O Povo das Mercadorias
Quando
viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito
tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa.
Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas
árvores para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos,
não pararam de aumentar, e não havia mais floresta.
Então, eles pararam de caçar, não havia mais
caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar
mercadorias e seu espírito começou a obscurecer-se por
causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles
construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem.
Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: "Nós vamos
nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e dinheiro
também! Assim, quando formos realmente numerosos, jamais seremos
miseráveis". Foi com esse pensamento que eles acabaram
com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água
"embrulhada", que precisam comprar. A água de verdade,
a que corre nos rios, já não é boa para beber.
Nos primeiros tempos,
os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram
pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras,
mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se
a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas
coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água
porque seus calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram
e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões.
Eles se tornaram eufóricos e se disseram: "Nós
somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós
sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!".
Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro
estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar na dos outros
para aumentar suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram:
"Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar
uma outra?"
Quando conheci a terra
dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas,
mas seu barulho não para nunca. Eles correm por elas com carros,
nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho
e gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranhado,
não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento
dos brancos está cheio de vertigens e eles não compreendem
nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: "Estamos
muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo,
ouro, ferro! Os yanomami são mentirosos!". O pensamento
desses brancos está obstruído, é por isso que
eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até
debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por
desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo.
Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes",
as mineradoras, entram por toda parte sob a terra para retirar minérios,
eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais
canibais.
[O
universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos
suspensos em um "grande vazio". O mundo subterrâneo
foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos.
É habitado pelos ancestrais yanomami da primeira humanidade,
que se tornaram monstros canibais, os aõpataripë.]
Nós, nós
queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos
viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos
xapiripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas
que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos
na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça
silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão
da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. A terra dos
brancos estão contaminadas, estão cobertas da xawara
wakixi, uma "epidemia-fumaça", que se extendeu muito
alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para nós
mas ainda não chega lá, pois o espírito celes
Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o
céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que
os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando
eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender
a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca
pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso
que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio
de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas
mercadorias, como se fossem suas namoradas.
Davi
Kopenawa Yanomami, xamã, 1998.