Entrevista com Pier Francesco
Zarcone, militante da seção de Roma (Itália)
e membro do Conselho dos Delegados da Federação de
Comunistas Anarquistas (FdCA).
Agência
de Notícias Anarquistas > Faça uma breve trajetória
da FdCA nestes anos. Quantos grupos integram a FdCA?
Pier Francesco Zarcone >
As duas perguntas são ligadas, e devemos fazer um pouco de
história. A Federação dos Comunistas Anarquistas
de Itália foi constituída em 1986 a partir de vários
grupos pré-existentes. Declara-se plataformista. Os leitores
poderão consultar a sua página na Internet em: http://www.fdca.it/.
A FdCA nasceu da fusão entre a O.R.A. (Organização
Revolucionária Anarquista) e a UCAT (União dos Comunistas
Anarquistas da Toscana). Naquela altura a ORA tinha já 10
anos de vida e secções em várias regiões
de Itália; a UCAT 5-6 anos de vida na Toscana. A FdCA constitui
a mais recente e completa experiência organizativa dos comunistas
anarquistas italianos. É uma federação de militantes:
os vários militantes numa mesma cidade formam uma seção.
É fundamento da organização partilhar teses
fundamentais: por isto há unidade de teoria, estratégia
de fundo e política, táctica. Acerca da estratégia
política e táctica o debate está sempre aberto
e alimenta a definição do programa da organização.
A atividade política dos militantes desenrola-se no respeito
pela responsabilidade coletiva. O órgão de decisão
é o Congresso Nacional. Neste, tomam-se às decisões
em maté ria de teses políticas, publicações,
órgãos internos (redação, comissões
etc.), elege-se o Conselho dos Delegados que coordena a gestão
da organização entre um congresso e outro, conforme
as decisões tomadas no Congresso. O Conselho dos Delegados
elege no seu interior o Secretariado Nacional, com tarefas de representação
e de coordenação da atividade da Federação.
Os militantes mais idosos
da FdCA entraram na cena política nos anos 68-69, anos de
lutas do movimento operário e estudantil; e portanto ressentiram
o empurrão daquela altura: um empurrão libertário
mas sobretudo classista que estes movimentos expressavam. Estes
militantes, aproximando-se do anarquismo, encontraram uma organização
de síntese, a Federação Anarquista Italiana
(FAI) que, se aparentemente oferecia espaço, na realidade
não era (nem é hoje) uma organização,
mas um conjunto de individualidades tendencialmente individualistas.
As leituras históricas sobre o anarquismo italiano e internacional
mostravam, pelo contrário, uma continuidade do anarquismo
comunista e classista o que, desde a Primeira Internacional, passava
por: as lutas sociais em muitas pa rtes do mundo no início
do século XX, antes e depois da revolução russa;
o biênio vermelho em Itália; o anti-bolchevismo e anti-estalinismo;
a revolução mexicana primeiro e depois a espanhola.
Em Itália, a continuidade do comunismo anarquista foi quebrada
por muitos acontecimentos, entre os quais o mais desastroso foi,
sem dúvida, a influência econômica do anarquismo
anti-organizativista e aclassista ítalo-americano ligado
ao jornal de Nova York “L’Adunata dei Refrattari”,
durante o fascismo e no pós-IIª Guerra. Uma “rebelião”
contra aquela tendência que ocorreu no anarquismo italiano
nos anos 50 originou a organização de tendência
chamada Grupos Anarquistas de Ação Proletária
(G.A.A.P.), com ótimos militantes que se dispersaram após
a “caçada” fora do anarquismo “oficial”
feita pela F.A.I.. Felizmente, muitos destes militantes continuaram
uma ação de classe apesar da “excomunhão”,
disponíveis para narrar, para reavaliar as experiências
de ontem e dos inícios dos anos 70. Neste mome nto, alguns
companheiros começaram a estudar a história do anarquismo
italiano, partindo dos ótimos estudos de Masini (não
é por acaso que foi um dos militantes mais destacados dos
G. A. A. P.) e prosseguindo com a obra da nossa companheira Adriana
Dadá.
O seu livro, “O anarquismo
na Itália: entre movimento e partido” foi um virar
de página nos estudos sobre o anarquismo italiano. Aí
se põe em evidência, não apenas as bases comunistas
do anarquismo, mas também a teorização inicial
do dualismo de organização na própria Itália
durante a Primeira Internacional, com os seus teóricos máximos,
desde Bakunin a alguns dos seus correspondentes tais como Celso
Cerretti, a quem Bakunin escreve uma carta esclarecedora sobre esta
temática. Acerca do plataformismo na área italiana,
Dadá conseguiu trazer à luz novos materiais que logo
trouxeram novos elementos para a história do anarquismo,
até então toda ela centrada em torno do papel de Malatesta
- mediador sintetista de todas as tendências. Adriana Dadà
descobriu que os p róprios Fabbri, Fedeli e outros tinham
estado em contato com Archinov, com a publicação das
atas de reuniões realizadas na região parisiense.
Também os estudos sobre o período fascista, quer sobre
companheiros presos ou sobre o exílio daqueles que se expatriaram
para fugir à morte, vieram demonstrar recentemente a continuidade
entre o anarquismo comunista e classista de uma boa parte do movimento
libertário de antes do fascismo e dos debates nesses anos.
Os companheiros da tendência comunista anarquista, renascida
nos inícios dos anos ‘70, na maior parte não
se deixaram atrair pela FAI, apesar das polemicas com as quais esta
organização tentou então cercear esta iniciativa,
e deram continuidade ao seu projeto desde então até
hoje. A FAI, sendo sintetista e reagrupando elementos heterogêneos
entre si, enquanto tal, não é operativa e não
decide de nada, e muito menos nos seus congressos. Em conseqüência
disso, a contribuição dos seus elementos acaba por
ser em boa parte inutilizada, p ois se trata de uma organização
apenas formalmente presente: a sua atividade e presença é
apenas a dos seus membros individuais. Embora numericamente maior
e dotada de um semanário, a FAI sempre se manteve longe de
uma prática de classe e do movimento operário. Recentemente,
tem mostrado maior atenção pela luta sindical, pelo
que iniciamos um percurso de debate e iniciativas comuns, quando
possível, entre a FAI e a FdCA.
O plataformismo inspira a
nossa atividade em 4 aspectos:
- forte abordagem de classe
e tendência à unidade de classe nas lutas
- análise atenta e
aprofundada dos sujeitos em questão na luta e das situações
objetivas
- procura de uma linha comum
e coletiva fruto de um debate nas secções
- prática do dualismo
de organização, pelo qual se têm dado competências
e papeis distintos às organizações de massas
do proletariado e à organização política
dos comunistas anárquicos, de modo a evitar confusões
e sobreposições entre estas duas organizações
Cada secção
da FdCA tem a sua atividade em relação com o território
na qual se encontra, embora a Federação se ponha enquanto
força política em relação com os movimentos
e com outras realidades políticas.
ANA
> Mas esse dualismo permite que militantes da FdCA participem
de partidos políticos?
Pier
> Não, somos militantes anarquistas, e neste assunto vale
o pensamento anarquista com respeito aos partidos políticos.
ANA
> A FdCA está implantada em toda Itália?
Pier > Não. Temos
seções e militantes nestas cidades: Genova, Fano,
Pesaro, Cremona, Crema, Bologna, Roma, Firenze, Bari, Mantova, Rovereto,
San Vito al Tagliamento, Palermo. Concretamente a presença
maior fica no norte/centro de Itália.
ANA
> Quais as principais lutas que estão levando a cabo neste
momento?
Pier > A FdCA está
ativa sobretudo no campo sindical, antimilitarista, ambientalista,
nas lutas por espaços sociais autogeridos e no movimento
anti-globalização, mas não fazemos parte d
o fórum social. Uma boa parte dos seus militantes é
ativista sindical (e através deles, a Federação
age no mundo do trabalho) quer na CGIL, quer nos sindicatos de base,
quer na promoção de associações e de
coordenações de base dos trabalhadores ou sindicalizados.
A classe está hoje distribuída entre três confederações
tradicionais e 5-6 confederações de base. Num plano
específico e pequeno a USI mantém um caráter
ideologicamente anarquista. A nós não nos interessa
uma guerra entre sindicatos porque retemos como estrategicamente
fundamental a unidade da classe, para lá das siglas sindicais.
Eis porque procuramos promover coordenações de delegados,
coordenações territoriais, coordenações
de ativistas sindicais libertários, para dar força
a um sindicalismo conflitual de prática libertária.
Contra os ataques do governo
Berlusconi, a FdCA foi e está presente com as suas posições
e a sua luta através das quais se manifesta, como o demonstrou
empenhando-se ativamente na campanha do referendo para alargar o
Estatuto dos Trabalhadores a todas as empresas, tema acerca do qual
a FAI permaneceu dividida no seu interior entre aqueles que eram
contrários e os que eram favoráveis a participar no
voto. E sobre o assunto não vi que fosse tomada uma posição
pela FAI.
ANA
> A USI juntamente com outros sindicatos de base estão
convocando uma greve geral para o próximo dia 7 de novembro
contra os ataques do governo berlusconi aos direitos adquiridos
dos trabalhadores, a aposentadoria e contra a guerra em curso no
Iraque. Vocês também estarão se mobilizando
neste dia?
Pier > A FdCA apoia as
duas greves, ficando claro que como federação política
se põe além das siglas sindicais. De qualquer maneira
a greve do dia 7 de novembro não é só da USI,
mas sobre tudo da mais grande Confederação Unitária
de Base (CUB). Acerca da oportunidade duma greve de alguns sindicatos
num dia diferente, não faltaram críticas da nossa
Federação.
ANA
> É verdad e que o governo quer criar uma nova lei que
impeça que sindicatos como a USI e de base convoquem greves
gerais?
Pier > Acerca deste assunto
existe uma proposta da ARAN (a Agência governamental pela
negociação no setor do Emprego Público) para
limitar o exercício do direito de greve estabelecendo procedimentos
de pré-aviso muit o complexos. Isto afetaria todos os sindicatos,
mas sobre tudo – naturalmente – os como a USI que, conforme
a lei atual, não fazem parte da categoria dos “sindicatos
representativos”.
ANA
> Regula rmente recebo notícias do seu país relatando
casos de violência policial contra anarquistas, com invasões
de residenciais, prisões e tudo mais. Essa violência
me parece que atinge mais os anarquistas "insurrecionalistas",
não?
Pier > Já quando
tínhamos o governo de centro/esquerda a violência dos
polícias começou a atingir os militantes esquerdistas
como tais (por exemplo, quando chegou a Roma o Heider, ou em Nápoles
pouco antes do G8 em G enova), e nas fileiras da polícia
italiana há muitos nazi/fascistas protegidos, nas suas ações
contra a lei, pelos superiores hierárquicos. Hoje –
como sempre – os anarquistas representam um alvo cômodo
para a repressão, e sobre tudo os chamados “insurrecionalistas”.
ANA > Fale um pouco do atual panorama anarquista italiano. Aí,
como em outros países, existe muita divisão entre
os grupos e organizações anarquistas, não?
Pier > Infelizmente sim.
O atual panorama compreende grupos não federados, e grupos
federados. Os grupos federados são: a Federação
Anarquista Italiana (FAI): temos falado dela respondendo à
primeira pergunta; a FdCA; na ilha de Sicília há a
Federação Anarquista Siciliana (FAS), que como orientação
está muito perto da FAI; uma pequena federação
que trabalha na região da Lombardia: a União Anarquista
Italiana; desta não sei muito.
A divisão existe,
e tem raízes históricas: não parece ser possível
em meio prazo chegar a uma ultrapassagem dela. Mas o problema verdadeiro
não é este. O problema é atuar para que os
anarquistas possam ter raízes profundas no mundo do trabalho
e na sociedade. Se a divisão fosse entre grupos que atuem
todos neste sentido a situação estava muito melhor.
ANA
> O que vocês conhecem do atual "movimento" anarquista
brasileiro?
Pier > A Federação
Anarquista Gaúcha, a Federação Anarquista Cabocla
e a Federação Anarquista Insurreição.
De outras organizações só os nomes e muito
pouco. Mas sabemos que o panorama anarquista brasileiro está
mais articulado, e gostaríamos de saber mais.
ANA
> Para terminar, no meio deste caos generalizado, vocês
acreditam que o anarquismo continua carregado de sentido?
Pier > A resposta é
positiva num sentido geral, porque a nosso juízo as razões
do anarquismo mantêm uma validade substancial. Hoje mais do
que ontem. De cada maneira o movimento anarquista europeu na sua
história recente foi afetado e estragado pelas vitórias
do bolchevismo e do fascismo, gerações de militantes
encontraram morte, prisão, exílio, e os que sobreviveram
ficaram num mundo dividido pela guerra fria, vivendo uma situação
de hegemonia dos marxistas-leninistas dentro do proletariado que
não deixava espaço nenhum. A derrota do marxismo no
leste da Europa aconteceu quando o proletariado já tinha
perdido esperanças, força e desejo de mudar radicalmente
o mundo, e derrotar o capitalismo. Agora o nosso trabalho político
desenrola-se entre os escombros da sociedade moderna e da nossa
história: não se trata dos escombros da sociedade
burguesa dos quais falava Durruti, mas seguimos levando nos nossos
corações um mundo novo, tendo bem claro que não
temos mais movimentos anarquistas ou sindicatos anarquistas de massa,
e o nosso trabalho de hoje parte desde um “grau zero”
até... não sabemos. Só sabemos que este mundo
é injusto e outra realidade social e pessoal é possível.
A luta continua!
agência de notícias anarquistas-ana
limpo e lavo o túmulo,
mas no fundo de minha alma,
meus íntimos vivem...
H.Masuda
Goga