ANARQUIA
E ORGANIZAÇÃO
1927
Um opúsculo francês intitulado: “Plataforma de
organização da União geral dos Anarquistas (Projeto)”
caiu-me nas mãos por acaso. (Sabe-se que hoje os escritos não
fascistas não circulam na Itália.)
É
um projeto de organização anárquico, publicado
sob o nome de um “Grupo de anarquistas russos no estrangeiro”
e que parece mais especialmente dirigido aos camaradas russos. Mas
trata de questões que interessam a todos os anarquistas e,
além do mais, é evidente que procura a adesão
dos camaradas de todos os países, inclusive pelo fato de ser
escrito em francês. De qualquer forma, é útil
examinar, pelos russos assim como por todos, se o projeto em questão
está em harmonia com os princípios anarquistas e se
sua realização serviria realmente à causa do
anarquismo. Os objetivos dos promotores são excelentes. Eles
lamentam que os anarquistas não tenham tido e não tenham,
sobre os eventos da política social, influência proporcional
ao valor teórico e prático de sua doutrina, assim como
a seu número, à sua coragem, a seu espírito de
sacrifício, e pensam que a primeira razão deste insucesso
relativo é a falta de uma organização vasta,
séria, efetiva.
Até aqui, em princípio, estou de acordo.
A organização outra coisa não é senão
a prática da cooperação e da solidariedade, é
a condição natural, necessária, da vida social,
é um fato inelutável que se impõe a todos, tanto
na sociedade humana em geral quanto em todo grupo de pessoas que tenha
um objetivo comum a alcançar.
O homem não quer e não pode viver isolado, não
pode sequer tornar-se verdadeiramente homem e satisfazer suas necessidades
materiais e morais senão em sociedade e com a cooperação
de seus semelhantes. É, portanto, fatal que todos aqueles que
não se organizam livremente, seja por não poderem, seja
por não sentirem a imperativa necessidade, tenham de suportar
a organização estabelecida por outros indivíduos
ordinariamente constituídos em classes ou grupos dirigentes,
com o objetivo de explorar em sua própria vantagem o trabalho
alheio.
A opressão milenar das massas por um pequeno número
de privilegiados sempre foi a conseqüência da incapacidade
da maioria dos indivíduos em se entender, em se organizar sobre
a base da comunidade de interesses e de sentimentos com outros trabalhadores
para produzir, para usufruir e para, eventualmente, defender-se dos
exploradores e opressores. O anarquismo vem remediar este estado de
coisas com seu princípio fundamental de livre organização,
criada e mantida pela livre vontade dos associados sem nenhuma espécie
de autoridade, isto é, sem que nenhum indivíduo tenha
o direito de impor aos outros sua própria vontade. É
natural, portanto, que os anarquistas procurem aplicar à sua
vida privada e à vida de seu partido este mesmo princípio
sobre o qual, segundo eles, deveria estar fundamentada toda a sociedade
humana.
Certas polêmicas deixariam supor que há anarquistas refratários
a toda organização; mas, na realidade, as numerosas,
muito numerosas discussões que mantemos sobre esse assunto,
mesmo quando são obscurecidas por questões de semântica
ou envenenadas por questões pessoais, só concernem,
no fundo, ao modo e não ao princípio de organização.
Assim é que camaradas, os mais opostos, em palavras, à
organização, organizam-se como os outros e amiúde
melhor do que os outros, quando querem fazer algo com seriedade. A
questão, eu repito, está toda na aplicação.
Eu deveria ver com simpatia a iniciativa destes camaradas russos,
convicto como estou de que uma organização mais geral,
melhor formada, mais constante do que aquelas que foram até
aqui realizadas pelos anarquistas, mesmo que não conseguisse
eliminar todos os erros, todas as insuficiências, talvez inevitáveis
num movimento que, como o nosso, antecipa-se ao tempo e que, por isso,
debate-se contra a incompreensão, a indiferença e freqüentemente
a hostilidade da grande maioria, seria pelo menos, com toda certeza,
um importante elemento de força e de sucesso, um poderoso meio
de fazer valer nossas idéias.
Creio ser necessário e urgente que os anarquistas se organizem,
para influir sobre a marcha que as massas impõem em sua luta
pelas melhorias e pela emancipação. Hoje, a maior força
de transformação social é o movimento operário
(movimento sindical) e de sua direção depende, em grande
parte, o curso que tomarão os eventos e o objetivo a que chegará
a próxima revolução. Por suas organizações,
fundadas para a defesa de seus interesses, os trabalhadores adquirem
a consciência da opressão sob a qual se curvam e do antagonismo
que os separa de seus patrões, começam a aspirar a uma
vida superior, habituam-se à vida coletiva e à solidariedade,
e podem conseguir conquistar todas as melhorias compatíveis
com o regime capitalista e estatista. Em seguida, é a revolução
ou a reação.
Os anarquistas devem reconhecer a utilidade e a importância
do movimento sindical, devem favorecer seu desenvolvimento e fazer
dele uma das alavancas de sua ação, esforçando-se
em fazer prosseguir a cooperação do sindicalismo e das
outras forças do progresso numa revolução do
sindicalismo e das outras forças do progresso numa revolução
social que comporte a supressão das classes, a liberdade total,
a igualdade, a paz e a solidariedade entre todos os seres humanos.
Mas seria uma ilusão funesta acreditar, como muitos o fazem,
que o movimento operário resultará por si mesmo, em
virtude de sua própria natureza, em tal revolução.
Bem ao contrário: em todos os movimentos fundados sobre interesses
materiais e imediatos (e não pode estabelecer-se sobre outros
fundamentos um vasto movimento operário), é preciso
o fermento, o empurrão, a obra combinada dos homens de idéias
que combatem e se sacrificam com vistas a um futuro ideal. Sem esta
alavanca, todo movimento tende fatalmente a se adaptar às circunstâncias,
engendra o espírito conservador, o temor pelas mudanças
naqueles que conseguem obter melhores condições. Freqüentemente,
novas classes privilegiadas são criadas, esforçando-se
por fazer tolerado, por consolidar o estado de coisas que desejaria
abater.
Daí a urgente necessidade de organização propriamente
anarquista que, tanto dentro como fora dos sindicatos, lutam pela
realização integral do anarquismo e procuram esterilizar
todos os germes da corrupção e da reação.
Todavia, é evidente que para alcançar seu objetivo as
organizações anarquistas devem, em sua constituição
e em seu funcionamento, estar em harmonia com os princípios
da anarquia. É preciso, portanto, que não estejam em
nada impregnadas de espírito autoritário, que saibam
conciliar a livre ação dos indivíduos com a necessidade
e o prazer da cooperação, que sirvam para desenvolver
a consciência e a capacidade de iniciativa de seus membros e
sejam um processo educativo no meio em que operam e uma preparação
moral e material ao futuro desejado.
O projeto em questão responde a estas exigências? Creio
que não. Acho que, ao invés de fazer nascer entre os
anarquistas um desejo maior de se organizar, ele parece feito para
confirmar o preconceito de muitos camaradas que pensam que se organizar
é submeter-se a chefes, aderir a um organismo autoritário,
centralizador, sufocando toda livre iniciativa. Com efeito, nesses
estatutos, são precisamente expressas as proposições
que alguns, contra a evidência e apesar de nossos protestos,
obstinam-se em atribuir a todos os anarquistas qualificados de organizadores.
*
* *
Examinemos:
Inicialmente, parece-me que é uma idéia falsa (e em
todo o caso irrealizável) reunir todos os anarquistas numa
“União Geral”, isto é, assim como o precisa
o Projeto, em uma única coletividade revolucionária
ativa.
Nós, anarquistas, podemos nos dizer todos do mesmo partido
se, pela palavra partido, compreende-se o conjunto de todos aqueles
que estão de um mesmo lado, que possuem as mesmas
aspirações gerais que, de uma ou de outra maneira, lutam
com o mesmo objetivo contra adversários e inimigos comuns.
Mas isto não quer dizer que seja possível – e
talvez não seja desejável – reunirmo-nos todos
em uma mesma associação determinada.
Os meios e as condições de luta diferem muito, os modos
possíveis de ação que dividem a preferência
de uns e dos outros são muito numerosos, e muito numerosas
também as diferenças de temperamento e as incompatibilidades
pessoas para que uma União Geral, realizada de modo sério,
não se torne um obstáculo às atividades individuais,
talvez mesmo uma causa das mais árduas lutas intestinas, ao
invés de um meio para coordenar e totalizar os esforços
de todos.
Como, por exemplo, poder-se-ia organizar, da mesma maneira e com o
mesmo pessoal, uma associação pública para a
propaganda e para a agitação no seio das massas e uma
sociedade secreta, obrigada pelas condições políticas,
onde opera, a esconder do inimigo seus objetivos, seus meios, seus
agentes? Como a mesma tática poderia ser adotada pelos educacionistas
persuadidos de que basta a propaganda e o exemplo de alguns para transformar
gradualmente os indivíduos e, portanto, a sociedade, e os revolucionários
convictos da necessidade de destruir pela violência um estado
de coisas que só se sustenta pela violência, e criar,
contra a violência dos opressores, as condições
necessárias ao livre exercício da propaganda e à
aplicação prática das conquistas particulares,
não se amam e não se estimam, e, entretanto, podem ser
igualmente bons e úteis militantes do anarquismo?
Por outro lado, o autores do Projeto declaram inepta a idéia
de criar uma organização que reúna os representantes
das diversas tendências do anarquismo. Uma tal organização,
dizem, “incorporando elementos teóricos e praticamente
heterogêneos, outra coisa não seria senão um aglomerado
mecânico de indivíduos que têm concepção
diferente de todas as questões concernentes ao movimento anarquista;
ela se desagregaria, com certeza, logo após ser colocada à
prova dos fatos e da vida real”.
Muito bem. Mas então, se eles reconhecem a existência
dos anarquistas e das outras tendências, deverão deixar-lhes
o direito de se organizar, por sua vez, e trabalhar pela anarquia
de modo que acreditarem ser o melhor. Ou eles têm a intenção
de expulsar do anarquismo, excomungar todos aqueles que não
aceitam seu programa? Eles dizem desejar reagrupar numa única
organização todos os elementos sãos
do movimento libertário, e, naturalmente, terão tendência
a julgar sãos somente aqueles que pensam como eles. Mas o que
farão com os elementos doentes?
Certamente há, entre aqueles que se dizem anarquistas, como
em toda coletividade humana, elementos de diferentes valores e, pior
ainda, há quem faça circular em nome do anarquismo idéias
que só tem com ele duvidosas afinidades. Mas como evitar isso?
A verdade anarquista não pode e não deve tornar-se
monopólio de um indivíduo ou de um comitê. Ela
não pode depender das decisões de maiorias reais ou
fictícias. É necessário somente – e isso
seria suficiente – que todos tenham e exerçam o mais
amplo direito de livre crítica, e cada um possa sustentar suas
próprias idéias e escolher seus próprios companheiros.
Os fatos julgarão, em última instância, e darão
razão a quem a tem.
*
* *
Abandonemos, portanto, a idéia de reunir todos os anarquistas
em uma única organização; consideremos esta “União
Geral” que nos propõem os russos com o que ela seria
na realidade: a união de certo número de anarquistas,
e vejamos se o modo de organização proposto está
conforme aos princípios e métodos anarquistas, e se
ele pode ajudar no triunfo do anarquismo. Mais uma vez, parece-me
que não. Não ponho em dúvida o anarquismo sincero
desses camaradas russos; eles querem realizar o comunismo anarquista
e procuram a maneira de chegar a ele o mais rápido possível.
Mas não basta desejar uma coisa, é preciso ainda empregar
os meios oportunos para obtê-la, assim como para ir a um lugar
é preciso tomar o caminho que a ele conduz, sob pena de chegar
a outro lado. Ora, sendo a organização proposta inteiramente
do tipo autoritário, não somente não facilitaria
o triunfo do comunismo anarquista, mas ainda falsificaria o espírito
anarquista e teria resultados contrários àqueles que
seus organizadores esperam.
Com efeito, esta “União Geral” consistiria em tantas
organizações parciais que haveria secretariados
para dirigir ideologicamente a obra política e técnica,
e haveria um Comitê Executivo da União encarregado
de executar as decisões tomadas pela União, “dirigir
a ideologia e a organização dos grupos em conformidade
com a ideologia e com a linha de tática geral da União”.
Isso é anarquismo? É, na minha opinião, um governo
e uma igreja. Faltam-lhe, é verdade, a polícia e as
baionetas, assim como faltam os fiéis dispostos a aceitar a
ideologia ditada de cima, mas isso significa apenas que esse governo
seria um governo impotente e impossível, e que esta igreja
seria fonte de cismas e heresias. O espírito, a tendência,
permanecem autoritários, e o efeito educativo sempre seria
antianarquista.
Escutai o que se segue: “O órgão executivo do
movimento libertário geral – a União anarquista
– adota o princípio da responsabilidade coletiva; toda
a União será responsável pela atividade revolucionária
e política de cada um de seus membros, e cada membro será
responsável pela atividade revolucionária e política
da União”.
Depois dessa negação absoluta de qualquer independência
individual, de toda liberdade de iniciativa e de ação,
os promotores, lembrando-se serem anarquistas, dizem-se federalistas,
e gritam contra a centralização cujos resultados inevitáveis
são, segundo dizem, a subjugação e a mecanização
da vida social e da vida dos partidos.
Mas se a União é responsável do que faz cada
um de seus membros, como deixar a cada membro em particular e aos
diferentes grupos a liberdade de aplicar o programa comum do modo
que eles julguem melhor? Como se pode ser responsável por um
ato se não se possui a faculdade de impedi-lo? Conseqüentemente,
a União, e por ela o Comitê Executivo, deveria vigiar
a ação de todos os membros em particular, e prescrever-lhes
o que devem ou não fazer, e como a condenação
do fato consumado não atenua a responsabilidade formalmente
aceita de antemão, ninguém poderia fazer o que quer
que fosse antes de ter obtido a aprovação, a permissão
do Comitê. E, por outro lado, pode um indivíduo aceitar
a responsabilidade dos atos de uma coletividade antes de saber o que
fará ela? Como pode impedi-la de fazer o que ele desaprova?
Além disso, os autores do Projeto dizem que a União
quer e dispõe. Mas quando se diz vontade da União, entende-se
vontade de todos os seus membros? Neste caso, para que a União
possa agir seria preciso que todos os seus membros, em todas as questões,
tenham sempre exatamente a mesma opinião. Ora, é natural
que todos estejam de acordo quanto aos princípios gerais e
fundamentais, sem o que não estariam unidos, mas não
se pode supor que seres pensantes sejam todos e sempre da mesma opinião
sobre o que convém fazer em todas as circunstâncias,
e sobre a escolha das pessoas a quem confiar a tarefa de executar
e dirigir.
Na realidade, assim como resulta do próprio texto do Projeto
– por vontade da União só se pode entender a vontade
da maioria, vontade expressada por Congressos que nomeiam e controlam
o Comitê Executivo e decidem sobre todas as questões
importantes. Os Congressos, naturalmente, seriam compostos por representantes
eleitos por maioria em cada grupo aderente, e esses representantes
decidiriam o que deveria ser feito, sempre pela maioria dos votos.
Desta forma, na melhor hipótese, as decisões seriam
tomadas por uma maioria da maioria, que poderia muito bem, particularmente
quando as opiniões em oposição fossem mais de
duas, não representar mais do que uma minoria.
Deve-se, com efeito, observar que, nas condições em
que vivem e lutam os anarquistas, seus Congressos são ainda
menos representativos do que os Parlamentos burgueses, e seu controle
sobre os órgãos executivos, se estes possuem um poder
autoritário, raramente se manifesta a tempo e de maneira eficaz.
Aos Congressos anarquistas, na prática, vai quem quer e pode,
quem tem ou consegue o dinheiro necessário e não é
impedido por medidas policiais. Há, nesses Congressos, tantos
daqueles que só representam eles mesmos, ou a pequeno número
de amigos, quantos daqueles que representam, de fato, as opiniões
e os desejos de uma coletividade numerosa. Salvo as precauções
a serem tomadas contra os traidores e espiões, e também
por causa dessas mesmas precauções necessárias,
é impossível uma séria verificação
dos mandatos e de seu valor.
De qualquer modo, estamos em pleno sistema majoritário, em
pleno parlamentarismo.
Sabe-se que os anarquistas não admitem o governo da maioria
(democracia), assim como também não admitem
o governo de um pequeno número (aristocracia, oligarquia,
ditadura de classe ou de partido), nem o de um único (autocracia,
monarquia ou ditadura pessoal).
Os anarquistas fizeram mil vezes a crítica do governo dito
de maioria, o que, na aplicação prática sempre
conduz ao domínio de uma pequena minoria. Será preciso
que eles a refaçam para o uso de nossos camaradas russos?
É
verdade, os anarquistas reconhecem que, na vida em comum, é
com freqüência necessário que a minoria se conforme
com a opinião da maioria. Quando há necessidade ou utilidade
evidente de fazer uma coisa e, para fazê-la, é necessário
o concurso de todos, a minoria deve sentir a necessidade de se adaptar
à vontade da maioria. Por sinal, em geral, para viver juntos,
em paz e sob um regime de igualdade, é necessário que
todos estejam animados de espírito de concórdia, de
tolerância, de flexibilidade. Todavia, esta adaptação,
de parte dos associados à outra parte, deve ser recíproca,
voluntária, derivar da consciência da necessidade e da
vontade de cada um em não paralisar a vida social, por sua
obstinação. Ela não deve ser imposta como princípio
e como regra estatutária. É um ideal que, talvez, na
prática da vida social geral, será difícil realizar
de modo absoluto, mas é certo que todo agrupamento humano é
tanto mais vizinho da anarquia quando a concordância entre a
minoria e a maioria é mais livre, mais espontânea, imposta
somente pela natureza das coisas.
Assim, se os anarquistas negam, à maioria, o direito de governar
a sociedade humana geral, onde o indivíduo é, todavia,
obrigado a aceitar certas restrições, visto que não
pode isolar-se sem renunciar às condições da
vida humana, se querem que tudo se faça pelo livre acordo entre
todos, como é possível que adotem o governo da maioria
em suas associações essencialmente livres e voluntárias
e que comecem por declarar que se submetem às decisões
da maioria, antes mesmo de saber quais elas serão?
Que a anarquia, a livre organização sem domínio
da maioria sobre a minoria, e vice-versa, seja qualificada, por aqueles
que não são anarquistas, de utopia irrealizável,
ou somente realizável em um futuro longínquo, isto se
compreende; mas é inconcebível que aqueles que professam
idéias anarquistas e desejariam realizar a anarquia, ou, pelo
menos, aproximar-se dela, seriamente, hoje, ao invés de amanhã,
reneguem os princípios fundamentais do anarquismo na própria
organização pela qual eles se propõem combater
pelo seu triunfo.
*
* *
Uma organização anarquista deve, na minha opinião,
ser estabelecida sobre bases diferentes daquelas que nos propõem
esses camaradas russos. Plena autonomia, plena independência
e, conseqüentemente, plena responsabilidade dos indivíduos
e dos grupos; livre acordo entre aqueles que crêem ser útil
unir-se para cooperar em um trabalho comum, dever moral de manter
os engajamentos assumidos e de nada fazer que esteja em contradição
com o programa aceito. Sobre essas bases, adaptam-se as formas práticas,
os instrumentos aptos a dar vida real à organização:
grupos, federações de grupos, federações
de federações, reuniões, congressos, comitês
encarregados da correspondência ou de outras funções.
Mas tudo isso deve ser feito livremente, de maneira a não entravar
o pensamento e a iniciativa dos indivíduos, e somente para
dar mais alcance a resultados que seriam impossíveis ou mais
ou menos ineficazes se estivessem isolados.
Dessa maneira, os Congressos, em uma organização anarquista,
ainda que sofrendo, enquanto corpos representativos, de todas as imperfeições
que assinalei, estão isentos de todo autoritarismo porque não
fazem a lei, não impõem aos outros suas próprias
deliberações. Servem para manter e ampliar as relações
pessoais entre os camaradas mais ativos, para resumir e provocar o
estudo de programas sobre formas e meios de ação, mostrar
a todos a situação das diversas regiões e a ação
mais urgente em cada uma delas, para formular as diversas opiniões
existentes entre os anarquistas e delas fazer um tipo de estatística.
Suas decisões não são regras obrigatórias,
mas sugestões, conselhos, proposições a submeter
a todos os interessados; elas só se tornam obrigatórias
e executivas para aqueles que as aceitam, e só até o
ponto em que as aceitam. Os órgãos administrativos que
eles nomeiam – Comissão de correspondência etc.
– não têm nenhum poder de direção,
só tomam iniciativas, não possuem nenhuma autoridade
para impor seus próprios pontos de vista, que podem seguramente
sustentar e propagar enquanto grupos de camaradas, mas que não
podem apresentar como opinião oficial da organização.
Publicam as resoluções dos Congressos, as opiniões
e as proposições que grupos e indivíduos lhes
comunicam; são úteis a quem quiser deles se servir para
estabelecer relações mais fáceis entre os grupos
e para a cooperação entre aqueles que estão em
concordância em diversas iniciativas, mas todos livres para
se corresponderem com quem bem entendam ou se servirem de outros comitês
nomeados por agrupamentos especiais. Numa organização
anarquista, cada membro pode professar todas as opiniões e
empregar todas as táticas que não estejam em contradição
com os princípios aceitos e não prejudiquem a atividade
dos outros. Em todos os casos, determinada organização
dura enquanto as razões de união forem mais fortes do
que as razões de dissolução, e dê lugar
a outros agrupamentos mais homogêneos. É certo que a
duração, a permanência de uma organização
é condição de sucesso na longa luta que devemos
sustentar e, por outro lado, é natural que toda instituição
aspire, por instinto, a durar indefinidamente. Todavia, a duração
de uma organização libertária deve ser a conseqüência
da afinidade espiritual de seus membros e das possibilidades de adaptação
de sua constituição às mudanças das circunstâncias;
quando já não é mais capaz de missão útil,
é melhor que desapareça.
Esses camaradas russos acharão, talvez, que uma organização,
tal como concebo, e tal como já foi realizada, mais ou menos
bem, em diferentes épocas, é de pouca eficácia.
Eu compreendo. Esses camaradas estão obcecadas pelo sucesso
dos bolchevistas em seu país; eles desejariam, a exemplo destes,
reunir os anarquistas em um tipo de exército disciplinado que,
sob a direção ideológica e prática de
alguns chefes, marchasse, compacto, ao assalto dos regimes atuais
e que, obtida a vitória material, dirigisse a constituição
da nova sociedade. E talvez seja verdade que, com este sistema, admitindo
que anarquistas prestem-se a isso, e que os chefes sejam homens de
gênio, nossa força material se tornaria maior. Mas par
que resultados? Não aconteceria com o anarquismo o que aconteceu,
na Rússia, com o socialismo e com o comunismo? Esses camaradas
estão impacientes com o sucesso, nós também,
mas não se deve, para viver e vencer, renunciar às razões
da vida e desnaturar o caráter da eventual vitória.
Queremos combater e vencer, mas como anarquistas e pela anarquia.
"Escritos
Revolucionários"
Errico Malatesta
http://www.culturabrasil.org/index.htm