Os Mistérios do Corpo
Feminino, ou as Muitas Descobertas do Clitóris
Margareth Rago
No
ano de 1997, o jornal Folha de São Paulo noticiou
com alarde a publicação de um romance, O Anatomista,
por uma das mais famosas editoras brasileiras. De autoria do psicanalista
argentino Federico Andahazy, trata-se de uma ficção
real, ou de uma história romanceada a respeito da descoberta
do clitóris, em 1559, por Readolus Colombus, ou Mateo Renaldo
Colón. Risadas, brincadeiras, comentários jocosos, a
verdade é que o livro vendeu bem e o autor se tornou famoso
nos meios culturais e sociais também em nosso país.
E com ele, o clitóris entra novamente em cena.
Digo novamente, é claro, porque o feminismo,
liberal ou socialista, já havia feito esta mesma descoberta
décadas antes. Logo no final dos anos 60, ou inícios
dos anos 70, feministas radicais, lésbicas assumidas e mulheres
emancipadas proclamavam sua independência sexual em relação
ao império do falo, acusando os homens de desconhecerem o corpo
e a sexualidade femininos, negando-lhes na prática o direito
ao prazer. A revista Nova, publicada pela Editora Abril a partir de
1972, destinada a mulheres da classe média urbana, divulgava
a nova e importante descoberta: as mulheres tinham sim orgasmo e este
era sobretudo clitoriano, não apenas vaginal. O clitóris,
órgão pouco falado e conhecido entre as mulheres principalmente,
fazia sua portentosa aparição, de certo modo, assustadora
para os homens: os holofotes punham em cena o pequeno órgão
que havia passado tão despercebido e desconsiderado por homens
e mulheres por muito tempo.
Na verdade, também não sabemos
exatamente por quanto tempo, já que, em seguida, as pesquisas
históricas e antropológicas sobre o corpo e a sexualidade
do "sexo frágil" passaram a indicar, ao menos nos
textos médicos do século 19 e das primeiras décadas
do 20, na Europa e no Brasil, um conhecimento bastante aprofundado
sobre o corpo feminino pela medicina moderna. Antes mesmo da descoberta
de Freud, em 1905, vários médicos, ao explicarem as
razões da anafrodisia ou da prostituição, demonstravam
um conhecimento científico bastante aprofundado sobre o corpo
e os órgãos prazerosos da mulher, desde meados do século
19. Vale lembrar, aliás, que nos séculos anteriores,
esta era pensada biologicamente a partir do modelo masculino, sendo
o clitóris interpretado como um pequeno pênis.
Gostaria de pensar, neste texto, as razões
que levam a um esquecimento da existência do clitóris,
a um apagamento do pequeno órgão em cada época
histórica e a seu posterior e abrupto renascimento. Será
possível detectar algum fenômeno maior associado a este
movimento? Será possível dizer que o clitóris
é redescoberto em momentos de modernização econômica
e de maior liberação das mulheres e, do mesmo modo,
esquecido e silenciado em momentos de retração, de maior
repressão moral e conservadorismo político? Seria o
controle dessa informação sobre o corpo da mulher uma
forma de contenção do desejo e normatização
das relações de gênero, garantindo o lugar privilegiado
ao sexo forte? Minha hipótese é a de que o clitóris
é silenciado física e discursivamente nos momentos de
maior controle sobre a mulher, sobretudo naqueles em que é
associada à figura da mãe e, portanto, totalmente dessexualizada.
Exemplo disso são os regimes totalitários, o fascismo
italiano e o nazismo alemão que promoveram a figura dócil
da mulher camponesa, aconchegante e aninhada entre os filhos, abnegada
e bondosa, porém, totalmente assexuada.
A releitura médica do corpo feminino no século 18
Alguns
estudos, como o de Thomas W. Laqueur, Ivonne Knibiehler/Catherine
Fouquet e Jean-Louis Flandrin trazem inquietantes informações
a respeito das interpretações médicas do corpo
feminino. O primeiro autor, por exemplo, explica que, a partir do
final do século 18, os doutores mudaram radicalmente os parâmetros
para pensar o corpo e a sexualidade feminina, o que levou a uma profunda
dessexualização da mulher, ou para recorrer a Foucault,
a uma patologização de seu corpo. Segundo ele, a partir
do final do século 18, emerge uma nova conceitualização
do orgasmo feminino, o qual deixa de ser relevante para a geração,
como fora anteriormente a ciência médica das Luzes. Os
textos renascentistas, em que o clitóris é concebido
como um órgão que faz o prazer das mulheres e sem o
qual elas "não teriam desejo, nem prazer e nem nunca poderiam
conceber" se tornam superados.
O
deslocamento do orgasmo sexual feminino se inscreve num quadro mais
amplo de reinterpretação radical do corpo feminino,
em relação ao masculino, no século 18. Por milhares
de anos, embora a mulher fosse socialmente percebida como inferior
ao homem, acreditava-se que tinha os mesmos órgãos genitais
que ele, com a diferença de estarem dentro e não fora.
Galeno, que desenvolve o modelo mais importante sobre a natureza homóloga
entre os órgãos reprodutivos do macho e da fêmea,
no século 2 d.C., afirmava que a mulher tem testículos
acompanhados de canais seminais iguais aos do homem, um de cada lado
do útero, com a única diferença de que os do
macho estão contidos no escroto e os da fêmea não.
Por dois milênios, o órgão que, no início
do século 19, definirá a essência da mulher ainda
não tinha um nome próprio. Galeno refere-se a ele usando
o mesmo nome que utiliza para os testes masculinos, orchis. No século
17, Regnier de Graaf chama os ovários pelo nome latino, testiculi.
No século 18, Pierre Roussel, autor do Système Plysique
et Moral de la Femme, um dos autores mais influentes do período,
denomina os dois corpos ovais em cada lado do útero de ovários
ou testículos
"dependendo do sistema que cada um adota".
Por
volta de 1800, a concepção que associava o orgasmo à
geração se torna alvo de profundos ataques. Os autores
passam a defender a tese da profunda diferença da sexualidade
masculina e feminina, apoiando-se nas descobertas de suas diferenças
biológicas. Em 1803, o médico Jacques Moreau de la Sarthe,
autor da Histoire Naturelle de la Femme, em 3 volumes, afirmava,
contra Aristóteles e Galeno, que não apenas os sexos
são diferentes, mas são diferentes em todos os domínios
do corpo e da alma, em cada aspecto moral e físico. Entre homem
e mulher, haveria muito mais contrastes e oposições.
Segundo Julien Joseph Virey, autor de inúmeras obras sobre
a mulher:
"As diferenças sexuais não
se limitam aos órgãos da geração simplesmente,
no homem e na mulher, mas todas as partes de seus corpos, mesmo as
que parecem indiferentes aos sexos revelam alguma influência
destes."
O saber médico esforça-se por
definir a especificidade do corpo feminino em relação
ao masculino, acentuando seus principais traços: fraqueza e
predestinação à maternidade. Para Roussel,
"os ossos são menores e menos duros,
a caixa toráxica é mais estreita; a bacia mais larga
impõe aos femures uma obliquidade que atrapalha o andar, pois
os joelhos se tocam, as ancas balançam para encontrar o centro
de gravidade, o andar é vacilante e inseguro, a corrida rápida
é impossível às mulheres",
explica Knibiehler. (p.90)
Ao
mesmo tempo, o útero é definido como o principal órgão
feminino, responsável pelo funcionamento de todos os outros:
cérebro, estômago, seios, lábios etc. (p.94) Portanto,
o antigo modelo de interpretação do corpo, em que homens
e mulheres eram definidos segundo o grau de perfeição
metafísica, por seu calor vital, segundo um eixo cujo telos
era masculino, foi substituído pelo modelo da diferença
biológica, no século 18. Assim como Knibiehler, Laqueur
nega que estas conclusões e especialmente o ataque ao orgasmo
feminino tenham advindo de avanços científicos concretos,
registrando um profundo desconhecimento da ovulação
humana até recentemente. A mudança na interpretação
dos corpos feminino e masculino, antes vistos como hierárquica
e verticalmente dispostos e agora percebidos como horizontalmente
disposto, como opostos, como "incomensuráveis" resulta
de outros fatores. Até 1797, ninguém se preocupara em
reproduzir um esqueleto feminino num livro de anatomia para ilustrar
as diferenças do homem. Até então só existira
uma estrutura básica do corpo humano, a do macho. Portanto,
longe de refletir um avanço científico,
"novos modos de interpretar o corpo resultavam
de novos modos de representar e de fato de constituir realidades sociais".
(p.4)
Knbiehler refere-se à medicina das Luzes
como aquela que promove a domesticação do corpo feminino,
como aquela que
"invalida o ser feminino como nunca havia
sido antes"
pois a mulher deverá ser afastada da
vida pública e profissional por sua constituição
fraca e por sua sensibilidade à flor da pele. (p.113) Ter prazer
sexual significava, na lógica do século 16, como mostra
Flandrin, ter tido uma relação sexual perfeita, portanto,
gerado o ser perfeito, tese que era aceita pelos teólogos.
Segundo estes, os membros inferiores e as costas da viúva solitária
doeriam por causa da contenção do sêmen, até
que ela descarregasse e sentisse um prazer semelhante ao que obteria
na cópula: Segundo Ambroise Paré:
"Nenhuma concepção ocorre
se as duas sementes não concorrerem junto no mesmo instante."
(p. 133)
Ao mesmo tempo, vários autores viam
a menstruação como um sangramento, entre outros. Para
o médico Boerhaave por exemplo, os homens sangravam regularmente
através das artérias hemorroidiais, do nariz, dedos,
etc.
O
clitóris, descoberto em 1559 por Readolus Colombus como "a
sede do deleite das mulheres", era chamado nos textos do século
16 de mentula muliébris (female penis), nympha
(termo de Galeno), columnella (coluna), crista (de
galo), dulcedo amoris ou oestrum veneris; era visto
como o pênis feminino, como, aliás, aparece no guia de
parteira de Jane Sharp, de 1671. ainda não passaria pela cabeça
de ninguém a idéia de que clitóris grande significasse
lesbianismo
Laqueur chama a atenção para
o fato de que a construção cultural da fêmea em
relação ao macho, enquanto expressa em termos de realidades
concretas do corpo estava mais profundamente en~aizada em assunções
sobre a natureza da folitica e da sociedade. O abandono destas crenças
no Iluminismo tornou inapropriado o sistema de homologias hierarquicamente
ordenado. A nova biologia, com sua busca por diferenças fundamentais
entre os sexos e entre seus desejos emergiu neste momento preciso,
quando as bases da sociedade estavam profundamente abaladas. O século
19, lembra Havelock Ellis, afirmará a tese da anestesia sexual
da mulher. Mas, o que aconteceu com a velha biologia?
Para Flandrin, a seqüência é
a seguitie: Aristóteles, com a teoria de que a mulher é
um vaso receptáculo apenas do sêmen masculino e de que
não necessita de orgasmo para a geração é
seguido por São Jerônimo e Santo Agostinho, e ainda no
século 13, na obra de Alberto, o Grande. Os médicos
dos séculos 16 e 17 foram partidários de Galeno e a
maioria dos teólogos também retomaram os argumentos
galenistas. Contudo, ninguém seguiu à risca as diferentes
teorias, mesclando-as muitas vezes. (p.132) Flandrin constrói
seu texto no sentido de mostrar que não há um avanço
com os séculos, mas um crescente irracionalismo com a modernidade.
Aí entra a reviravolta: por que muda
o modelo de leitura do corpo? Por que há uma dramática
reavaliação do orgasmo feminino e de interpretação
do corpo feminino em relação ao masculino, no final
do século 18? Os escritores do século 18 buscam na biologia
uma justificação para as diferenças culturais
e políticas entre os sexos, que foram cruciais para as articulações
de argumentos feministas e antifeministas. Para Hobbes, não
havia na natureza nenhuma base para justificar qualquer tipo de autoridade
- de um rei sobre seu povo, do homem sobre a mulher. E a revolução,
o argumento de que a humanidade em todas as suas relações
sociais e culturais poderia ser refeita engendrou tanto um novo feminismo
quanto um novo medo da mulher. Mas o próprio feminismo e sua
luta pela entrada da mulher na esfera pública foi feita com
base nesta diferença.
Sua tese segue a de Ivonne Knibiehler: com
a emergência da sociedade burguesa houve, no final do século
18, uma redefinição do lugar social da mulher, para
a qual a ideologia burguesa teve que fornecer novas justificações
científicas. A ciência médica propõe, então,
uma releitura do corpo feminino, tendo em vista responder a uma série
de problemas colocados pela nova ordem sócioeconômica
emergente: a concepção de indivíduo, já
que as mulheres passam a se pensar como iguais aos homens; a separação
entre as esferas públicas e a privada, a primeira associada
aos negócios masculinos e a segunda à natureza feminina;
uma re-significação da função social da
mulher, agora destinada a constituir a família higiênica.
Segundo ele, deve-se considerar as mudanças
políticas em curso: a emergência do discurso da igualdade
se faz acompanhar do nascimento de uma nova biologia - "a biologia
da incomensurabilidade" - segundo a qual a mulher é por
natureza diferente do homem, inferior e incapaz de vida pública.
A resistência das mulheres, o nascimento do feminismo acirram
este discurso, levando a buscarem-se outros modos de restabelecimento
das hierarquias de gênero, num momento em que as bases metafísicas
estavam sendo solapadas. No Brasil, várias pesquisas tornaram
conhecidas as teorias médicas sobre o corpo e a sexualidade
feminina, seja da "mulher honesta", seja de seu avesso,
"a prostituta", que fundamentaram as interpretações
e os sentidos atribuídos à feminilidade e definiram
o lugar da mulher na sociedade, e que referenciaram as práticas
de controle social, incluindo-se as policiais. Fortemente marcados
pelos pensadores e cientistas europeus, os médicos explicaram
a inferioridade física, moral e intelectual da mulher em relação
ao homem, como uma realidade inscrita em seu próprio corpo,
na configuração diferenciada de sua estrutura óssea,
concluindo por sua incompetência para participar da esfera pública
em condições de igualdade com os homens. Avisaram que,
por natureza, as mulheres haviam sido destinadas às tarefas
da reprodução e as que se recusavam a essa função
deveriam ser percebidas como "desviantes" ou "associais".
Era o caso das feministas, consideradas mulheres que recusavam sua
condição e seu espaço natural - a maternidade
e o lar e desejavam ser homens, ou quase como homens. Era o caso também
das prostitutas e lésbicas, mulheres dos excessos instintivos,
degeneradas natas por hereditariedade.
Os
médicos e a relações conjugais no Brasil
A
partir do último quarto do século 19, os enunciados
do discurso médico sobre a sexualidade feminina, no Brasil,
reproduzem as concepções, dominantes da medicina vitoriana,
ampliada, mais para o final do século, pelas teorias lombrosianas
da Antropologia Criminal. Em 1872, o dr. Ferraz de Macedo, em sua
já conhecida tese sobre A Prostituição na
Cidade do Rio de Janeiro, classificava, as prostitutas, como
mulheres excêntricas, gulosas, preguiçosas, irracionais,
irrecuperáveis para a sociedade, signos da involução
das espécies: sub-raça. Alguns anos depois, o criminologista
italiano Cesare Lombroso classificava as cientificamente como "degeneradas
natas", sendo então largamente difundido entre os médicos
de todo o mundo. Aqui os doutores insistiam na ausência de instinto
sexual nas "mulheres castas", a não ser para fins
reprodutivos. Como ensinava o doutor J.B. de Moraes Leme, em 1926:
"Na mulher domina, sobre o instinto sexual,
o instinto materno, ou melhor, o apetite sexual decorre do instinto
materno, enquanto que no homem o instinto paterno tem parte muito
pequena no coito, em que aquilo que ele procura é o prazer".
Ao lado dos médicos, juristas famosos
como o dr. Viveiros de Castro, obcecados com a classificação
do que consideravam "perversões sexuais", segundo
as classificações do psiquiatra vienense Richard von
Kraft-Ebing, enxergavam onanistas, pedófilos, homossexuais,
tríbades, desviantes e perversos sexuais em quase todos os
cantos dá cidade, sobretudo nos bares, restaurantes, cafés-concertos
e pensões de artistas. Voyeuristas conscientes ou inconscientes,
os homens da ciência seqüestraram a sexualidade desde o
século 19, como apontou Foucault, e "perverteram o sexo".
Todas as práticas sexuais foram postas sob o signo do discurso
científico, analisadas, classificadas e condenadas, enquanto
o corpo da mulher foi congelado sob o "império do útero",
na expressão de Knibiehler. Dir-se-ia que a ciência domou
o sexo, com medo de ser dominada.
É de se notar que o saber médico
recolhia importantes informações sobre a anatomia do
corpo feminino, não se detendo nas meretrizes, importantes,
diga-se de passagem, apenas na medida em que permitiam sinalizar as
formas de conduta que as "honestas" deveriam evitar. Por
isso mesmo, insistiam no fato de que as mulheres tinham um desejo
sexual muito menor do que os homens aliás, quase inexistente,
já que sua energia sexual era canalizada para a realização
de sua essência: o desejo de ser mãe.
Contudo,
já em 1886, o médico A. D'Almeida Camilo, em sua tese
O Onanismo na Mulher: explicava a anatomia feminina e destacava
a importância do clitóris para o prazer sexual. Segundo
ele:
"O clitóris é um órgão
eréctil, cuja estrutura se assemelha à dos corpos cavernosos
e que apoiado sobre o dorso do pênis, no ato da cópula,
recebe a excitação pelo atrito deste, dando em resultado
a satisfação do desejo venéreo."
Advertia, portanto, que, em geral, o homem
terminava a cópula antes da mulher,
"de mudo que, havendo lentidão
e portanto o clitóris não sendo perfeitamente friccionado
pelo pênis, permitindo apenas um começo de prazer, este
ato que lhe é mais enfadonho que agradável a obriga
a masturbar-se para completar o prazer que começara a sentir"
Seria limitado, portanto, enxergar o discurso
médico como homogêneo e de ponta a ponta coerente, ao
longo dessas décadas. Alguns doutores aproximaram-se de teorias
científicas mais abertas, em especial durante os , anos 20,
quando as antigas leituras do corpo feminino e de suas necessidades
passam a ser questionadas em vários países, como na
Inglaterra e nos Estados Unidos. Para muitos historiadores, esta foi
a década que presenciou a "primeira revolução
sexual" do século 20, precedendo a segunda nos anos 60,
e se caracterizaria por uma liberação dos costumes sexuais,
mas apenas no que se refere às relações conjugais
heterossexuais, e não homossexuais.
Já
praticado na experiência anarquista da Colônia Cecília,
no Paraná, em fins do século, o "amor livre"
passa a ser um tema constantemente debatido nas rodas de intelectuais
e de artistas, modernistas e libertários, como observa Maria
Lacerda de Moura, enquanto ela própria contesta radicalmente
o casamento indissolúvel como prisão e a exigência
da virgindade apenas para. as mulheres. Pagu e Oswald de Andrade ficam
famosos, nos anos 20 por suas relações amorosas bastante
livres e transgressoras, enquanto ela é lembrada como uma mulher
que ousa desafiar a moral, que circula audaciosamente vestida nas
ruas da cidade, protagonizando a "nova mulher", ou a "mulher
emancipada", próxima da figura da "melindrosa"
e da vamp sedutora, que aparecem nos romances da época.
Nesse contexto, o casamento é contestado enquanto instituição
deformada e desmoraliza-la, enquanto vários posicionam-se favoravelmente
ao divórcio.
A preocupação com a erotização
da mulher casada, na Inglaterra e nos Estados Unidos, é destacada
por Jeffreys, como: uma das principais mudanças na ideologia,
sexual desta década e, de certo modo podemos observar uma tendência
semelhante no Brasil. Ao longo dos anos 20 e 30 cresce, entre nós,
toda uma literatura que discute e questiona a moral sexual, por parte
de médicos e juristas, tanto quanto de anarquistas e modernistas.
A virgindade, o casamento, o adultério, a prostituição,
o divórcio compõem um conjunto de temas amplamente discutidos,
tanto em sentido conservador e misógino, como em sentido oposto.
Os
argumentos desenvolvidos pelos homens cultos em favor da educação
sexual dos jovens revelaram que a preservação dos valores
morais burgueses se colocava com alguma insistência, e que esta
aparecia como uma poderosa arma no combate moral aos perigos, imaginários
e reais, que visualizavam. O dr. Ubaldino A. de Oliveira, por exemplo,
em discussão sobre a questão da Profilaxia Sexual?
ou Social em 1924, afirmava que as causas da "derrocada
moral" de nossa sociedade se deviam a que a juventude buscava
unicamente "o gozo" nas suas atividades. Pela falta de educação
sexual, os jovens ficavam seduzidos pelas orgias e pelos "vícios
elegantes", entenda-se, as drogas. Desde cedo, aprendiam a arte
de seduzir as "mulheres honestas", e apenas quando "gastos"
resolviam casar-se. Para o dr. Orlando Vairo, o vício se alastrava
de tal modo na cidade de São Paulo, que até mesmo senhoras
casadas da alta sociedade já se entregavam
"à embriaguez do ‘lança
perfume’ no salão das danças."
Já as jovem solteiras,
"excitada nos bailes, cinemas, teatros,
etc., sem ver a possibilidade de satisfação honesta
e natural de seu instinto de mulher sem conhecimento perfeito da missão
que lhe compete, e dos perigos a que se acha exposta, um di1ema se
lhe antolha - ou fala mais alto o instinto, e ela se prostitui, -
ou um resto de pudor e vigilância dos pais a detêm até
aparecer um marido – qualquer que ele seja - escolhido muitas
vezes por pais inescrupulosos." (p.15)
Ao mesmo tempo, os defensores da educação
sexual acreditavam que a ignorância masculina em relação
ao corpo e ao funcionamento desejante da mulher resultava em freqüentes
desentendimentos entre o casal. Portanto, exclamava A. Debay:
"Srs. homens, rogo-vos que vos deis ao
trabalho de estudar a mulher em sua organização física
e moral; (...) a maior parte dos homens casados, para não dizer
quase todos, ignoram as verdades fisiológicas que acabamos
de expor; sua ignorância relativamente a este fato natural leva-os
a queixarem-se da indiferença de suas consortes e os torna
ridículos, senão injustos;(...)".
A
"higiene do amor"
Tendo
em vista educar os homens e informá-los sobre as questões
sexuais, os médicos elaboraram manuais de higiene sexual, ou
de "higiene do amor e das paixões", a exemplo do
dr. Olavarrieta, cujo trabalho intitulado Higiene Sexual
foi publicado em São Paulo, em 1929.
Bastante liberal em relação aos
seus predecessores e na ânsia de salvar o casamento indissolúvel
como ele mesmo dizia, o doutor procurava explicar aos homens a fisiologia
da mulher, advertindo-os contra a falta de excitação,
de prazeres, de cuidados no ato sexual em relação às
suas esposas, tida para eles "como mães de seus filhos".
Reconhecia as necessidades sexuais das mulheres, diferentemente de
seus antecessores, o que em nada alterava a reafirmação
de todos os outros mitos referentes à construção
de sua identidade como incapaz, menor, desigual em relação
ao homem. Modernizava as relações de gênero, inclusive
reformulando e liberalizando as práticas sexuais do casal,
mas em nada alterava sua concepção de que a mulher deveria
permanecer na esfera privada do lar. Examinemos os seus argumentos.
Convicto da necessidade da união sexual para mulheres e homens
através do casamento, o médico discernia as necessidades
sexuais e emocionais de cada um: no caso das mulheres, o matrimônio
afigurava-se da maior importância e era, aliás, exigido
por sua própria constituição física, sob
pena de dela apoderar-se a "clorose lenta e contínua",
ou pior, de ela interessar-se pelas práticas detestáveis
do onanismo e da prostituição. Função
de controle e de autocentramento, portanto.
Já paia os homens, uma das vantagens
do matrimônio e, conseqüentemente, da regularidade virtual
do prazer sexual obtido "com moderação" seria
o prolongamento da vida, pois a satisfação sexual comunicaria
ao corpo "maior vigor às funções e uma justa
compensação pelos trabalhos desenvolvidos." Função
de vitalidade e de energização. Segundo suas pesquisas,
prosseguindo a tradição dos naturalistas europeus, a
regularidade sexual para ambos os sexos resultaria em muitas vantagens
para a vida física, moral e intelectual, ao contrário
do que ocorria com os solteiros, expostos com mais facilidade a contrair
doenças e vícios que
"esgotam prontamente o organismo"
Entendendo que o casamento respondia a uma
exigência natural para ambos os sexos, Olavarrieta era favorável
ao divórcio, pois acreditava que a única garantia para
a conservação do contrato estabelecido entre eles seria
apenas "a satisfação do apetite sexual".
Procurava mostrar, em suas reflexões
a importância do prazer sexual nas relações contraídas
pelo casal e alertar contra os perigos de ignorar se a questão
sexual. De uma certa maneira, seu manual de "higiene sexual"
apresentava-se como um guia para a realização dos prazeres
entre o casal, tendo em vista a preservação do casamento,
como, aliás, encontramos hoje em dia em algumas revistas destinadas
ao público feminino.
O manual procurava informar o público-leitor
- principalmente constituído por homens - a respeito da fisiologia
tanto do homem quanto da mulher, elucidando alguns pontos sobre o
prazer sexual para ambos. Fundamentalmente, considerava-se que embora
a mulher tivesse necessidades sexuais, estas não eram tão
prementes e ameaçadoras quanto as masculinas,
"pois a mulherão conhecendo a tumescência,
fenômeno representado no homem, pela repleção
e distensão dos órgãos genitais, em particular
de suas vesículas seminais, não precisa se socorrer
da cópula, para conseguir o fenômeno oposto, isto é,
o da detumescência."
Por este mesmo motivo, aceitava-se a existência
de um espaço geográfico especialmente destinado ao transbordamento
do desejo masculino, mas onde as mulheres presentes seriam muito possivelmente
percebidas pela tipologia do dr. Lombroso. Refiro-me, evidentemente,
à zona da prostituição.
Dentre as enfermidades que poderiam afetar
e mesmo interromper as relações sexuais do casal, Olavarrieta
destacava a anafrodisia, ou "a falta de desejos venéreos",
raríssima entre os homens, porém, muito freqüente
nas esposas, em virtude da experiência sexual diferenciadíssima
que ambos traziam para o matrimônio. Segundo o médico,
a indiferença pelos prazeres sexuais que se manifestava na
mulher resultava tanto de uma educação errônea,
que acentuava sua ignorância em relação às
necessidades sexuais e aos deveres conjugais, quanto do egoísmo
e do "néscio excesso de pureza" dos maridos. Chegando
ao casamento "sexualmente gastos, enfastiados e estragados",
estes submetiam suas esposas a regimes de relações sexuais
extremamente austeros,
"transformando as carícias em obrigação,
quem sabe em repugnância ou em dor."
O resultado disso era que as mulheres fugiam
do sexo com o marido, ao invés de encontrar no parceiro uma
importante fonte de satisfação sexual. Para o médico,
os homens haviam sido induzidos erroneamente a acreditar que as práticas
sexuais prazerosas só poderiam ser consumadas com amigas, amantes
ou prostitutas, respeitando religiosamente as esposas. Para o saber
médico, os homens tinham uma posição muito conservadora
em termos sexuais, projetando na esposa a figura da mãe, isto
é, dessexualizando-a.
Segundo ele:
"Erroneamente, o casado evita com sua
mulher toda classe de refinamentos durante o ato sexual, crendo deste
modo cumprir mais fielmente as obrigações de marido,
já que a alegria, a satisfação, a recreação
ficaram nos braços de suas amigas anteriores. Repeti-las com
sua própria mulher, com a que vai ser ‘mãe de
seus filhos’ seria insensato, eqüivaleria a tanto como
insultá-la, ofendê-la, quiçá, prostituí-la."(p.16)
Ao mesmo tempo, o prazer no casamento seria
fundamental e saudável também para o homem, evitando
o recurso à masturbação e à procura dos
prazeres extraconjugais. No primeiro caso, conhecemos o terror suscitado
pelas práticas onanistas na medicina dos séculos 19
e 20. A própria impotência, afirmava o dr. Olavarrieta,
um dos principais problemas que afetava a relação entre
o casal, evidenciando-se com mais freqüência no homem,
resultaria do abuso da masturbação, do excesso de relações
sexuais ou de prazeres solitários, na grande maioria das vezes,
quando não de enfermidades venéreas contraídas
no mundo exterior. Em relação ao onanismo, afirmava
ele:
"as vítimas desta paixão
solitária perdem a memória e a inteligência; tornam-se
estúpidas, melancólicas e hipocondríacas; desejam
a solidão, são incapazes de estudar, e chegam bem facilmente
à degenerescência amplamente declarada."
(p.57)
Vale notar que o saber médico de então
tinha uma concepção bastante ampla das práticas
onanistas, entre as quais destacava as que caracterizavam o onanismo
conjugal, segundo suas informações, muito praticado
naqueles tempos: a saber, a sodomia, o coito interrompido, e até
mesmo a utilização do condão, atual camisinha,
unicamente tolerável nos coitos mercenários,
pois consegue sempre evitar os contágios venéreos."
É interessante notar que, apesar das
concepções moralistas e extremamente misóginas
destes doutores, muitos reconheciam o "apetite sexual" também
nas mulheres, procurando alertar para a importância de ser,
ao menos parcialmente, satisfeito. Discutindo O Problema Venéreo,
em 1926, outro medico afirmava que o apetite sexual sendo diferente
nos dois sexos, no homem era mais intenso justamente porque a ele
cabia a parte ativa da relação, o que não significava,
porém, que aquela deixasse de conhecer o orgasmo:
"o papel da mulher no coito é em
geral meramente passivo; sem deixar de ter o orgasmo venéreo,
por vezes tão intenso quanto o do homem e por vezes superior
ao deste, a mulher é na regra comum menos sensual; nela o instinto
de geração está mais conservado que no homem,
embora as restrições que à sociedade lhe impõe
sejam muito mais severas que as que se impõem ao outro sexo."
E claro que, apesar dos seus refinados conhecimentos,
os médicos estavam menos preocupados com a satisfação
das necessidades sexuais femininas do que com a garantia do casamento
e com o futuro da prole. Fundamentalmente pregavam a indissolubilidade
do matrimônio, embora evidenciando direta ou indiretamente suas
angústias e seus temores. De qualquer modo, o nacionalismo
crescente entre as décadas de 20 e 30 fundamentava uma forte
preocupação eugênica com o fortalecimento da raça,
com a formação dos futuros cidadãos da pátria
e com a transmissão dos valores éticos, como se pode
observar nas afirmações do dr. Renato Kehl, fundador
do Instituto Brasileiro de Eugenia.
Mesmo assim, uma série de preceitos
eram definidos de modo a orientar os maridos, principalmente, na boa
condução da relação sexual: durante o
ato sexual, recomendava-se que a relação se restringisse
ao "coito vaginal", isto é,
"intromissão do pênis na
vagina, estando o corpo em posição horizontal e ficando
a mulher em plano inferior em relação ao homem"
dormir ou repousar um pouco após o ato;
e, sobretudo, nunca repetir a cópula,
"seja ao se terminar a primeira, seja
horas após, no mesmo dia."
O "coito interrompido" era condenado
também por não resultar em satisfação
para as mulheres, que
"sofrem grandes perturbações
nervosas, em conseqüência do estado de insatisfação
sexual, que desta prática deflui, devido ao fato da mulher
interromper em regra geral a cópula, antes de entrar em orgasmo."
E mesmo no caso em que o homem conseguisse
reter a ejaculação, para que a companheira pudesse
"entrar em orgasmo antes da interrupção
do coito",
nem assim sua satisfação sexual
estaria garantida, pois ela ficaria igualmente
"privada do esperma, [e] não participaria
dos benefícios, que de sua absorção defluiriam."
A
"revolução clitoriana" nos anos 70
É interessante observar que, a despeito
do reconhecimento do clitóris como lugar fundamental do prazer
sexual feminino, no final do século 19, a grande maioria dos
médicos, quando aceitava a necessidade sexual da mulher indicava
como desejável a relação tradicional em que se
procurava obter o orgasmo vaginal. E, de certo modo, é possível
dizer que a vitória do modelo da família nuclear higienizada,
entre os inícios do século 20 e os anos 50, levou a
um total abafamento da existência e da importância do
pequeno órgão da mulher, cada vez mais associado à
anormalidade e ao lesbianismo. Assim, é somente nos inícios
dos anos 70 que, no Brasil e em muitos outros países, entra
em cena o clitóris, no contexto de toda uma discussão
que redefiniu o lugar social e sobretudo sexual da mulher.
Vale notar que, para além das revistas
feministas norte-americanas a que tiveram acesso as jovens da classe
média universitária desde o final dos anos 60, a discussão
foi popularizada através de uma revista comercial destinada
ao público feminino, que rapidamente se tornou nacionalmente
conhecida: a revista Nova. Já em seus primeiros artigos, ao
propor uma nova figura de mulher independente, livre, ágil,
ativa, nova cidadã e nova integrante do mercado, explicava
a fisiologia do corpo feminino e masculino, atentando para o clitóris
como lugar fundamental do prazer sexual, com base nas descobertas
de Master e Johnson. Para a "nova" mulher, indicavam-se
novos saberes sexuais, que poderiam informar a mudança de hábitos
pessoais e com o companheiro. Em artigo intitulado "Orgasmo"
(n° 68, maio de 1979), por exemplo, o terapeuta sexual respondia
à pergunta "Como você sabe se está tendo
um orgasmo?":
"O orgasmo acontece sempre de um mesmo
jeito: pela estimulação do clitóris (orgasmos
vaginais não existem); e cada clímax é diferente
do outro. Seu orgasmo da segunda feira não é igual ao
que você sentiu no sábado à noite, e você
o experimenta sempre de modo diferente de suas amigas."
E à pergunta de se "Um homem pode
‘dar’ orgasmo a uma mulher?", a resposta era taxativa:
"...NÃO. As mulheres são
responsáveis por seus próprios orgasmos. Por outro lado,
com um homem hábil e atencioso é bem mais provável
que a mulher chegue ao clímax."
Em outro artigo, de fevereiro de 1991, Freud
é responsabilizado pelas confusões em torno do clímax
feminino:
"Ele acreditava que as mulheres tinham
dois tipos de orgasmo: o clitorial (imaturo) e o vaginal, durante
a relação. Alcançado por mulheres emocionalmente
maduras. Mas isso era só teoria, sem nenhuma pesquisa científica.
Hoje em dia os sexólogos dizem que alcançar o orgasmo
pela estimulação do clitóris é tão
válido, ou maduro, quanto qualquer outro tipo de orgasmo."
Em outras palavras, o clitóris foi discursiva
e praticamente fundamental para a redefinição social
da figura da mulher, muito embora se tenha dado pouca atenção
à associação então estabelecida. Mais
do que nunca, clitóris e política se encontram, trazendo
muito para se pensar e fazer.
Finalizando:
A questão inicial deste texto continua
sem resposta definitiva. Contudo, é possível perceber
que, em momentos de desestabilização social, provocada
pela modernização econômica e pela transformação
social dos hábitos, as discussões sobre a capacidade
desejante da mulher, ou sua possível igualdade em relação
aos homens também em matéria de sentimentos, instintos
e sensações ganham destaque e, com elas, o clitóris
adquire visibilidade.
E também possível concluir que
as informações médicas sobre a anatomia do corpo
feminino e seu funcionamento variam conforme o maior conservadorismo
ou progressismo da época. Nos momentos de explosão feminista,
como nos inícios do século 20 e nas décadas de
70-80, o clitóris entrou em cena, as mulheres ganhando autonomia
em relação aos homens inclusive no campo sexual, biologicamente
fundamentadas. Nos períodos de enclausuramento do desejo, como
nos anos 30 ou S0, os discursos autorizados promovem a figura da "mãe
cívica", logo, sem desejo e sem tesão. O precioso
órgão desaparece dos discursos competentes.
É de se notar, portanto, que a maneira
pela qual o corpo é lido e explicado, mesmo que cientificamente,
varia em cada época, tanto segundo as representações,
corporais produzidas, quanto segundo os interesses políticos
e ideológicos dominantes. Como diz Laqueur,
"a história do clitóris
é parte da história da diferença sexual e da
socialização dos prazeres do corpo. Como a da masturbação,
trata tanto de questões sociais, como de sexo."
Seguramente uma análise psicanalítica
nos levaria um pouco mais longe nessas considerações
a respeito do corpo e de suas racionalidades, ou das manipulações
culturais do desejo em cada momento e em cada sociedade.
Revista Letralivre
#30