A organização específica
dos anarquistas é uma instância própria, como
está implícita na designação, com peculiaridades
que definem princípios básicos, cuja prática
depende de sua existência.
O projeto revolucionário preconizando o socialismo
libertário exige uma organização onde se definam
estratégias para todas as instâncias e alternativas afins,
ao mesmo tempo que suas práticas sejam um exercício
antecipado do projeto. Assim, liberdade, responsabilidade, ética,
federalismo, solidariedade, autogestão etc. não devem
ser apenas conceitos de um discurso teórico, mas o que defina
a prática e o comportamento dos anarquistas na organização.
Assim como os indivíduos são a unidade celular da organização,
os grupos e coletivos são seus núcleos básicos.
Os grupos de afinidade são constituídos
por militantes cujo o relacionamento fundado em interesses peculiares
é tanto mais intenso na medida em que é alimentado por
idéias e práticas revolucionárias. Cada grupo
tem um número limitado de participantes que garante maior grau
de intimidade entre seus membros. São autônomos, onde
seus integrantes podem reestruturar-se tanto individual quanto socialmente.
Funcionam como catalisadores do movimento proporcionando iniciativa
e conscientização. A união ou separação
de cada grupo é determinado pelas circunstâncias e interesses
próprios, e não por qualquer decisão centralizada.
As adesões ou saídas são feitas espontânea
e livremente, sem pressão de qualquer natureza. Durante os
períodos de repressão os grupos de afinidade são
muito resistentes. Devido ao alto grau de coesão que existe
entre os participantes se torna difícil penetrar no grupo,
e mesmo sob as condições mais difíceis os grupos
de afinidade conseguem manter contatos. Nada impede que os grupos
trabalhem juntos em qualquer nível que se fizer necessário.
Podem unir-se com grupos locais, regionais ou nacionais, de forma
permanente ou eventual para a formulação de planos comuns.
Cada grupo procura reunir os recursos necessários para funcionar
com o máximo de autonomia.
A união de interesses com objetivos comuns,
sem quebra da autonomia é a característica básica
do federalismo. Assim as uniões locais se organizam em regionais
e estas em nacionais até a confederação internacional.
Tudo o que diz respeito exclusivamente a cada instância é
resolvido, desde o indivíduo até a federação,
em foro próprio, de forma livre e autônoma. Só
quando o interesse abrange objetivos comuns, seja de grupo a grupo,
seja até de um país para outro, então surge o
acordo e o COMPROMISSO e aqui convém dizer alguma coisa a respeito
da liberdade e da responsabilidade.
O que é liberdade? Tema de grandes controvérsias
através da história. Há livre-arbítrio
ou determinismo? Praticamos nossos atos por escolha ou não?
Somos apenas dirigidos pelos nossos impulsos interiores aos quais
não controlamos? Acontece que o homem é um animal racional:
verdade que todos aceitam. Ser racional é ser capaz de escolher,
capaz de preferir, de pesar, de comparar esta ou aquela solução,
de captar as possibilidades das possibilidades. O homem pode prever
as conseqüências de seus atos. Pode imaginar que se proceder
assim, poderá suceder isto ou aquilo. Tal ato poderá
levar a tais ou quais conseqüências. E porque pode julgar,
comparar, pode medir, pode escolher. Se o homem fosse apenas um autômato
não teria noção de futuro. Ao ter noção
do futuro demonstra independência, capacidade de escolher no
suceder que sobrevém. É por isso que o homem é
um ser autônomo e conhece a liberdade. Quando temos um impulso
para um ato determinado e refletimos sobre as conseqüências,
ao pensarmos se nos revela uma série do possibilidades que
vamos analisando racionalmente. Reprimimos o impulso, vencemos o desejo
e resolvemos não fazer o que desejávamos. Negar esse
fato prático que verificamos em nossas vida seria negar praticamente
todo o poder da educação. Nossos maiores obstáculos
contra os quais temos que lutar são justamente a pregação
e a crença de que só podemos resolver os magnos problemas
econômicos e sociais a custa da liberdade. Mas a liberdade é
muito mais. E é através da conquista da própria
liberdade que podemos garantir a solução que buscamos
para esses problemas. O caminho da liberdade é o da prática
da própria liberdade. É com a prática da liberdade
que formamos homens livres.
A responsabilidade é a obrigação
de responder pelos próprios atos ou de alguém ou de
algo que nos foi confiado. Ninguém pode ser responsável
se não for livre. A responsabilidade tem dois aspectos: individual
e coletivo. A responsabilidade individual obriga a pessoa a responder
apenas pelos próprios atos ou por algo confiado à própria.
A responsabilidade coletiva obriga não só pelos próprios
atos, mas também pelos atos alheios, quando se trata de atos,
deliberados, aceitos e decididos livremente por um grupo de indivíduos
associados para realizar uma tarefa comum. Cada um e todos, neste
caso, são responsáveis individual e coletivamente e
sua liberdade é determinada pelo duplo caráter da responsabilidade.
A responsabilidade individual, e obrigação de responder
pelos próprios atos ou de coisas que lhe forem confiadas não
pode ser eludida por nenhum outro indivíduo que esteja na posse
normal de suas faculdades mentais. Há três tipos de anarquistas:
a) os individualistas adversários de toda forma de associação;
b) os individualistas partidários da associação
livre e momentânea, mas contra a organização;
c) os partidários da organização metódica
e permanente. Defensores que somos da última posição,
não falaremos das duas primeiras. A concepção
de responsabilidade individual, dentro da organização,
parte da coexistência do indivíduo e da sociedade como
uma necessidade básica, cuja a realidade é anterior
a sua própria existência. Parte do princípio da
solidariedade preconizada para uma sociedade anarquista e se estende
à toda uma categoria de seres humanos que compartilham suas
concepções e lutam pelo mesmo fim. Ligados por uma concordância
de interesses, são responsáveis por todos os atos de
sua vida que tenham um caráter social, cujas conseqüências,
boas ou más, podem influir sobre as condições
de existência, de segurança, e de bem estar de seus semelhantes.
Atos que prejudiquem companheiros devem ser evitados. Os exemplos
são infindáveis e se multiplicam quando a luta se intensifica,
como nos casos de greve, quando a responsabilidade coletiva se sedimenta
na responsabilidade individual e é fundamental.
A responsabilidade coletiva, é própria
da organização anarquista. Está implícita
na aplicação dos princípios federalistas. Ela
ascendente e descendente. Obriga o indivíduo a responder por
seus atos ante o coletivo e este enquanto tal responde ao indivíduo.
Não há oposição entre a responsabilidade
coletiva e individual. Ambas se completam e se ampliam sob o ponto
de vista social. Quando um grupo ou coletivo toma uma decisão
que emana da prática dos princípios, aprovando uma ação
a desenvolver, nenhum de seus membros pode dissociar-se, omitir-se
ou agir de maneira a prejudicar a consecução do objetivo
colimado. Todos são co-responsáveis. A responsabilidade
é coletiva, social. A decisão foi coletiva, a prática
é coletiva, a responsabilidade é coletiva. A resolução
foi tomada de forma soberana e livre por todos. A liberdade não
é ausência de restrições. É opção,
é a aceitação livre de obrigações
sociais. Na organização, compromisso e responsabilidade
se identificam. O não cumprimento da obrigação,
do compromisso, pode denotar irresponsabilidade, imaturidade, fraqueza
e outros aspectos que nos remetem para a ética.
Todos os nossos atos são passíveis de
juízos de valor e de conotações éticas.
Tudo o que foi exposto até aqui tem implicações
éticas. Há vastíssimos estudos sobre a ética,
desde a transcendente (religiosa) até a ultra-racionalista,
amoral, que pretende justificar posições totalitárias,
racistas, de casta, de Estado etc. A que nos interessa é a
ética imanente, que fundamenta as doutrinas libertárias,
estudada e defendida por Proudhon, e desenvolvida por Kropotkin, com
bases sólidas, que aceitam uma ordem natural entre os homens,
fundada nas tensões que formam e procuram conservar-se, porque
na realidade toda ética está fundada nelas e nos interesses
por elas criados. Portanto, se a sociedade for organizada sob bases
simples e naturais, formará naturalmente sua ética,
não como uma necessidade apenas, mas porque o homem sabe descobrir
o que lhe convém para ordenar as suas relações,
porque sabe escolher. Por isso os homens, quando se reúnem
para um fim comum, sabem deduzir de sua organização
as regras e princípios justos (ajustados) que permitam conquistar,
da melhor forma, o fim a que visam, como tem se verificado ao longo
da história na constante da polarização entre
liberdade e autoritarismo, e em todos os movimentos que buscam a superação
social. Dessa forma, a organização anarquista desenvolve
sua própria ética, fundada num dever ser próprio,
que como todo ato ético é frustrável. O ato anti-ético
para o anarquista é tudo que ofende a normal da organização.
E o vigor, o desenvolvimento, as grandes possibilidades do projeto
anarquista dependem fundamentalmente da coerência de sua ética.
Jaime Cuberos (Setembro de 1990)
Jaime
Cuberos