Aldous Huxley e a Liberdade

Os cidadãos trabalham felizes. Bem condicionados, mantêm a produção. Há aqueles que planejam, outros que administram e a grande maioria que executa. Suas funções na sociedade são definidas muito antes do berço, desde a concepção. São todos produto de tecnologia genética, gerados em laboratórios. Todos tomam Soma.

À margem, isolados e confinados, os “selvagens”. Destino dos filhos nascidos de modo natural e dos cidadãos “fracassados”, mesmo após os mais intensos programas de condicionamento. Desviantes de uma Admirável Mundo Novo tão minuciosamente ordenado. Da escola, do trabalho, da diversão. Que divide coerentemente a história entre antes e depois de Ford.

A química da ordem: uma euforia condicionada. A propaganda, desenvolvida por cidadãos de primeira classe, reproduz programas estabelecidos e dita novas tendências. Ela atinge um grande público pouco propenso a pensar. A todos administra-se sua dose de Soma. Fonte de prazer, elevado a valor moral, verdadeiro culto. “A promiscuidade é dever do cidadão”. A satisfação do ego suprime a emergência de sentimentos como solidariedade e amor.

Distopia revisitada por Aldous Huxley numa série de reflexões sobre o conhecimento, a educação e a liberdade. A linguagem nos convida a um determinado universo de percepções. Abstraímos as palavras daquelas realidades que elas designam e as elevamos a verdades. A propaganda é um entre diversos artifícios de manipulação das palavras. Tampouco escapam as ciências acadêmicas. Julgamos conhecer o real quando conhecemos por meio da linguagem.

Nem por isso somos simples produtos do meio, como preconizaram Spencer, Pavlov ou Skinner. Somos únicos. Agimos e reagimos de maneira diferente a todas as formas de condicionamento derivados da linguagem. O Grande Governo e o Alto Negócio dominam muitas das técnicas de manipulação do espírito daquele Admirável Mundo Novo. Seus dirigentes tentarão impor a uniformidade social e cultural. Devemos começar a educar-nos e a nossos filhos para a liberdade e o autogoverno: condições e conseqüências do exercício do amor e da inteligência.

Somos únicos, mas não originais. Durante séculos fomos amparados por nossos instrutores, autoridades, livros e santos. Krishnamurti nos convida a livra-nos da armadilha da respeitabilidade. Cessar nosso buscar. A simplesmente agir por amor e liberdade. Cada um de nós é responsável pelo que se nos apresenta. A sociedade somos nós.

Nos dizeres de Goethe “deveríamos falar menos e desenhar mais”. A percepção direta dos visionários encanta Huxley. São as Portas na Muralha, nas frases de Wells. Para abrir essas portas, Huxley voluntariou-se a uma experiência com a mescalina, derivada de um velho conhecido amigo dos nativos do Grande México, o peiote. Para a botânica, o Anhalonium Leurinii.

Istigkeit. A contemplação da existência que une toda diversidade. A iluminação de Sidarta Gautama. Há sentido além da razão, da escravidão dos conceitos. As cores têm nuances indescritíveis, e a linguagem é outra coisa que a experiência. A emoção e as impressões podem assumir maior importância que o tempo e o espaço. A forma como julgamos ver o peculiar e o todo é condicionada. Não os atingimos em plenitude. A serena luz do vazio da qual foge a alma apavorada no Livro Tibetano dos Mortos. No poema do visionário William Blake: “Se pudéssemos desobstruir as portas da percepção, tudo se revelaria ao homem tal qual é: infinito”.

Coletivo de Estudos Anarquistas Domingos Passos, Niterói. Agosto de 2004