Qual
deve ser a posição do anarquista e dos grupos que se dizem anarquistas
em relação à sociedade atual? Considerando uma espécie de cicatriz
que o termo "anarquia" carrega, cicatriz que se traduz em
preconceitos, idéias equivocadas e em lugar-comum por parte da população,
deveria o anarquista repensar sua atitude e posicionamento ideológicos
perante a mesma? É verdade que esse preconceito, cuja semente está
no desconhecimento do que é o pensamento anarquista, é produto de
um processo construído pelas elites e seus tentáculos subordinados
como o estado, suas instituições e os meios de comunicação. Processo
que deixa os povos distantes e desinformados em relação aos movimentos
sociais que nascem no interior dos mesmos povos, colocando-nos antolhos
que só permitem a visão mentirosa e distorcida a respeito de tais
movimentos, visão ensinada nas escolas, na mídia e que é vomitada
pelos políticos. Mas o que deve fazer o anarquista preocupado com
uma reação equivocada e preconceituosa, ao mesmo tempo que busca a
inserção social, manifestar-se e difundir os ideais libertários? Ocultar
sua ideologia, repensá-la, atualizá-la aos dias de hoje?
O
antigo modelo de prática do anarquismo objetivava a organização especificamente
anarquista, assim como no Brasil no início do séc. XX havia ênfase
na inserção sindical de modo a construir as bases de uma revolução
de caráter anarquista. Hoje o modelo também assume outras direções,
não apenas para o anarquismo mas para a resistência anti-capitalista
em geral. O exemplo mais significativo é o EZLN, um exército inicialmente
de caráter marxista-leninista que ao tentar aplicar suas idéias sem
considerar a realidade daqueles índios do sul do México, viu formar-se
uma barreira entre ambos. Os índios não compreendiam todos aqueles
princípios importados da Europa, e para eles isso pouco importava
pois o que queriam era ajuda para construir soluções, e não, serem
ensinados a pensar e agir de determinada maneira. Hoje, em sua defesa
das minorias e dos direitos indígenas, de um mundo em que possam haver
vários mundos, o EZLN pede ajuda a toda sociedade civil sem distinção.
A
pluralidade ideológica, reivindicando o poder popular, a igualdade
e a ajuda ao próximo, é uma importante forma de inserção social de
grupos anti-capitalistas atualmente. Para a pessoa que vive em uma
comunidade carente não importa se aqueles que se propõe a atuar na
mesma simpatizam com essa ou aquela doutrina, o que importa é a ajuda,
a prática. Da mesma forma não se pode negar a colaboração de alguém
pelo fato deste simpatizar com outras ideologias de esquerda. O importante
hoje não é impor ou querer ensinar sua idéia à comunidade, não é a
militância caracterizada, o que importa é o militante saber bem o
que quer e como se comporta o mundo a sua volta, suas diferenças e
particularidades. Aí entra importância da teoria anarquista bem como
seu conhecimento.
O
fato da inserção social e do trabalho comunitário não caracterizar-se
com uma corrente de pensamento determinada não justifica que o anarquista
deva deixar de considerar-se como mesmo ou afastar-se da teoria, considerando
que para alcançar a revolução social basta apenas fechar com alguns
princípios vagos e enxergar no capitalismo seu inimigo. Pelo contrário,
o militante anarquista em uma inserção plural, consciente de quem
é, do que quer e do que ocorre a sua volta, é o resultado de toda
sua bagagem e conhecimento anarquistas. Ele não vai repetir os mesmos
erros de outros no passado, sua análise histórica dos fatos impedirá
que caia nas armadilhas espalhadas pelo caminho. Não que o anarquismo
seja a mais perfeita e infalível entre todas as doutrinas, mas um
diferencial anarquista é que ele tem procurado limpar sua visão do
mundo de preconceitos, dogmas e vícios, muitas vezes comuns a outros
pensamentos, ao mesmo tempo que se esforça em expandir sua visão sobre
outras questões que não tinham espaço no passado, atualizando-se ao
mundo em que vive. Para aquele que se considera anarquista é essencial
que saiba o que é o anarquismo e o que constitui sua história desde
os primeiros pensadores até a atualidade. O anarquista hoje não pode
negar a base teórica, necessária na formação do indivíduo anarquista
conscientemente situado na realidade, com o pensamento direcionado
para o que melhor deve ser feito no sentido da revolução popular,
construída de dentro da sociedade com destino ao governo popular autogerido.
Não
devemos ter medo de ser anarquistas, é necessário que lutemos para
divulgar o pensamento e gritemos cada vez mais alto para que nossa
voz seja ouvida. Cada vez mais pessoas precisam saber quem somos e
o que temos para falar, devem saber de nós, e não do sistema. Para
isso é importante a coesão e a fortificação de nossos vínculos, tanto
ao nível local quanto em relação às diversas regiões do país onde
estamos presentes, tornando nossas ações mais eficientes, divulgando
e publicando cada vez mais nossas idéias. É importante estarmos politicamente
organizados, com programas e objetivos bem definidos. Sempre atentos
às mudanças práticas constantemente em movimento, devemos divulgar,
estudar e ter o anarquismo em nosso pensamento, mas a ajuda e o contato
social devem ser abertos e não carregar bandeiras, é aí que a anarquia
será nossa bússola, porque o anarquista divulga através da prática.
Hoje a responsabilidade do anarquismo é bem maior, na base e formação
do caráter do indivíduo, pois o sistema capitalista atua muito mais
sutilmente, não bastando apenas estar organizado, mas que as práticas
condigam com o pensamento.
Não
podemos abdicar de nossa ideologia, pois infelizmente ainda não existem
as condições sociais e políticas para isso. Enquanto existir governo
e capitalismo deve existir anarquismo.
Coletivo
de Estudos Anarquistas Domingos Passos. Niterói, 2001