Para
Pensar o Feminino
Como
dizemos sempre, qualquer tentativa de transformação
social que desconsidere a necessidade de uma revolução
individual efetiva tenderá ao fracasso. Enquanto seres sociais,
acabamos por institucionalizar e internalizar as normas sociais
sancionadas pela coletividade. Nesse sentido, precisamos questionar
tudo o que nos parece óbvio se pretendemos realmente romper
com a sociedade capitalista pois são as nossas atitudes cotidianas
que mantém a engrenagem social e econômica à
todo vapor. Consideramos que a “questão de gênero”
– por falta de um nome melhor – deve inserir-se nesse
contexto de uma revolução individual contra o sistema
capitalista e à favor de uma nova sociabilidade fundamentada
em um indivíduo portador de uma individualidade que signifique
ser mais que apenas um consumidor de produtos e que ultrapasse,
dentre outros, os limites estabelecidos pelas determinações
do masculino e do feminino.
Diferente
do que muitos acreditam, o moderno sistema produtor de mercadorias
não é sexualmente neutro. Se é verdade que
o capitalismo não inventou o patriarcado, é certo
que ele o acentuou. É o princípio masculino o agente
que constitui e afirma o masculino. O homem é o senhor da
esfera pública, âmbito das decisões políticas
e da produção de riquezas; suas características
confundem-se com as do próprio modo de produção:
força, racionalidade, competência, virilidade, inteligência.
Sendo a esfera pública masculina o motor do sistema e que,
enquanto tal, possui importância primeira na sociedade dado
o resultado de suas atividades – o lucro – aquilo que
estiver fora desse esquema será submetido à
ele. Porém, existe uma esfera da vida que não é
expressa em dinheiro e da qual a mulher foi feita responsável.
É o reverso do sistema, a vida privada, o cuidado com os
filhos, a afetividade, a emotividade. Ao feminino são remetidas
tarefas desvalorizadas economicamente e essa inferioridade é
estendida às qualidades que o patriarcado lhe imputou: o
cuidado com a vida, a esfera do sensível – e com ela
a fraca inteligência, a incapacidade de viver no público,
etc. O feminino conta apenas enquanto suporte sobre o qual desenvolve-se
o homem, tornando-se dele um apêndice.
Na
sociedade de mercado, o feminino ocupa posto de subalternidade.
No entanto, e apesar disso, acredita-se que através do dinheiro
é possível superar essa inferioridade. Ilusão
perigosa que tem resumido a luta feminista à exigência
de maior participação no mercado como forma de emancipação.
Os resultados, até agora, atestam o equívoco de tal
interpretação e o feminino continua subjugado: dupla
jornada de trabalho, função igual com salário
desigual, prostituição, mercantilização
do corpo; e quando chega a ocupar postos de comando, o feminino
precisa travestir-se de masculino pois é este o princípio
regente. Entretanto, os grandes avanços feministas estão,
quase sempre, nessa ordem e representam a entrada na mulher no universalismo
do capital que é, como já dito, ele próprio
masculino. A emancipação é comemorada quanto
maior a entrada da mulher na esfera pública mas nunca refere-se
a participação masculina na esfera privada. Ao contrário,
temos assistido a um crescente abandono deste mundo particular –
onde as relações entre as pessoas não são
mediadas pelo dinheiro – causado por essa supervalorização
do público. Homens e mulheres são levados ao mundo
externo, promovendo uma institucionalização do cuidado
com a vida ou deixando-o sob responsabilidade de empregados. (Claro
que aqui deve-se atentar para o fato de que as diferenças
de classe social e de desenvolvimento do país influenciam
diferentemente o desenrolar dessa situação.)
Por
outro lado, há as que se contrapõem a essa condição,
denunciando o fato de que a mulher continua subalterna quando nega
sua feminilidade ante o masculino, e propõem o inverso: a
feminização do mundo como alternativa social. Acreditando
que existe um ser feminino fruto das suas vivências corporais
e das interações psíquicas experimentadas por
este corpo, além das próprias representações
sexuais que lhes imputam a sociedade, a mulher apresenta-se enquanto
indivíduo perfeito e as suas características morais
são o caminho para a superação do estado de
miséria, corrupção e desigualdade que se tornou
o mundo sob a égide masculina.
Percebermos
que, apesar das múltiplas interpretações, a
dicotomia homem-mulher permanece inquestionável. A atuação
da mulher limita-se a tentativa de trocar os postos na hierarquia
do sistema de gêneros. Também não conseguem,
com sua crítica, oferecer mecanismos de superação
do estado atual das coisas. Ao contrário, possuem, muitas
vezes, um caráter reformador e integralizante ao sistema,
sempre atrelado ao capitalismo e ao Estado, conseguindo uma emancipação
nos limites que o Estado pode conceder e que o capitalismo necessita
para se perpetuar – os conflitos são apenas amenizados,
calados, mas não solucionados. Se temos claro que a nossa
luta é contra o capitalismo (se é o repertório
que incomoda, não adianta trocar a posição
dos instrumentistas da orquestra!) e pela
liberdade de exercermos nossa individualidade, então a crítica
– e a prática dela decorrente – deve ultrapassar
a mera disputa de quem ocupa, a partir de agora, o papel dominante.
Uma
condição primeira para a superação do
capitalismo é oferecermos máxima resistência
às suas determinações sobre as nossas vidas,
sobre as relações que travamos dia-a-dia, ou seja,
estabelecermos cotidianamente uma nova cultura que represente uma
ruptura prática com a passividade e o mando/ obediência
característicos das relações mercantis e do
Estado que as representa, como maneira de construir os contornos
de uma nova sociabilidade baseada no que lhes é oposto –
relações diretas, anti-hierárquicas e horizontais
entre indivíduos.
O
sistema de gêneros, como os demais sistemas classificatórios,
pressupõe ele próprio uma hierarquização
que, ao reproduzi-la em nossas relações sociais, perpetuamos
as bases que mantém o sistema capitalista. A libertação
da humanidade ou será resultado de uma transformação
social e global mas que parta do indivíduo ou tratará
apenas de um simulacro da liberdade, aquela que temos hoje.
Somos
“livres” tanto maior a nossa possibilidade de escolher
a mão que irá nos apedrejar; somos “livres”
tanto maior a nossa capacidade de adaptarmo-nos aos estereótipos
construídos pelos diferentes nichos de mercado; somos “livres”
tanto mais pudermos escolher, no catálogo e ofertas, que
tipo “humano” queremos ser. O capitalismo usurpa a nossa
individualidade e nos coisifica, quer dizer, nos sujeita a representações
necessárias à sua própria sobrevivência
– eleitores passivos, consumidores ávidos, empregados
submissos, etc. Não somos livres para exercermos a nossa
unicidade. Sob o peso das instituições e representações
sociais, quase sempre desconhecemos nossos desejos, nossas potencialidades.
A
busca por uma singularidade, por traços comportamentais condizentes
com as suas possibilidades também é, nesse sentido,
uma jornada anticapitalista. E é um caminho que é,
necessariamente, conflituoso com a classificação da
humanidade a partir de uma diferenciação biológica
baseada no aparelho reprodutor e que inculca atributos sociais de
acordo com o sexo. Longe de favorecer a ascensão do indivíduo,
o sistema de gêneros tem construído pessoas cindidas
em duas possibilidades de ser opostas, porém complementares
entre si – homens e mulheres. Essa cisão bipolar acaba
por castrar e limitar os indivíduos – e estamos certas
que cada um sabe o que isso significa! Por sua vez, a naturalização
dessa diferenciação – levando a que algumas
feministas defendam um “eterno feminino” salvador –
desconsidera uma característica própria do ser humano,
a invenção da cultura, que rompe com as determinações
naturais sobre ele. Algumas tribos africanas são bastante
ilustrativas dessa desnaturalização: após nascerem
os filhos, são os homens quem descansam durante meses enquanto
a
mulher cuida da agricultura e demais atividades de sobrevivência.
O
estabelecimento de uma divisão binária da humanidade
baseada em pressupostos naturais e reinteradores da hierarquia nas
relações interpessoais nos parece muito pouco coerente
com um projeto de vida que pretenda a superação do
capitalismo e a vida em liberdade. Novas formas de sociabilidade
precisam ser forjadas para que possamos provocar um curto-circuito
nos alicerces da máquina social e econômica que pretendemos
suplantar. Para além da disputa entre homens e mulheres,
cada um deve ser livre para constituir-se enquanto indivíduo,
abraçando qualidades e características que representem
não papéis socialmente impostos, mas uma particularidade
que o defina único no mundo. Essa é uma
condição para nos tornarmos sujeitos de nossa própria
história e, enquanto tal, fazê-la a nosso modo.
E
reconhecermo-nos como agente dessa transformação não
é uma tarefa apenas para homens ou para mulheres. Também
não é uma tarefa para “escolhidos”, muito
menos para indivíduos dispersos. Se a revolução
individual é condição primeira para superar
o capitalismo, a condição maior para onde ela deve
convergir é a livre associação de tod@s - indivíduos
não cindidos, sujeitos históricos – em coletivos,
grupos, comunas ou organizações autônomas, horizontais/
anti-hierárquicas, autogestionárias e livremente federadas,
pois só organizados somos capazes de apresentar resistência
real ao capitalismo. Revolução cotidiana e atuação
organizada coletivamente são esferas interdependentes e,
necessariamente, devem caminhar juntas se pretendemos destruir essa
forma de organização social, política e econômica
e construir uma nova, mais justa, solidária, igualitária,
livre e ecologicamente viável.
Nem
homens, nem mulheres!
Pela
liberdade de sermos nós mesm@s em busca
de
um mundo livre!
Vanessa Luana
membro do Coletivo Lua