A luta do anarquismo é
a luta pela liberdade, daí multiplicam-se diversos enfoques
de luta (ecológica, sindical, gênero, classista, cultural,
etc.), mas todas têm como motivo a ruptura com modelos e sistemas,
tal como o capitalista e suas nuanças ditatoriais ou democrático
liberais, que têm como base a ausência da liberdade e
todas as nocivas conseqüências que advém de tal
fato. Mas a liberdade, palavra tão repetida e banalizada em
nossa sociedade, o que representa no Anarquismo? É importante
desvelar por qual liberdade lutamos os anarquistas em oposição
ao conceito burguês e consumista de liberdade. A principal diferença
é que, de fato, não há liberdade enquanto existir
estado, capitalismo e enquanto a sociedade em que se vive não
for livre e sua totalidade.
A liberdade na sociedade de consumo como expressão
da ideologia burguesa.
É comum o uso da palavra
liberdade nos meios de comunicação e na mídia,
mas seu valor está perfeitamente encaixado e previsto na cultura
de massa. Desde a “liberdade que cabe no bolso”, do cartão
de crédito, passando por aquela de poder consumir um produto
que está na moda, até o puro e simples consumo como
ritual instituído em nossas vidas, o que há é
o consenso de liberdade como algo associado unicamente às realizações
pessoais provenientes daquilo que o dinheiro pode comprar. Somos educados
a associar valores e status a objetos e situações, e
que o ato de consumir tais valores materializados ou viver determinadas
situações fabricadas seria liberdade. É “livre”
aquele que consegue aproximar-se das situações modelo
estereotipadas apresentadas de forma massificada pelo sistema, situações
representadas por ícones do que seria o indivíduo realizado
que alcançou a “liberdade”. “Livre”
é aquele que não tem impedimentos no seu ritual de consumo,
é a situação econômica que não restringe
os “sonhos” a que somos amestrados a desejar.
É fácil observar
que tal “liberdade” não passa de fantasia em uma
existência entorpecida na sociedade capitalista. O sistema oferece
opções, muitas opções, mas a escolha se
restringe apenas a esse universo. O mercado determina o que consumir,
mas com algumas variações que almejam os variados tipos
de gostos, como em uma padronização diversificada. A
individualidade não é respeitada, mas o discurso é
individualista, personalizado, fazendo acreditar que foi feito para
você, que você é diferente, colocando-o em um pedestal,
criando-se “feudos culturais” onde pensamos ser “diferentes”
mas somos todos padronizados, com os mesmos gostos, consumindo as
mesmas coisas, rotulados. Acontece que somos naturalmente diferentes,
mas somos educados a incorporar estereótipos, a nos projetar
em símbolos, dividindo-nos em vários públicos
consumidores. Na verdade nós somos o produto, moldados para
consumir dentro de alguns dos vários segmentos de produção
industrial.
A realidade em uma sociedade
baseada na exploração não é agradável,
é rotineira e desanimadora, o contrário ocorre nas fantasias
da televisão e cinema, nos sonhos das propagandas, enfim, nos
veículos utilizados para o convencimento do consumir, seja
diretamente ou induzindo a projeção e identificação
com comportamentos e modelos, os quais estão associados a certos
produtos orbitais das idéias e valores que tais modelos carregam.
Che Guevara é um exemplo, sua imagem e os valores agregados
a mesma podem ser usados, e são, direta ou indiretamente na
criação de necessidades de consumo de certos produtos
agregados a mesma. Se a vida é ruim existe sempre a promessa
de um ideal que anestesia e faz suportar o real, um mundo em que podemos
ter “liberdade”, em que podemos ser o que não somos.
A “liberdade” do
consumo é um embuste porque é a liberdade individual
daquele que pode gastar e satisfazer seus desejos, não importando
se os outros podem fazer o mesmo. Como tal lógica pressupõe
a desigualdade e a exploração para poder existir, então
não há nenhuma liberdade havendo apenas a “liberdade”
de alguns, pois um sistema de exploração, escravidão,
domínio e desigualdade não permite a liberdade, nem
de um que seja, mas sim a ilusão de “livre escolha”
entre modelos já determinados, modelos esses que nunca vão
contrariar, mas sim, devem contribuir para a manutenção
e reprodução da ordem excludente.
A liberdade liberal burguesa
A liberdade liberal burguesa
também é falsa, e assim como a ilusão de liberdade
pelo consumo, faz nos crer que somos livres ao exercermos a chamada
cidadania. Nessa lógica, a sociedade seria uma “máquina”
cujas engrenagens precisam funcionar bem e ajustadas para o bom andamento
da vida. O estado, as suas instituições e seus “especialistas”
trabalhando em prol do social, cabendo ao povo apenas trabalhar e
saber quando e onde deve opinar, e querem nos fazer crer que é
liberdade o direito de aceitar toda essa degeneração.
Ser livre é ter o direito de ser uma peça útil
para o capital, deixando que a moral, a economia e a justiça
sejam regulamentadas pelo estado. Só existimos enquanto cidadãos,
produzindo, consumindo e prestando obediência às leis
do estado.
“(...)A liberdade política
significa que a “polis”, o Estado são livres; a
liberdade religiosa, que a religião é livre; a liberdade
de consciência, que a consciência é livre e não
que eu seja livre do Estado, da religião e da consciência,
ou que eu tenha me livrado disso tudo. Não se trata de minha
liberdade, mas daquela de uma potência que me domina e me subjuga:
um de meus tiranos – o Estado, a religião, a consciência
– é livre, um desses tiranos que fazem de mim seu escravo,
de tal modo que sua liberdade é minha escravidão.”
(Stirner, Max Stirner e o Anarco Individualismo, pg50)
No liberalismo não há
o rei ou senhor feudal, então há liberdade? Substituiu-se
uma escravidão por outra, a de classe, a escravidão
do capital sob as leis e a moral do estado. A liberdade aqui é
“limitada pela do outro”, é como uma mercadoria,
uma propriedade privada. O estado tem a liberdade de julgar, determinar,
e possuir, afastando as decisões da responsabilidade das pessoas,
que agora são apenas cidadãos e devem desempenhar seu
papel como cidadãos, papel esse em que não cabe a decisão
sobre seus destinos.
“Responder-se-á
que o Estado, representante da salvação pública
ou do interesse comum, só suprime uma parte da liberdade de
cada um, para lhe assegurar tudo o resto. Mas este resto, é
a segurança, se quiserem, mas nunca será a liberdade.
A liberdade é indivisível: não se lhe pode suprimir
uma parte sem a destruir por inteiro. Esta pequena parte que suprimem,
é a própria essência da minha liberdade, é
o todo. Por um motivo natural, necessário e irresistível,
toda a minha liberdade se concentra precisamente nessa parte, por
pequena que seja, que suprimem.” (Bakunin, Conceito de Liberdade,
pg.26)
Na democracia liberal burguesa,
baseada na exploração e no lucro, a chamada “limitação
da liberdade” é a ausência da mesma. Nascemos nesse
sistema, não foi uma escolha, e aquele que o renuncia sofre
todos os métodos de repressão, difamação
e marginalização pelo estado para que não se
torne um exemplo, já que seria muito perigoso para aquele que
quer impor uma estrutura e um sistema sobre a sociedade haver elementos
contestatórios dos mesmos.
A liberdade segundo o Anarquismo
A liberdade que busca o anarquismo
vai de encontro a todas essas alienações e mentiras
criadas, impostas, e reproduzidas pelo interesse privado burguês.
Vai, mais além, contra toda forma de relação
alienada e de domínio entre os seres humanos e contra as criaturas
desse planeta, visto que o domínio pode dar-se fora do econômico.
Longe de ser limitante, a liberdade
é a condição principal para o desenvolvimento
das potencialidades individuais e humanas, o contrário das
“castrações” que o sistema nos sujeita,
onde temos que nos moldar e deformar dentro de modelos econômicos
baseados em princípios discriminatórios, de lucro e
ganância. Contra a “liberdade” suicida liberal e
de consumo, em que todos na sociedade somos inimigos e competidores
em busca de efemeridades materiais, a liberdade Anarquista tem claro
que “o homem só se torna homem e só chega à
consciência e à realização de sua humanidade
em sociedade e somente através da ação coletiva
da sociedade inteira.” (Bakunin, textos Anarquistas, pg.46).
E que “a liberdade não é, pois, um fato de isolamento,
mas de reflexão mútua, não de exclusão,
mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo
é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade
ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens
livres, seus irmãos, seus semelhantes.”(idem, pg.47).
Disso resulta que não se pode ser livre em uma sociedade de
escravos, ser cidadão ou consumista não é ser
livre visto que tais condições pressupõe um regime
de exploração e desigualdade, e se há desigualdade,
há dominação e conseqüentemente supressão
da vontade. Aquele que nasce em uma sociedade desigual, vai ser educado
para reproduzir e desigualdade e não a liberdade.
O estado diz que somos todos
iguais, vivendo numa democracia, mas “diante do soberano supremo,
o único digno de comandar, nós todos nos tínhamos
tornado iguais, pessoas iguais, isto é, zero. Diante do proprietário
supremo, tornamo-nos todos mendigos iguais.” (Stirner, O Anarquismo
Individualista, pg.22) Porque “é nisso que consiste o
tipo de educação e de cultura que pode me dar o Estado:
ele faz de mim um instrumento utilizável, um membro útil
da sociedade.” (idem). Conformar-se com o caos social e achar
que teremos voz através dos meios ditos “legais”
e “democráticos” do estado é a ilusão
que o mesmo nos faz acreditar. Ser livre é ter igualdade de
voz, ser reconhecido como alguém que tem opiniões e
deve participar das decisões que vão interferir em sua
vida e em seu meio, garantindo-lhe o que é necessário
à vida, sem intermediações ou burocratismos,
que têm por objetivo não representar, mas isolar, afastar
o povo do poder. Acreditamos na “impossibilidade da liberdade
política sem igualdade política. Impossibilidade desta,
sem igualdade econômica e social.” (Bakunin, Textos Anarquistas,
pg.68).
Lutamos para ouvir e sermos
ouvidos, para decidir e ter responsabilidade sobre o que decidimos,
para criar e viver seguindo princípios por nós estipulados
coletivamente, sem imposição ou dominação
sobre outro, sempre conscientes daquilo que fazemos e seus resultados
sobre a sociedade. Sem dogmas, leis ou julgamentos baseados em uma
moral elitista e mistificada.
“A liberdade é
o direito absoluto de todo homem ou mulher maiores de só procurar
na própria consciência e na própria razão
as sanções para seus atos, de determiná-los apenas
por sua própria vontade e de, em conseqüência, serem
responsáveis primeiramente perante si mesmos, depois, perante
a sociedade da qual fazem parte, com a condição de que
consintam livremente dela fazerem parte.” (idem, pg.74).
Enfim, a liberdade pela qual
luta o Anarquismo é a revolução, é a ruptura
total com tudo aquilo que tem dominado e drenado nossas vidas e que
hoje se entende por capitalismo.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos. Território Tamoio,
setembro de 2003.