Uruguai: Entrevista com Juan Carlos Mechoso

 

“Os anarquistas eram mais combativos”

Maria Esther Gilio

Brecha. Uruguai, Julho de 2001. Pouco há o que perguntar a Juan Carlos Mechoso para entrar em seu tema: El Cerro. O que o desvela e o move mais do que nenhum outro entre os muitos que o desvelam e o movem.

Antes de começar a entrevista, enquanto o fotografavam, logo nos contou que o núcleo do Cerro teria 80 mil habitantes e 150 mil a periferia. Que os jovens só conseguiam, quando conseguiam, pequenos bicos. Que são muito poucos os que agarram um trabalho um trabalho de cinco, seis ou oito meses e quase não se conhece os que têm um trabalho efetivo, disse, e logo sorriu porque o pergunto sobre aquele passado glorioso em que não havia desocupação e cada família tinha algum membro em um dos três frigoríficos: Swift, Nacional e Artigas. “ Um membro que ganhava seu salário e recebia dois quilos de carne por dia” – disse desfrutando de nossa surpresa. “Havia famílias com três ou quatro operários no frigorífico e era tanta carne que chegava na casa que uma parte se dava de presente. Faziam-se assados no bairro, no clube. Nessa época ocorria, além disso, que os operários construíam suas casinhas e isso implicava qualquer quantidade de barracas de materiais, carpintarias, vidraçarias e um boliche por quadra de onde o pagamento da volta pertencia a cultura do bairro. O que não pagava era um miserável. A hora da saída dos boliches se enchiam de uniformes azuis, de mistura”. – Que a empresa lhes dava.

- Sim, dois uniformes ao ano e um par de botas. Essa foi uma das tantas conquistas.

- Estão conscientes desse passado os jovens de hoje no Cerro?

- Completamente. Pode-se vê-los falando dessas conquistas que eram reais nos anos trinta como se tivesse sido ontem. Isso tem permanecido na memória coletiva do Cerro e se continuam comentando episódios e feitos e formas de vida que hoje já desapareceram.

- Você chegou ao Cerro com sua família.

- Nós éramos do interior, de Flores, viemos para Montevideo, como muitas famílias, na década de 40, e nos instalamos em La Teja em uma casa muito modesta. E todos que podiam trabalhar saíam. Eu ia à escola e trabalhava. Até que me ofereceram dobrar o salário para fazer mais horas.

- Aí teve que deixar a escola.

- Sim, no quarto ano. Nessa época e nesses bairros, a maioria dos meninos trabalhavam e, escute algo, era raro um negócio que não tinha um cartaz que dizia “Precisa-se de rapaz” (Mechoso começa a rir de maneira incontrolável.)

- Ai, por favor. Era o paraíso.

- Sim, era. Quase todos os rapazes do bairro trabalhavam. Mais velhos, mais novos, quase todos. Era difícil algum estudar.

- Você trabalhava em um armazém, que segundo creio era em frente à fábrica de vidro onde seu pai trabalhava.

- Sim. Uma fábrica que tinha conflitos muito freqüentes por que havia um sindicato muito combativo, uma direção sindical anarquista. “Bigote” era o sobrenome de um dos dirigentes. Minha turma, que vinha de La Cachimba del Piojo, perto da qual vivíamos, se fez em sua grande maioria simpatizante anarquista.

- Disse que a militância nesse sindicato era muito forte. De que maneira se expressava isso?

- Recordo-me da fábrica rodeada pela polícia porque os operários haviam-na ocupado e tinham lá dentro os patrões como reféns. Eu via tudo isso muito bem porque ali estavam meu pai e meu irmão.

- Quantos anos tinha nesse momento?

- Onze ou doze anos.

- Como começou a aproximar-se do anarquismo?

- Primeiro tornaram-se anarquistas todos os meus irmãos. Rapidamente, aos 14 anos eu comecei.

- O que era para você o anarquismo nessa época, o que o atraía?

- Eu via que ali estava a defesa dos trabalhadores. Ouvia todo o dia em minha casa falar sobre o tema. Mas além disso havia uma propaganda bastante forte, bem organizada. Muitos trabalhadores anarquistas estavam nos frigoríficos e no bairro começou a funcionar um grupo. Meu irmão, que tinha 16, já militava e eu comecei a militar com 14.

- Esse foi o irmão que lhe mataram?

- Não, o que mataram era menor que eu. Nós éramos quatro, um havia fugido dos albergues e vivia conosco.

- Não era irmão de sangue.

- Não, era do bairro. Quando fugiu veio para casa, lá permaneceu e foi mais um irmão. E também, igual a nós, fez-se anarquista.

- Na realidade foi quase o primeiro, porque era dois anos mais velho que o mais velho de nós.

- Em que consistia a propaganda de que fala?

- Conversações. Muitas conversas explicando as idéias, o que era o socialismo. Havia dois ou três lugares que íamos para conversar.

- O que se passava no Cerro nesse momento com os socialistas e os comunistas?

- Socialistas quase não haviam. Havia anarquistas e depois comunistas. O PC vinha crescendo um pouco e tinha grupos operários tanto no Cerro quanto em La Teja.

- Como recorda as discussões sindicais entre anarquistas e comunistas dessa época? Quais eram os temas mais polêmicos?

- Eu creio que os anarquistas eram mais combativos quanto às reclamações e exigências, quanto ao enfrentamento com o inimigo de classe.

- Sim? Mais que os comunistas?

- Sim. Nesse momento sim. Os comunistas eram mais moderados.

- Talvez influísse a guerra.

- Claro. Se bem que os comunistas não abandonaram sua luta de classes, havia uma política de coexistência nassa conjuntura histórica. Por outro lado havia uma polêmica forte da parte dos anarquistas enquanto haviam cortado laços com a revolução russa.

- Sindicalmente haviam respaldado a revolução.

- Inicialmente. Mas a essa altura havia-se perdido a esperança de que, como se dizia, a revolução criaria uma nova civilização.

- Já haviam passado mais de 25 anos.

- Sim. Os conflitos gremiais multiplicam-se a medida que vão se formando os primeiros agrupamentos comunistas no país, quando aderem à Terceira Internacional e quando forma-se a CGT. Com o que vai permanecendo do anarquismo há uma polêmica muito forte.

- Quais eram os principais pontos de discrepância? Talvez os que tinham a ver com o rechaço e a aceitação da União Soviética.

- Sim, em algum sentido sim, porque a polêmica forte encontrava-se no ponto “socialismo com liberdade ou socialismo autoritário”. E a discussão desatava-se já desde o começo, com a organização do sindicato. Hoje a participação de todos no sindicato é algo que se aceita sem discussão. Nesse tempo era uma reivindicação muito própria do ideal libertário. A forma federal de organizar-se.

- O que queriam os comunistas?

- Forma de organização centralista, com direções mais fixas, pouca participação do povo.

- Acreditavam que essa era a única forma eficiente de desenrolar a luta social. Quanta desconfiança tem o ser humano com respeito a que todos participem. Aproxima-se da idéia daquilo que se chama com freqüência “anarquia”. Anarquia é “desordem”, “desajuste”, “confusão”. Em nossa língua riopratense “desleixo”.

- O anarquismo dizia, e o tem repetido historicamente, que é necessário confiar na participação das populações tratando de faze-la mais e mais intensa com o passar do tempo. O povo participando cresce. Nisso acreditamos. E quanto mais participa mais desenvolvimento e conhecimentos tem.

- Esse é um dos argumentos fundamentais do feminismo para exigir participação.

- Justamente estive lendo um periódico de 1984 na Biblioteca Nacional. El Obrero, onde há um manifesto feminista espetacular, tão atual como se tivesse sido escrito ontem. Os primeiros manifestos feministas no país vieram por via da corrente anarquista.

- Não aceitaram aquilo de que com a revolução a mulher seria liberada e ocuparia o lugar que naturalmente lhe corresponde. Recordo que se dizia: a luta feminista como tal não tem d]sentido. Que dizia esse periódico do século passado?

- Dizia que além da luta de classes e a superação do capitalismo a mulher tinha uma dupla luta a realizar já que tinha que emancipar-se da situação patriarcal em que vivia em sua casa. E essa era uma tarefa que devia levar adiante, pois ainda naqueles que professam idéias de esquerda os comportamentos muitas vezes não correspondem com as idéias. Outra coisa que propuseram é a defesa da natureza.

- É curioso que tocaram nesses temas há mais de cem anos.

- Claro, tinha-se dentro do coletivo uma preocupação maior pela entidade humana. Eu diria que a revolução abarcava um plano muito mais amplo. Você me perguntava os pontos sobre os quais se dava a polêmica. Estes eram na maioria sobre as formas de relacionamento, de organização. Inclusive a forma de relacionamento interno na militância. Na medida em que não havia chefes todas as coisas se discutiam entre todos. E aí pesavam as opiniões dos mais respeitados, o que certamente não impedia que suas posições não fossem muito discutidas.

- Imagino que nas discussões dos problemas concretos pesariam bastante as diferenças que provinham das diferentes posições dentro do anarquismo.

- Isso era assim, entre os anarquistas havia uma matização a que correspondiam formas estratégicas distintas. Ou seja, os que se organizavam politicamente.

- Você por exemplo. Você acreditava na organização política como algo prévio?

- Sim, eu era especifista e tinha, logicamente, determinado projeto de trabalho político do projeto dos anarco-sindicalistas, os quais consideravam que o trabalho no sindicato era suficiente para levar à emancipação dos trabalhadores e depois à reorganização da vida social. Dentro destas correntes conhecemos alguns espanhóis que chegados depois da guerra permaneceram aqui enquanto outros se foram para a Argentina. Esta gente logo vinha ao Cerro e La Teja e nos dava palestras.

- Você foi até o quarto primário, mas tem uma formação de invejar muitos universitários. Faz um tempo falou de Foucault, cuja leitura não é nada fácil. Eu estava trocando o filme e você falava. Que foi que disse sobre as formas repressivas? (Juan Carlos Mechoso rí)

- Não sei, alguma besteira.

- Não, não era uma besteira.

- Disse que há formas repressivas no econômico, político e social que se mantém desde antigamente no ideológico, e ao atravessar o corpo social em todos os níveis permite ao sistema não usar a repressão direta. São, então, os mesmos cidadãos que mantém e reproduzem a ideologia que é útil ao sistema.

- Viu que era interessante. A pergunta é como chegou aonde está hoje.

- Isto é comum entre os anarquistas. Cheguei como tantos outros com leituras, conversas. Tínhamos aqui perto o Ateneo Cerro onde se realizavam conferências, palestras e debates.

- E quais eram as leituras?

- As mais distintas. Os companheiros, por exemplo, recomendavam que lêssemos história desde Grécia ao nascimento da Primeira Internacional, as polêmicas de Bakunin com Marx, o nascimento do movimento operário e também boa leitura. Certamente Kropotkin, um teórico da anarquia que tem, por exemplo, um trabalho sobre os cárceres com enfoques semelhantes a Vigiar e castigar, de Foucault.

- Kropotkin viveu no século passado.

- Claro, era um príncipe russo. Quando os anarquistas se separaram da Primeira Internacional, em 1872, seguiu militando na que logo se formou.

- Recentemente desci do ônibus e caminhei até sua casa olhando as casinhas tristes e prolixas e a baía lá embaixo. Gostaria que nos desse uma imagem daquele Cerro do passado. Próspero, vital, militante. Conte-nos um pouco do Cerro de seus 15 anos.

- Vivíamos no Cerro e nos divertíamos nos Cerro. A gente ia pouco ao Centro. Havia uma brincadeira nessa época. Quando alguém comprava um traje novo lhe diziam: “Vai para o Centro?”. Domingos e dias de festa se saía a caminhar, como no campo, pela rua Grecia. Havia alguns cinemas, bailes, um teatro, o Selecto, perto da esquina da Grecia. E muita vida de café, onde com dois ou três amigos se passava a noite. Havia cafés de esquerda onde paravam as turmas de esquerda.

- Os inimigos não eram os brancos e os colorados. Porque direita mesmo não existia.

- Não havia partidos de direita, mas sim pessoas de direita nesses partidos. Echegoyen, por exemplo, era um homem de direita.

- Nardone também era de direita. Mais tarde Pacheco.

- Claro. E seguindo com sua pergunta, nos reuníamos nesses cafés onde se falava de tudo mas sem falta de política. Os cafés se chamavam um Mirambell e o outro que ficava lá em cima, Viacaba.

- Conte-me das manifestações quando havia algum conflito.

- As manifestações da Federação da Carne eram enormes, verdadeiras "puebladas". Na cabeça iam os tropeiros.

- Também os tropeiros?

- Sim , os que trabalhavam para o frigorífico iam. Montados em seus cavalos seguiam o carro de som da Federação da Carne que tocava “A Marselhesa” a todo volume.

- Não cantada...

- Não, só a música. Quando a gente ouvia os compassos da “Marselhesa” já sabia que vinha propaganda da federação ou manifestações na rua. Na frente havia também um aparato que atirava fogos pra cima. Os tropeiros – muitos com poncho, lenço branco e chapéu cinza - , depois as bicicletas, e logo a gente do final. famílias inteiras, crianças, velhos. E o mate.

- Caminhavam até o Palácio.

- O objetivo era o Palácio, onde alguma vez se acampou. Puseram-se barracas na explanada. Aí vinha a polícia e prendia. Estávamos no começo da década de 50.

- Começava a decadência econômica do Uruguai.

- Sim, havia entrado em crise a indústria frigorífica e as empresas estrangeiras começavam a ir embora. A Federação da Carne, muito abatida, quase ferida mortalmente, havia deixado de cumprir com suas obrigações e o Ateneu do Cerro havia tomado a bandeira da agitação. Haviam especialistas em determinados temas que iam dar palestras. Sobre humor, cinema, história. Houve palestras que duraram seis meses. Ao mesmo tempo se tomava posição frente a mobilizações operárias e aos movimentos de libertação da América Latina: Guatemala, Santo Domingo, o combate em Cuba antes da revolução. Vinham para tocar e cantar alguns libertários como o Gaucho Molina e Zitarrosa. E nos fins de semana havia conversas com os exilados espanhóis. E inclusive o reitor da universidade que, presenteado por Gomensoro e Gerardo Gatti, falou sobre o fascismo em um ato na rua. O Ateneo sempre estava atento e ativo frente aos problemas no solo do país, também da América Latina.

- O que objeta hoje o Ateneo?

- Uma das coisas que me parece importante para este momento é a necessidade de romper o efeito de fragmentação que tem gerado esta nova conjuntura histórica.

- E tira toda a força da classe trabalhadora.

- Exatamente. O Ateneo neste momento se propõe a fazer o maior esforço possível no sentido de juntar essas forças dispersas a fim de refazer o tecido solidário social. Nós temos sido sempre partidários de não aprisionar o homem no coletivo.

- “O coletivo não deve prende-lo mas sim potencializa-lo” , diz um princípio de vocês.

- Claro. Estamos a favor dos processo de personalização, todavia, claro, isso não tem nada a ver com o individualismo burguês.

- Fortíssimo nesse momento.

- Que tem gerado uma série de práticas que reforçam a potência de um pequeno grupo que pode tudo, enquanto a grande massa, atomizada, tem perdido grande parte de sua força. O que buscamos com o Ateneo é juntarmos, coordenar com todas as outras instituições sociais do Cerro e ir em direção da criação de um movimento social forte que tenha respostas para os problemas deste tempo, sobretudo tudo em conta o desgaste, hoje, dos mecanismos políticos tradicionais.

- Como vê a conduta do institucional nesta conjuntura?

- O institucional tem se tornado mais conciliador. Temos um capitalismo especialmente despido, com um capital financeiro na dianteira, e temos os estados fazendo a ambos presente em todo o mundo, fazendo as leis que os protejam. Que fizeram Menem, Cavallo e outros na Argentina senão criar as condições de caráter jurídico que fazem possível que o capital tenha a modalidade que tem? Por outro lado, outra coisa importante: isto já não se chama imperialismo.

- Chama-se globalização.

- E nessa mudança de linguagem está a armadilha que oculta o que realmente acontece, os reais mecanismos das coisas. Não digamos “classe” nem “luta” nem “confrontação” nem “imperialismo”. Ao mesmo tempo têm criado o consenso em torno dessa mentira. Como disse Chomsky: “Nunca houve tantos intelectuais de primeiro plano tão submissos e incertos como agora no sistema. E tão produtores de seus valores.”

- Qual seria para você a finalidade dessas mudanças de linguagem?

- Impedir que pensem nesses temas. Ter uma representação que não corresponde com a realidade. A qual impede sua correta análise. Gantón Bachelard tem feito estudos interessantes sobre tudo isso.

- Isto estaria inscrito no mesmo painel de “o fim das ideologias, “o fim da história”, “a impossibilidade do socialismo”.

- E também “as classes já não existem”, “já se foram”. Como disse Chomsky: “se há algo ostensivo é a existência das classes.”

- Há um economista, também estadunidense como Chomsky, Kenneth Galbraith, que disse em sua História da Economia que “a economia é uma ciência que tem sido muito cultivada pelos que dizem o que os ricos querem escutar”. E também: “As medidas monetárias não são política e socialmente neutras”.

- Claro, esta é outra das coisas que conseguem fazer crer. Um dos teóricos do conservadorismo de Thatcher dizia que era conveniente que vencessem algumas socialdemocracias “para dar oxigênio ideológico”. Claro, isso produzia nas pessoas certa expectativa que permitia adiar reclamações imediatas.

- Vamos um pouco para trás. Para a ditadura. Vocês tiveram um número bastante alto de mortos e desaparecidos. Havia um irmão seu que morreu em Orletti.

- Sim, meu irmão é um dos desaparecidos em Orletti junto com Gerardo Gatti e com León Duarte. Eles, junto com outro companheiro, o Perro Pérez, por exemplo, são fundadores da FAU. Com eles atuamos anos juntos desenvolvendo um princípio de tarefas. A ROE, a POR – organização armada que levou adiante algumas ações.

- O seqüestro do industrial Molaguero. O seqüestro da mulher de Costa Gavras, Michele Ray, o roubo da bandeira dos 33 orientais. O seqüestro de Cambón, representante de algumas empresas de papel. Qual era o fundamento do seqüestro de Molaguero?

- Molaguero era um industrial do calçado, um verdadeiro senhor feudal que despedia gente, perseguia o sindicato e inclusive havia espancado gente. Alfaro fez naquele tempo uma crônica muito linda sobre a sana com que tratava os trabalhadores. Este moço pertencia à JUP e se seqüestra a raiz de um conflito.

- Foi dito nesse momento que vocês o tinham torturado.

- Isso é totalmente falso. Nós temos sobre esse ponto idéias muito claras. Não se pode torturar uma pessoa indefesa. Não só pela pessoa, mas também porque isso deforma o militante. Ele foi o único seqüestrado que disso que o tinham torturado e mentiu. Enquanto o seqüestro da periodista Michele Ray, fez-se para fundamentar e propagandear a razão pela qual não havíamos votado nas eleições. Com ela conversamos uma noite inteira. Estava muito informada sobre tudo que ocorria na América Latina e foi muito bonita essa conversa.

- Conte-nos sobre seus companheiros desaparecidos em Orletti.

- Esses companheiros foram protagonistas de um capítulo do que foi a Operação Condor.

- Conte-nos esse episódio em que levam Perro Pérez a Orletti para conseguir algo atrás do qual estavam os uruguaios da Operação Condor em Buenos Aires.

- Conto-lhe. Nossa gente seqüestra um industrial na Argentina e obtém dez milhões de dólares. Eu estava preso nesse momento. Estes, Gavazzo, Cordero e os outros, interam-se da existência desse dinheiro e queram uma parte. Nesse momento tinham em Orletti Gerardo Gatti e Duarte. O Perro Pérez, anarquista conhecido, muito militante, operário da Funsa, dos mais ativos da greve de 72, estava em Buenos Aires.

- Escondido.

- Não, não estava sendo procurado. Tinha uma pousada diária em uma esquina para sustentá-lo e a sua família. Um dia se apresenta não sei qual dos militares uruguaios, e lhe propõe a liberdade dos companheiros de Orletti em troca dos milhões e lhe propõe levá-lo a Orletti para arrumar a coisa. Levam-no a Orletti – escondido obviamente -. O Perro pergunta por Gerardo Gatti e lhe dizem que não está. Pergunta por Duarte e o trazem. Quase não o reconhece. Parecia um mendigo. Com a roupa em farrapos e descalço. Perro lhe olha os pés e diz: “Porque está descalço?”. O milico o ouve e intervém: “Aqui nesse quarto tem sapatos”, disse, seguramente sorrindo. Quando mais tarde León vai ao quarto encontra mais de cinqüenta pares. De homem e de mulher. Perro Peréz fala com Duarte. Transmite-lhe a proposta dos milicos uruguaios e fica de voltar para buscar uma resposta. Uns dias mais tarde o trazem. Não sei qual foi a resposta, quando se despedem se abraçam e Duarte lhe diz ao ouvido: “Tome-as, vão te matar”. Nesse mesmo dia Perro buscou, com sua família, asilo na embaixada sueca. Assim se salvou. Duarte e Gatti desapareceram. Duarte sabia que com dinheiro ou sem dinheiro iam matar a todos.

- O Perro morreu.

- Sim, quando veio da Suécia em 86 ou 87 para uma homenagem que fazíamos a Duarte. Falou e logo se sentou. Dez minutos depois caiu morto. Seu coração parou.

Brecha