ocidente. Nestes contextos artísticos e de caráter
festivo, cada indivíduo pode encontrar-se em situações
nas quais cada um se relaciona entre si e com outras espécies
de animais, insetos e peixes (Fuks 1989). Ao invés de perpetuar
a visão ocidental de "dominação da natureza
e desafios ao Cosmos," que por si só reflete a dominação
da humanidade pela humanidade, o modelo Tupi-Guarani procura incorporar
diversos conhecimentos sociais e naturais, de forma interativa. Neste,
todos os indivíduos se relacionam entre si e com outras espécies.
É importante frizar que estas relações mantêm
um equilíbrio dinâmico no qual todos estão no
mesmo plano, tanto no meio social quanto entre os Waiapi e outras
espécies. Em diversos contextos, percebe-se a visão
cíclica de complementariedade biológica, onde certas
espécies protegem outras e geram produtos necessários
para a sobrevivênica humana e de outras espécies. No
ecossistema da aldeia onde se relacionam diversos indivíduos,
de idéias, sexos e idades diferentes, existe também
uma certa harmonia com o solo que lhes proporciona os alimentos e
outros bens, com os rios e florestas, e com as diversas espécies
que neles habitam.
Há
vários anos, venho pesquisando uma pequena sociedade tribal
no Amapá que emprega um sistema social compatível com
as prioridades e dilemas individuais e sociais, mantém uma
estreita relação com a natureza, estimula prazeres e
diversas emoções. Trata-se da comunidade Indígena
Waiapi, que pertence ao grupo lingüístico Tupi-Guarani.
Os Waiapi vivem entre Brasil e a Guiana Francesa, sendo que meus estudos
se concentram nas comunidades do Amapá que totalizam pouco
mais de 300 habitantes. Estes, por sua vez, se dividem em diversas
aldeias independentes e distantes várias horas ou dias entre
si. O modelo social Waiapi possui ainda espaço para maiores
subdivisões, com casas construídas em várias
localidades e freqüentes migrações. A importância
da fissão social se estende a outras comunidades Tupi-Guarani,
como é o caso dos Índios Arawete (Viveiros de Castro,
1986). Este modelo não apenas cria as condições
necessárias para contornar possíveis conflitos mas funciona,
também, como forma de administração agro-florestal,
ou seja, os recursos naturais de uma determinada região podem
manter indefinidamente um determinado grupo de indivíduos.
Em casos de explosão populacional estes recursos passam a ser
utilizados ao extremo, causando sua exaustão e, freqüentemente,
profundas mudanças no ecossistema. Especialmente na Amazônia,
que se caracteriza por solos inadequados à agricultura de larga
escala, a necessidade de se utilizar modelos que preservam a diversidade
biológica e evitam a extinção de espécies,
apontam cada vez mais para as soluções e técnicas
desenvolvidas por sociedades tribais da região. Um certo equilíbrio
populacional e demográfico, em uma determinada região,
pode ser alcançado sem que seja necessário explorar
o meio ambiente ao extremo, como demonstram os índios Waiapi.
Além
do aspecto relativo a conhecimentos gerais da natureza amazônica,
os Waiapi são encorajados a criar novas formas de expressão
para serem compartilhadas, durante as festas coletivas. Esta expressão
artística freqüentemente possui a função
de ensinar à comunidade em geral aspectos do comportamento
de certas espécies e de fenômenos naturais, gerando benefícios
e, ao mesmo tempo, estimulando a liberdade artística e expressiva
de cada membro da sociedade. Complementando a relação
com o domínio natural, as festas coletivas dos Waiapi possuem,
também, a possibilidade de acessar ou aumentar o conhecimento
do domínio sobrenatural. Note-se que estes conhecimentos embasados
em tradições orais e transmitidos de geração
em geração permanecem flexíveis, podendo incorporar
também os espíritos dos ancestrais Waiapi, novas espécies
de peixes, insetos e animais, mudanças no seu comportamento
e suas relações com os Waiapi. Como no meio natural
e social, o meio espiritual também permanece flexível
e ágil o suficiente para incorporar modificações
das mais diversas.
Como
veremos a seguir, os diversos mecanismos sociais, ecológicos
e emocionais se relacionam e fazem parte de um complexo que cria um
certo "ethos" dos Waiapi (Bateson 1980). Para podermos entender
como estas três dimensões (social, ecológica e
emocional) se relacionam, é importante que observemos aspectos
gerais da sociedade Waiapi, suas estruturas, conceitos e mecanismos
diversos.
A
estrutura social dos Waiapi basicamente envolve famílias nucleares,
grupos locais, liderança descentralizada e relações
concretas e subjetivas entre si, com espíritos diversos e com
outras espécies de animais, peixes e insetos. Como foi dito,
anteriormente, os Waiapi vivem em grupos locais identificados por
conexões com uma certa região e relações
diretas com um líder. Este, por sua vez, não assume
a posição hierárquica que o termo significa em
nossa sociedade, e refere-se principalmente ao fato de esse "líder"
ser uma pessoa de conhecimento. Na sociedade Waiapi, só existem
especializações para os líderes das aldeias,
os shamas e os "organizadores de festas," sendo que todas
estas posições possuem caráter transitório
e negam qualquer forma de hierarquia ou possível dominação.
Esta sutil separação de classes relaciona se mais a
um processo de socialização de conhecimento. Como enfatizam
os Waiapi, os alunos de cada festa serão os professores das
futuras gerações.
O
líder de uma aldeia, segundo os Waiapi, é aquele que
"achou um lugar" e que, por meio de relações
familiares e demonstração da validade de seu conhecimento,
pode atrair um grupo de famílias nucleares para uma certa região.
O conhecimento do líder refere-se, principalmente, a fatores
ecológicos que propiciam a escolha de solos adequados à
agricultura, à falta de formigas e a outras espécies
prejudiciais ao cultivo, bem como a fartura na caça, pesca
e uso de demais recursos naturais (Fuks 1989). Este líder é,
também, aquele que possui um vasto repertório de canções
utilizadas nas festas coletivas (Fuks 1988). Estas canções
não apenas representam mas freqüentemente descrevem características
e propriedades ligadas às espécies honradas em cada
festa. É importante frisar que a liderança Waiapi possui
caráter passageiro e que, nas festas coletivas, todos os indivíduos
são encorajados a serem "líderes" em performances
diferentes. Desta forma, o conceito de liderança passa a ser
diluído entre todos os membros da sociedade, o que eventualmente
estimula níveis igualitários e desencoraja hierarquizações.
Com isso, e com a ausência de posições dominadoras,
a sociedade Waiapi cria um modelo neutro e interno que, por sua vez,
será refletido na visão não antropocêntrica
dos Waiapi e suas relações com outras espécies.
Em nível de comunidade, o líder nunca ordena nada a
ninguém mas, através de uma retórica sofisticada,
pode ou não persuadir certos indivíduos a fazerem o
que ele deseja. Este aspecto de liderança é genenlizável
entre comunidades Tupi Guarani (Kracke 1978, 1981, Viveiros de Castro,
1986). Crianças podem recusar pedidos de favores feitos por
adultos, bem como homens e mulheres de idades diferentes nunca são
forçadas a aceitarem ou fazerem nada para ninguém. Tais
"favores" são feitos por livre e espontânea
vontade, estimulados apenas pelo uso de técnicas de sedução
e persuasão oral.
Ducante
as festas coletivas, esta liderança flexível se torna
ainda mais aparente, com o resultado gradual de uma performance simultânea
de diversos instrumentos musicais e vozes, levando a uma "cacofonia"
ou polissincronia multisensorial envolvendo música, dança,
caxiri (cerveja de mandioca), pintura corporal, etc. (Fuks 1988, 1989).
Nesta estética, que funciona paralelamente a outros sistemas,
cada indivíduo pode tocar ou cantar o que bem entender, seguindo
apenas a estrutura básica de cada festa. Tais festas coletivas
podem envolver um grande número de participantes, podendo até
serem estendidas a outras aldeias. Em uma ocasião quatro aldeias
organizaram um grande evento em reverência ao peixe paku açu.
Em alguns casos, porém, apenas um pequeno número de
participantes realizam festas coletivas, com o mínimo registrado
envolvendo apenas três participantes. A importância destas
festas e da música ,em geral, torna-se aparente quando observamos
que elas constituem a atividade à qual os Waiapi dedicam a
maior parte de seu tempo (Fuks 1989). Mesmo a agricultura somada às
outras atividades de subsistência totalizam um número
menor de horas. Alem de nos surpreendermos como os Waiapi podem se
dar a esse luxo, ficamos perplexos, ao tentarmos entender como e por
que as festas coletivas adquirem tamanha importância.
Uma
razão para tanto refere-se a uma certa consciência ecológica
(se usarmos nossos termos) refletida nestes eventos e aliada à
possibilidade de expressar e sentir diversas emoções.
Estes conhecimentos ecológicos e a expressão de emoções
adquirem, também, um caráter didático, ilustrando-os
às futuras gerações. A importância das
formas de expressão orais em sociedade "preliteradas"
não deve ser subestimada. Portanto as festas dos Waiapi adquirem
uma certa função de ensino, em uma atmosfera prazeirosa
que, freqüentemente chega ao êxtase. Estes aspectos (sociais,
ecológicos emocionais) e suas interações ficam
mais claros se observarmos detalhes da festa do mangengan, uma dentre
as várias comemorações Waiapi.
A
abelha mangangan aparece em grande número, no início
da estação das chuvas, época que indica transformações
marcantes na floresta amazônica, o início do plantio
e atividades agrícolas subsequentes. A relação
entre o complexo natural e ecológico com o modelo de organização
social dos Waiapi e dos mangangan, é refletida nesta festa.
Isto ocorre, após os participantes terem chamado os "mangangan",
através de danças e canções alternadas
com os sons das flautas chamadas "mangangan ra'anga ". O
termo rá´anga indica uma certa imitação
auditiva e multissensorial das espécies representadas. Para
cada festa coletiva, os Waiapi fazem novos instrumentos musicais que,
por sua vez, pertencem à classe também chamada ra'anga.
As flautas da festa do mangangan são chamadas mangangan ra'anga,
e as da festa do jaguar (onça) jawarun ra'anga. Com a chegada
dos mangangan, os participantes se transformam neste "outro"
e passam a agir de acordo com as características próprias,
no caso, o mangangan. Uma dessas características é representada
pela picada de "abelhas " que assume uma relação
metonimica, pois um cinto de palha com formigas é colocado
em volta dos participantes e dos membros da audiência.
Outra
modificação no comportamento regular Waiapi (humano),
passando para o comportamento dos mangangan (inseto), é indicada
pela forma com que a cerveja de mandioca é servida aos participantes.
Convém frisar que todas as festas coletivas dos Waiapi são
marcadas, também, pelo consumo de cerveja de mandioca ou caxiri.
As festas são avaliadas pela quantidade e qualidade da cerveja.
Nestas, emerge sempre a pessoa do "caxiri jara" ou dono
da cerveja caxiri. São suas esposas que preparam e servem o
caxiri, durante as festas, seguindo uma ética elaborada e organizada
no preparar e servir, de acordo com o conhecimento de cada participante
sobre o tema (como por exemplo o mangangan) de cada festa (Fuks 1989).
Após a transformação em mangangan, os Waiapi
adquirem uma "licença artística " e, teatralmente,
passam a beber o caxiri direto de um pilão e de forma aleatória.
Assim sendo, as abelhas vivem, cantam, dançam e bebem caxiri,
de maneira diferente dos Waiapi, mas os Waiapi se mostram dispostos
a aprenderem algo com os mangangan, e fazem isso, usando todos os
sentidos. Se não bastasse o efeito catártico das festas
coletivas, cada participante pode reinterpretar o "cenário
natural" e agir, de forma não usual. Estas formas não
Waiapi, podem então ser testadas por indivíduos ou pela
comunidade e, dependendo de sua validade pratica, podem vir a ser
incorporadas à sociedade Waiapi, já que esta propicia
espaço para constantes modificações.
Uma
lição exposta na festa do mangangan se relaciona ao
fato de as abelhas serem atraídas pelo cheiro e beleza visual
de certas flores, que passam a ser abundantes na época das
chuvas. Desta forma, em uma seção da performance, os
participantes dançam com um buquê de flores. A seguir,
as mulheres ou parceiras de cada participante recolhem estes buquê.
Segundo os Waiapi, isso é a ´forma utilizada pelos mangangan
que após recolherem o néctar das flores, levam-no a
sua "casa", passando-o para suas famílias e amigos.'
Neste caso, observamos a visão não antropocêntrica
dos Waiapi, que observam o comportamento das abelhas e suas relações
complementares com as flores. O efeito da polinização
simultâneo à extração do néctar
das flores pelas abelhas, é representado através da
música, dança e representações visuais,
olfativas e táteis. Tudo isso ocorre em uma atmosfera festiva,
com muitas gargalhadas, reflexões e comentários sobre
as "coisas de mangangan" que somados a um efeito quase anestésico
da música, dança e caxirí gera um contexto marcado
por fortes emoções. Ao mesmo tempo, festas como a do
mangangan, ilustram como um grande ecossistema composto de diversos
fatores se relaciona a um complexo "drama social". Neste
modelo o homem não é apenas um simples ator, mas interage
em termos de igualdade com outras espécies. Esta mesma atitude
se reflete na forma não hierarquizada de organização
social dos Waiapi. O poder quando emerge e permanece por muito tempo
é ridicularizado e passa a ser repudiado (Clastres 1979, Fuks
1991). Isto acontece na realidade com a temível é venerável
onça (também honrada, na festa do jawarun).
Segundo
os Waiapi, a onça representa o pajé em sua eterna liminalidade
entre os domínios humanos e espirituais. Tanto a onça
quanto o pajé possuem poderes supernaturais que os distinguem
dos outros. Tais poderes podem ser utilizados para o bem ou o mal
dos Waiapi e de outras espécies de animais, peixes e insetos.
Assim
sendo, as festas coletivas dos Waiapi se encaixam com outras instituições
liberalizantes que, ao mesmo tempo, criam uma forma auto-suficiente
e descentralizada de organização social, semelhante
à "ecologia da liberdade" sugerida por Bookchin (1982).
Esta autosuficiência, aliada à ênfase na criatividade
artística, estimula a individualidade entre os Waiapi, mas
considerando sempre o equilíbrio social na aldeia, o equilíbrio
em relação a outras culturas e sociedades, o equilíbrio
com outras espécies e espíritos, criando um super "multiecosistema
global". Volto a frisar a complexidade deste sistema que, de
maneira sutil, preza a interdependência e complementariedade
de fatores sociais, emocionais e ecológicos. Neste complexo
ecossistema, os Waiapi apenas contribuem com uma pequena parte sem
se sobressaírem aos demais, ajudando-se uns aos outros.
CONCLUSÕES
As
diferenças entre nossa sociedade industrial e a sociedade tribal
dos Waiapi são evidentes e transplantar um modelo de um contexto
para outro tende a ser impraticável. Mas, se observarmos nossas
aspirações e necessidades básicas (incluindo
não apenas nossa sobrevivência em termos de alimentação,
moradia, desejos sexuais e outros) passamos a observar um número
de semelhanças com os Waiapi. É importante frisar que
a sociedade Waiapi não vive em um paraíso idealizado
pela visão romântica criada sobre certas sociedades tribais.
Os Waiapi freqüentemente se vêem forcados a enfrentar crises
e catástrofes sociais e ecológicas.
De
maneira análoga ao nosso conhecimento prático das condições
climáticas, meteorológicas e geológicas, incapaz
de prever com exatidão e evitar enchentes, terremotos e furacões,
o conhecimento Waiapi também é vítima de erros
e de elementos indeterminados. A suscetibilidade a doenças
diversas e a capacidade parcial de curá-las ou controlá-las
é outra semelhança entre a nossa sociedade e a dos Waiapi.
Apesar
das semelhanças e diferenças entre nossa sociedade e
a dos Waiapi, algumas sugestões de formas alternativas de controle
ecológico, social e emocional podem ser inferidas. Creio que
várias destas sugestões são perfeitamente compatíveis
com nossos modelos e nos permitem encarar certos problemas sociais,
econômicos, e ambientais, bem como as crises de razão,
economia e ciência apontadas por Theodore Adorno, Karl Marx
e Max Webern. Estas sugestões focalizam-se em idéias
Waiapi que se assemelham ao modelo da ecologia social proposto por
Bookchin e se ajustam as nossas necessidades e aspirações:
1.
Manter um equilíbrio com aqueles que fazem parte de nosso "milieu"
e com os quais interagimos regularmente, e com o meio ambiente em
geral. De certa forma, vivemos nestas condições buscando
tais equilíbrios, mas nos concentramos em nossos pequenos e
isolados microcosmos. No modelo Waiapi, não apenas nossas relações
com familiares e amigos mais próximos se mostram necessárias
mas em um amplo contexto socio-ecológico. Neste modelo homeostático
relativo existe espaço, também, para possíveis
conflitos, suas resoluções, separações
e eventuais interações. A relação refletida
na consciência ecológica mais ampla pode ser esclarecida
se observarmos a relação metafórica que mantemos
com animais de estimação. O mesmo afeto e falta de exploração
que demonstramos com nossos animais de estimação podem
ser estendidos a outras espécies das quais usufruímos
os subprodutos. Com moderação, podemos continuar a utilizar
estes benefícios sem impor, subjugar, explorar e dominar "outros",
humanos ou não.
2.
Interação: Combinar os três elementos básicos
do ethos Waiapi - igualdade social, consciência ecológica
e liberdade emocional - constitui algo que podemos aprender. Segundo
a abrangente "Ecologia Social" de Bookchin, existe uma certa
compatibilidade entre possíveis igualdades sociais e consciências
ecológicas, unidas pela falta de exploração e
dominação, seja ela intra ou extra humana. Como vimos
antes, no modelo Waiapi, isto também ocorre, mas para manter
a sociedade em sua vitalidade plena é necessário um
certo "tempero" a ser compartilhado por todos. Este "tempero"
emerge justamente das emoções expressadas nos contextos
artísticos, e levando junto um corpo de conhecimento que, por
sua vez, reenfatiza as relações sociais igualitárias
e as diversas formas de interação com o meio ambiente
e com outras espécies. Esta visão não antropocêntrica,
até nas sensações daquilo que consideramos marcadamente
humano (emoções), mais uma vez afirma a falta de hierarquia
na sociedade Waiapi, tanto internamente quanto em relação
às outras espécies. Esta visão interativa poderia
ser aplicada à nossa sociedade, de maneira análoga a
uma grande orquestra, sem maestro e tocando uma grande sinfonia composta
(de maneira não dogmática) ou improvisada por todos.
Nesta grande orquestra, para que se faça música em conjunto,
é necessário passar por processos e experiências
semelhantes à afinação dos instrumentos musicais.
Cada um se coloca à disposição, para ceder um
pouco, até que se encontrem em um denominador comum, para então
poderem expressar sua arte e, eventualmente chegarem a um estado de
equilíbrio ou "communitas". Assim sendo, aplicando
o modelo Waiapi, poderíamos tocar outras músicas com
os temas que enfatizam a "harmonia" ou interação
entre as consciências sociais e ecológicas e os "temperos"
emocionais.
Minha
intenção, neste artigo, foi mostrar a viabilidade de
um modelo social utilizado por uma pequena sociedade tribal Amazônica.
Através de forças socioculturais, pode-se criar uma
sociedade que mantém um equilíbrio entre seus membros
e em relação a outras espécies e ao meio ambiente.
Nesse modelo interativo todos possuem liberdade para fazerem o que
quiserem, mantendo suas individualidades e, ao mesmo tempo, considerando
as formas de interação com "outros". Assim
sendo, a expressão de emoções assume posição
essencial no modus vivendi", e se relaciona com o conhecimento
social e ecológico. Assim sendo, podemos aprender a ser índio
e refletir sobre as idéias Waiapi, com resultados benéficos
para todos.
Referências
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