Navegando no Desconhecido

Entrevista de Carlos Castaneda para a revistaUno Mismo, Chile and Argentina, Fevereiro de 1997 por Daniel Trujillo Rivas *

No número correspondente a janeiro/fevereiro de 1998 da revista Utne Reader, se fala do artigo "O Mundo dos Sonhos Conscientes" por Michael Brennan, que contém trechos desta e de outra entrevista feita a Carlos Castaneda.

P: Senhor Castaneda, durante anos você permaneceu no mais absoluto anonimato. O que o levou a abandonar essa condição para se dedicar hoje a difundir publicamente os ensinamentos que, junto a suas companheiras atuais, recebeu do nagual Juan Matus?

R. O que nos obriga a difundir as idéias de Don Juan Matus é a necessidade impostergável de esclarecer o que ele nos ensinou. Eu e suas outras três estudantes chegamos à unânime conclusão de que o mundo que Don Juan Matus nos apresentou está ao alcance dos meios perceptivos de todos os seres humanos. Considerávamos, entre nós, qual seria o caminho mais adequado. Permanecer no anonimato como Don Juan nos propôs? Isto não encontrava entre nós um eco prazeroso. O outro caminho disponível era o de difundir as idéias de Don Juan: um caminho imensamente mais perigoso e esgotante, mas o único que, acreditamos, possuía a dignidade como a que Don Juan envolveu em seus ensinamentos.

P. Considerando que você diz que os atos de um guerreiro são imprevisíveis, e de fato, assim o temos comprovado durante três décadas, podemos esperar que essa sua etapa pública se prolongue no tempo? Até quando?

R: Não há uma maneira de estabelecer um critério temporal para nós. Vivemos de acordo com as premissas propostas por Don Juan e jamais nos desviamos delas. Don Juan Matus nos deu o formidável exemplo de um homem que vivia como ele o descrevia. O exemplo de um homem monolítico que não tem duas caras. E digo que é um exemplo terrível porque é o mais difícil de imitar; ser monolítico e ao mesmo tempo ter a flexibilidade para encarar seja o que for; esta era a maneira de viver de Don Juan.

Dentro dessas premissas, o que se poder ser é um condutor impecável. Não somos o jogador desta partida de xadrez cósmico, somos simplesmente uma peça de xadrez. Quem decide tudo é uma força impessoal consciente que os bruxos chamam de Intento ou o Espírito.

P: Segundo se pode comprovar, a Antropologia ortodoxa, assim como os alegados defensores do patrimônio cultural pré-colombiano da América, não dá credibilidade a sua obra. Permanece a crença de que sua obra é puramente o fruto de seu talento literário, por certo, excepcional; ainda que outros setores o acusem de um comportamento duplo, porque, supostamente, seu estilo de vida e suas atividades são contrários ao que a maioria espera de um shamã. Como pode esclarecer estas suspeitas?

R. O sistema cognitivo do homem ocidental nos força a apoiar-nos em idéias pré- concebidas. Baseamos nosso julgamento em algo que é sempre, "a priori", por exemplo a idéia do que é "ortodoxo". O que é antropologia ortodoxa? Aquela que é ensinada em palestras universitárias? Qual é o comportamento de um shamã? Usar plumas e lançar para os espíritos?

Durante 30 anos as pessoas acusavam CC de criar um personagem literário, simplesmente porque aquilo que relato para eles não coincide com o "a priori antropológico" as idéias estabelecidas em salões de conferência ou em trabalho de campo antropológico. Entretanto, o que DON JUAN apresentou para mim poder ser aplicado apenas a uma situação que requer ação total e, sob tais circunstâncias, muito pouco ou quase nada dos acontecimentos pré-concebidos.

Nunca fui capaz de tirar conclusões sobre shamanismo, porque para fazer isto é necessário ser membro ativo do mundo dos shamãs. Para um cientista social, por exemplo, um sociólogo, é muito fácil chegar a uma conclusão sociológica sobre qualquer assunto relacionado ao mundo ocidental porque o sociólogo é um membro ativo do mundo ocidental. Mas como pode um antropólogo, que passa quando muito dois anos estudando outras cultura, chegar à conclusões confiáveis sobre elas? É necessário o tempo de uma vida para se tornar membro de um mundo cultural. Tenho trabalhado por mais de 30 anos no mundo cognitivo dos shamãs do México Antigo e, sinceramente, não acredito Ter me tornado um membro, o que me permitiria chegar a conclusões ou até mesmo propô-las.

Tenho discutido isto com pessoas de diferentes áreas e elas sempre parecem entender e concordar com as premissas, as quais estou apresentado. Mas então voltam atrás e esquecem tudo que concordaram e continuam a sustentar os princípios acadêmicos "ortodoxos" sem considerar a possibilidade de um erro absurdo nas suas conclusões. Nosso sistemas cognitivo parece ser impenetrável.

P. Qual é seu objetivo de não permitir que sua pessoa seja fotografada, tendo sua voz gravada ou tornar a sua biografia conhecida? Poderia isto afetar o que você já adquiriu no seu trabalho espiritual e de que forma? Você não acha que isto poderia ser útil para alguns sinceros buscadores da verdade saber quem você realmente é como forma de corroborar que é realmente possível seguir o caminho que você proclama?

R. Em relação à fotografia e dados pessoas as outras três discípulas de DON JUAN seguem as instruções. Para um shamã como DON JUAN a idéia principal que está por trás de não fornecer dados pessoais é muito simples. É imperativo deixar de lado o que ele chama de "história pessoal". Fugir do "eu" é algo extremamente irritante e difícil. O que os shamãs como DON JUAN buscam é um estado de fluidez onde "eu" pessoal não conta. Ele acreditava que uma ausência de fotografias e dados biográficos afetam a qualquer pessoa que entra neste campo de ação numa forma positiva apesar de sub-humana. Estamos acostumados a usar fotografias, gravações e dados biográficos, todos os quais emergem da idéia da importância pessoal. DON JUAN dizia que é melhor não saber nada, desta forma ao invés de encontrar uma pessoa, encontramos uma idéia que pode ser sustentada; o oposto do que acontece no mundo cotidiano onde nos deparamos apenas com pessoas que tem inúmeros problemas psicológicos, mas sem idéias, todas estas pessoas cheias até o topo de "eu, "eu", "eu".

P. Como devem seus seguidores interpretar a publicidade e a infraestrutura comercial, fora seu trabalho literário, que cerca o conhecimento que você e suas companheiras disseminam? Qual é sua real relação com a Cleargreen e as outras companhias (Laugan Productions, Toltec Artists)? Estou falando de um elo comercial.

R. Neste ponto do meu trabalho eu precisava de alguém capaz de me representar no que diz respeito a disseminar as idéias de Juan Matus. Cleargreen é uma corporação que tem grande afinidade com nosso trabalho, como tem Laugan Productions e os Toltec Artists. A idéia de disseminar os ensinamentos de DON JUAN no mundo moderno implica na utilização de mídia comercial e artística que não estão ao meu alcance individual. Como corporações que tem afinidade com as idéias de DON JUAN, a Cleargreen Incorporated, Laugan Productions e Toltec Artists, são capazes de providencias os meios de disseminar o que quero disseminar.

Sempre há uma tendência para corporações impessoais a dominar e transformar tudo que lhes é apresentado e adaptá-lo à sua própria ideologia. Se não fosse pelo sincero interesse da Cleargreen, Laugan Production e Toltec Artist, tudo que DON JUAN transmitiu já teria sido deformado em outra coisa.

P. Há um grande número de pessoas que, de um jeito ou de outro, se "penduram" em você para obter notoriedade pública. Qual a sua opinião nos atos de Victor Sanchez, que interpretou e reorganizou seus ensinamentos para elaborar sua teoria pessoal? E pelas afirmações do Ken Eagle Feather que diz ser o escolhido para ser discípulo de DON JUAN, e que Don Juan voltou somente para ele?

R. De fato há muitas pessoas que se (auto intitulam) dizem ser meus alunos, pessoas que jamais conheci e quem, posso garantir, Don Juan nunca conheceu. Don Juan Matus estava exclusivamente interessado em perpetuar sua linhagem de shamãs. Ele tinha quatro discípulos que permanecem até agora. Tinha outros que partiram com ele. Don Juan não estava interessado em ensinar seus conhecimentos, ele o ensinou a seus discípulos afim de continuar sua linhagem. Devido ao fato que não podem continuar a linhagem de DON JUAN, seus quatro discípulos foram forçados a disseminar suas idéias.

O conceito de professor que ensina seus conhecimentos faz parte de nosso sistema cognitivo mas não faz parte do sistema cognitivo dos shamãs do México Antigo. Ensinar era absurdo para eles. Transmitir seus conhecimentos para aqueles que iriam perpetuar sua linhagem era uma questão diferente.

O fato que existem vários indivíduos que insistem em usar meu nome ou o nome de DON JUAN é simplesmente uma manobra fácil de beneficiar-se sem grandes esforços. much effort.

P. Consideremos o significado da palavra "espiritualidade" como sendo um estado de consciência na qual os seres humanos são totalmente capazes de controlar os potenciais das espécies, adquirindo por transcender a simples condição animal através do treino duro psíquico, moral e intelectual. Você concorda com esta afirmação? Como se integra o mundo de DON JUAN neste contexto?

R. Para DON JUAN Matus, um shamã extremamente sóbrio e pragmático, "espiritualidade" era uma idéia vazia, uma afirmação sem base a qual acreditamos ser bonita porque está embutida de conceitos literários e expressões poéticas, mas não vai além disso.

Shamãs como DON JUAN são essencialmente práticos. Para eles somente existe um universo predatório no qual a inteligência ou a consciência é produto dos desafios da vida e da morte. Ele se considera um navegador do infinito e disse que para navegar no infinito como um shamã faz, precisamos de um pragmatismo ilimitado, uma sobriedade sem fronteiras e músculos de aço.

Diante de tudo isso, DON JUAN acreditava que "espiritualidade" é simplesmente uma descrição de alguma coisa impossível de se realizar dentro do modelo de mundo da vida cotidiana e não é uma caminho real de ação.

P: Você assinalou que sua atividade literária se deve às instruções de Don Juan, o mesmo que a de Taisha Abelar e Florinda Donner-Grau. Com que objetivo?

R: O objetivo de escrever os livros foi dado por Don Juan. Ele assegurava que se alguém não é escritor, ainda pode escrever, mas o escrever se transforma de uma ação literária em una ação shamanística. Quem decide o tema e o desenvolvimento de um livro não é a mente do escritor, mas uma força que os shamãs consideram como a base do universo e a que chamam de intento. É o intento quem decide a produção de um shamã, seja literária ou outra qualquer.

De acordo com Don Juan, um praticante de shamanismo tem o dever, a obrigação de saturar se com toda a informação disponível. O trabalho de um shamã é o de se informar de uma maneira plena de tudo o que for relacionado com o tópico de seu interesse. O ato shamanístico consiste em abandonar todo interesse de dirigir o curso que tal informação tome. "Quem estabelece as idéias que nascem de tal fonte de informação não é o shamã - dizia Don Juan -, mas o Intento. O shamã é simplesmente um condutor impecável". O escrever era para Don Juan um desafio shamanístico, não uma tarefa literária.

P: Se me permite a seguinte afirmação, sua obra introduz conceitos estreitamente relacionados com as doutrinas filosóficas orientais, mas resulta contraditória com o que se conhece da cultura indígena mexicana. Onde se encontram as semelhanças e diferenças entre uma e outra?

R: Não tenho a menor idéia. Não sou erudito nem em um ou outro. Meu trabalho consiste de uma informação fenomenológica do mundo cognitivo ao qual me introduziu Don Juan Matus. Do ponto de vista da fenomenologia como método filosófico, não é possível chegar a afirmações relacionadas com o fenômeno em sua essência. O mundo de Don Juan Matus é tão vasto, misterioso e contraditório que não se presta a um exercício de exposição linear; o melhor que podemos fazer é descrevê-lo e ainda assim fazendo um esforço extremo.

P: Assumindo que os ensinamentos de Don Juan passou a fazer parte da literatura ocultista, qual sua opinião sobre estes outros ensinamentos, por exemplo, as filosofias massônica, Rosacruz, o Hermetismo, e disciplinas tais como a Cabala, o Tarot e a Astrologia, comparando-as com o nagualismo? Alguma vez manteve ou mantém contato com alguma dessas vertentes ou com seus seguidores?

R: De novo não tenho nem a menor idéia de quais são as premissas, os pontos de vista, nem os temas de tais disciplinas. Don Juan nos apresentou o problema de navegar no desconhecido e isto nos toma todo o esforço disponível.

P: Alguns dos conceitos de sua obra, como o ponto de aglutinação, as emanações de energia que compõem o universo, o mundo dos seres inorgânicos, o Intento, a Espreita e o sonhar, tem uma contrapartida no conhecimento ocidental? Por exemplo, há quem vê o homem como ovo luminoso como uma expressão da aura.

R: Não, nada do que Don Juan nos ensinou parece ter uma contrapartida no conhecimento ocidental, que eu saiba.

Uma vez, quando Don Juan ainda estava presente, passei um ano inteiro em busca de gurus, mestres e sábios que me dessem um indício do que estavam fazendo. Queria saber se havia algo no mundo de então que fosse parecido ao que Don Juan dizia e fazia.

Meus recursos eram muito limitados e só me levaram a conhecer os mestres estabelecidos que tinham milhares de seguidores, e desgraçadamente não pude encontrar nada parecido.

P: Concentrando-nos agora especificamente em sua obra, seus leitores encontram diferentes Carlos Castaneda. Primeiro, a um acadêmico ocidental algo inepto e permanentemente desconcertado diante do poder de índios anciãos, como Don Juan e Don Genaro (principalmente nos livros A Erva do Diabo, Uma Estranha Realidade, Viagem a Ixtlan, Relatos de Poder e O Segundo Anel de Poder.) Logo depois encontramos um aprendiz versado em shamanismo (em O Presente da Águia, O Fogo Interior, O Poder do Silêncio e, especialmente, em A Arte de Sonhar.) Se está de acordo com esta apreciação, quando e como desapareceu um para deixar surgir o outro?

R: Não me considero nem shamã, nem mestre, nem estudante avançado de shamanismo, nem tampouco me considero um antropólogo ou cientista social do mundo ocidental. Minhas apresentações tem sido descrições de um fenômeno impossível de discernir sob as condições do conhecimento linear do mundo ocidental. Jamais pude dar ao que me ensinava Don Juan uma explicação de causa e efeito ou tive a possibilidade de predizer o que ele iria dizer ou o que iria se passar. Sob tais condições, se ele passou de um estado a outro é subjetivo e não algo elaborado ou produto de premeditação ou sabedoria.

P: Em sua obra é possível encontrar episódios francamente incríveis para a mentalidade ocidental. Como poderia alguém não iniciado comprovar que são verdadeiras essas "realidades à parte" que você descreve?

R: Se pode comprovar de uma maneira muito simples. Utilizando o corpo inteiro ao invés do intelecto. Ao mundo de Don Juan não se pode entrar intelectualmente como um diletante na posse de um conhecimento rápido e passageiro, nem tampouco se pode comprovar nada. A única coisa que se pode fazer é chegar a um estado de consciência intensificada que nos permita perceber o mundo que nos rodeia de una maneira mais ampla. Em outras palavras, a meta do shamanismo de Don Juan é romper os parâmetros da percepção histórica e cotidiana, e começar a perceber o desconhecido. A partir daí, ele chamará a si mesmo de navegante do Infinito. Ele sustentava que mais além dos parâmetros da percepção diária, está o Infinio Chegar a isso era a meta de sua vida, e posto que ele era um shamã extraordinário, induziu em nós quatro esse desejo. Forçou-nos a transcender o intelecto e a encarnar o conceito da ruptura dos parâmetros da percepção histórica.

P: Você sustenta que a característica básica dos seres humanos é sua condição de "percebedores de energia". Assinala o movimento do ponto de aglutinação como um imperativo para perceber energia diretamente. Para que pode servir isso a um homem do século XXI? Como ajuda a consecução desta meta na superação espiritual, segundo o conceito antes definido?

R: Os shamãs como Don Juan sustentam que todos os seres humanos possuem a capacidade de perceber energia diretamente a medida em que ela flui no universo. Consideram que o ponto de aglutinação, como eles o chamam, é um ponto que existe no campo de energia total do homem. Em outras palavras, quando um shamã percebe um homem como energia que flui no universo, "vê" uma bola luminosa. Nessa bola luminosa o shamã pode "ver" um ponto de grande brilho que está situado na altura das omoplatas e à distância de mais ou menos um metro atrás deles. Os shamãs sustentam que ali é onde se realiza a percepção, que a energia que flue no universo se transforma em dados sensoriais e que esses dados sensoriais são logo interpretados para dar como resultado o mundo da vida cotidiana. Os shamãs mantém que se nos ensinam a interpretar, também nos ensinam a perceber.

O valor pragmático de perceber a energia diretamente a medida em que flui no universo para o homem do século XXI ou do século I é o mesmo. Vai lhe permitir ampliar os limites de sua percepção e utilizá-lo dentro de seu meio ambiente. Don Juan dizia que seria extraordinário "ver" diretamente a maravilha de ordem e de caos do universo.

PASSES MÁGICOS DE CARLOS CASTANEDA