Maria Lacerda de Moura - Uma Anarquista Individualista Brasileira
"Sou
"indesejável", estou com os individualistas livres,
os que sonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas
as bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa
cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas
as forças interiores, num sentido mais alto – para uma
limitação cada vez mais ampla da sociedade sobre o indivíduo."
Maria Lacerda de Moura
Um dos temas da história do movimento operário e, particularmente,
do anarquismo, que até hoje tem sido pouco pesquisado é
o da presença feminina. Na história do anarquismo, e
do socialismo no seu conjunto, a atuação das mulheres,
mesmo não sendo rara, é significativamente menor do
que a masculina. Existem razões de sobra que explicam esse
fato. Em primeiro lugar, na composição do operariado
que viria a gerar esses movimentos, a percentagem de mulheres foi,
ao longo de muitas décadas, muito inferior à dos homens.
Um fato ainda mais evidente nos círculos da intelectualidade
independente que esteve associada ao nascimento das idéias
socialistas. Por outro lado, a cultura familiar reacionária,
ou revestida de valores conservadores, estava bem presente no mundo
operário do século XIX e primeira metade do século
XX, fazendo com que as mulheres acabassem, mesmo nos movimentos sociais,
adotando - ou sendo empurradas em alguns casos - para uma posição
subalterna, ligada a velhos preconceitos associados a idéias
como "fragilidade feminina", papel "maternal"
das mulheres ou da sua "passividade".
É certo que em muitos
casos era tão-só a histórica divisão de
papéis sociais que relegava as mulheres para uma função
doméstica que contrariava, ou dificultava, a sua militância
social. Talvez por isso, entre as mulheres que mais se destacaram
no movimento anarquista, exista um número importante de personagens
femininas que optaram por uma vida pessoal independente, onde o casamento
e uma relação familiar mais tradicional, ou até
a maternidade, foram recusadas em nome da liberdade e da autonomia.
Evidente que o papel das
companheiras e cúmplices - sentimentais e de idéias
- dos anarquistas, e dos militantes operários em geral, foi
de tal forma relevante que constituiu, por si mesmo, uma destacada
presença feminina no movimento. Ainda que um feminismo pseudo-radical,
incapaz de situar histórica e culturalmente as relações
de gênero, veja nessa relação ou em aspectos tradicionais
das relações dentro das famílias dos militantes
operários e anarquistas a prova irrefutável da manutenção
de valores machistas e de sujeição das mulheres nos
movimentos anti-burgueses.
A cultura operária
anti-capitalista sempre procurou valorizar os direitos intrínsecos
e específicos das mulheres. Era também comum, na imprensa
e literatura libertárias, a crítica das instituições
familiares, do casamento burguês e a defesa do amor livre3 ,
tematização que alguns pensadores individualistas chegaram
a dar um relevo especial. Foi o caso de Emile Armand4 e Han Ryner5
. Mulheres libertárias, como Emma Goldman6 , também
deram uma particular atenção ao tema.
Mesmo sendo assim, há
que se reconhecer, a presença efetiva, marcante e autônoma
das mulheres, no movimento operário e no anarquismo, foi limitada.
O que não impediu que em alguns setores operários, particularmente
no têxtil, tecelãs e costureiras tivessem um papel determinante
na organização e nas lutas sindicais, a partir das quais
se destacaram importantes militantes libertárias e socialistas
que contribuíram para o anarco-sindicalismo e para o sindicalismo
revolucionário internacional. É no contexto da época
e das sociedades onde desenvolveram sua militância que poderemos
explicar as diferenças de presença, de importância
ou de destaque entre mulheres e homens no movimento operário
anarquista ou no movimento socialista em geral. Por essa mesma razão,
não é de estranhar a ausência de um número
mais significativo de teóricas do anarquismo e do socialismo,
principalmente no século XIX.
Apesar de tudo isso, nomes
como Mary Wollstonecraft7 , companheira de William Godwin8 e precursora
do feminismo, Flora Tristán9 , Louise Michel10 , Emma Goldman,
Voltarine de Cleyre11 , Lucy Parsons12 , Tereza Mané13 , Federica
Monteseny14 , May Picqueray15 , Giovanna Caleffi16 e Luce Fabri17
, deixaram profundas marcas nos movimentos sociais e no pensamento
libertário de seus respectivos países. Em Portugal,
alguns nomes se destacam: Miquelina Sardinha18 , Virgínia Dantas
e Luisa Franco Adão. No Brasil, Edgar Rodrigues, na sua obra
Os Companheiros, que reúne em cinco volumes uma ampla pesquisa
biográfica de militantes anarquistas, lista o nome de 52 mulheres
que tiveram especial relevância no movimento social, no período
que vai do final do século XIX à metade do século
XX.
Entre estas mulheres, Maria
Lacerda de Moura merece um lugar à parte, não só
pela sua personalidade combativa, pela sua múltipla atividade
de escritora e conferencista, como pelo destaque que chegou a ter,
não só no Brasil, como em outros países da América
do Sul, tendo os seus textos divulgados em Portugal, na França
e, principalmente, na Espanha.
Nascida em Minas Gerais
a 16 de maio de 1887, desde jovem se interessou pelo pensamento social
e pelas idéias anticlericais. Formou-se na Escola Normal de
Barbacena, em 1904, começando logo a lecionar nessa mesma escola.
Inicia então um trabalho junto às mulheres da região,
incentivando um mutirão de construção de casas
populares para a população carente da cidade. Participou
da fundação da Liga Contra o Analfabetismo. Como educadora,
adotou a pedagogia libertária de Francisco Ferrer Guardia19
. Após se mudar para São Paulo, começou a dar
aulas particulares e a colaborar na imprensa operária e anarquista
brasileira e internacional. No jornal A Plebe (SP) escreveu principalmente
sobre pedagogia e educação. Seus artigos foram também
publicados por jornais independentes e progressistas, como O Combate,
de São Paulo e O Ceará (1928), de Fortaleza, de onde
se extraiu o texto Feminismo? Caridade?, bem como em diferentes jornais
operários e anarquistas de todo o Brasil.
Em Fevereiro de 1923, lançou
a revista Renascença, publicação cultural divulgada
no movimento anarquista e entre setores progressistas e livre-pensadores.
A importância desta militante pode ser avaliada, entre outros,
pelo fato de que, em 1928, jovens estudantes e trabalhadores paulistas
terem invadido o jornal pró-fascista italiano Il Piccolo, como
resposta a um artigo que caluniava violentamente a pensadora libertária.
Na mesma época, Rachel de Queiroz20 polemizou acaloradamente,
nas páginas d’ O Ceará, com um jornalista cearense
que atacou Maria Lacerda.
Ativa conferencista, tratava
de temas como educação, direitos da mulher, amor livre,
combate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-se conhecida não
só no Brasil, mas também no Uruguai e Argentina, onde
esteve convidada por grupos anarquistas e sindicatos locais. Entre
1928 e 1937, a ativista libertária viveu numa comunidade em
Guararema (SP), no período mais intenso da sua atividade intelectual,
tendo descrito esse período como uma época em que esteve
"livre de escolas, livre de igrejas, livre de dogmas, livre de
academias, livre de muletas, livre de prejuízos governamentais,
religiosos e sociais".
Maria Lacerda de Moura
pode ser considerada uma das pioneiras do feminismo no Brasil e uma
das poucas ativistas que se envolveu diretamente com o movimento operário
e sindical. Entre os seus numerosos livros destacam-se: Em torno da
educação (1918); A mulher moderna e o seu papel na sociedade
atual (1923); Amai e não vos multipliqueis (1932); Han Ryner
e o amor plural (1928) e Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital
(s/d).
O texto de Maria Lacerda
de Moura que transcrevemos de seguida foi publicado no jornal independente
O Ceará (1928), de Fortaleza, a pedido da então jovem
escritora Rachel de Queiroz, que se consagraria como uma das grandes
romancistas brasileiras contemporâneas. Esse texto expressa
o pensamento de Maria Lacerda de Moura sobre o feminismo e sua visão
anarco-individualista. Uma filosofia libertária bastante influenciada
por Han Ryner, um pensador libertário original que se destacou
em França como ativista anti-militarista, anti-clerical e defensor
do amor livre. Outra influência notória no texto é
a de Emile Armand.
É certo que ele
não representa todo o pensamento da anarquista brasileira.
Como todo militante, com larga atividade literária, passou
por diferentes fases e sua reflexão abordou temas tão
diversos comoa guerra, o malthusianismo e a pedagogia libertária.
Polêmica na literatura
e na militância, Maria Lacerda de Moura passou pela Maçonaria
e pela Fraternidade Rosa Cruz, com quem rompeu denunciando-a como
agente do nazismo. Atravessou algumas fases de maior envolvimento
social e outras de isolamento, umas de otimismo e outras de declarado
pessimismo. E, se no fim da vida, permanecia num certo pessimismo,
isso deve-se certamente às divergências e rupturas que,
no fim da década de 20, confrontavam anarquistas e comunistas
ao mesmo tempo em que acontecia a ameaçadora ascensão
do fascismo. No entanto, quando após a fundação
do Partido Comunista dirigentes desse partido, fizeram várias
tentativas para aliciá-la, a pensadora libertária recusou-se
a abandonar sua visão de mundo, mantendo até ao fim
da vida o seu anarquismo individualista21 .
Maria Lacerda de Moura
é praticamente desconhecida no Brasil, onde um certo feminismo
parece querer ocultar aquela que seria uma das primeiras e mais importantes
ativistas das causas das mulheres, mas que nunca reconheceu no Estado,
no Direito e no acesso profissional burguês a sua causa. Na
verdade, isso acontece porque, antes de tudo, via generosamente a
luta feminista como parte integrante do combate social compartilhado
igualmente por homens e mulheres engajados na luta pela eliminação
de toda exploração, injustiça e preconceito.
Talvez por isso mesmo, ela seja ainda um símbolo incômodo
para toda a sociedade conservadora, até para o atual conservadorismo
feminista, mero arrivismo social de classe média em busca do
seu lugar ao sol no Estado e no capitalismo, tal comoo foi para as
sufragistas da classe média e das elites do seu tempo.A militante
anarquista morreu em 1945, no Rio de Janeiro.
Notas:
1 Historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará.
2 Doutor em nada, militante anarquista e colaborador da imprensa libertária
3 Giovanni Rossi (1856-1943), idealizador da Colônia Cecília
fundada em 1891 por anarquistas italianos no sul do Brasil, chegou
a escrever o livro Un Episodio d’amore nella Colonia Cecilia,
onde analisa a sua experiência pessoal de um amor plural e as
dificuldades de superação das relações
e moral convencional numa comunidade libertária.
4 Emile Armand (1872-1963).Um dos mais importantes militantes anarquistas
individualistas franceses. Autor de L’ Iniciation Individualiste
Anarchiste e Anarquismo e Individualismo.
5 Han Ryner (1861-1938). Pensador e escritor anarquista individualista
francês nascido na Argélia. Pacifista, anticlerical e
defensor do amor livre. Autor de O Pequeno Manual Individualista e
de O Quinto Evangelho, exerceu grande influência sobre Maria
Lacerda Moura, mais visível no seu livro Han Ryner e o Amor
Plural, de 1933.
6 Emma Goldman (1868-1940). Militante e pensadora anarquista de origem
russa, emigrou para os EUA em 1886. Em 1919 foi expulsa para a Rússia,
mas logo teve de abandonar o país por discordar do que denominava
a evolução autoritária da Revolução
Soviética. Viveu em vários países e teve um importante
papel no apoio à Revolução Espanhola de 1936.
Viria a falecer no Canadá.
7 Mary Wollstonecraft (1759-1797). Ativista libertária inglesa,
companheira de William Godwin e autora do livro precursor do feminismo
Vindicatin of the Rights of Woman, editado em 1792.
8 William Godwin (1756-1835). Considerado um dos primeiros pensadores
anarquistas modernos foi o autor do livro Investigação
Acerca da Justiça Política, editado em 1873.
9 Flora Tristán (1803-1844). Libertária, de pais peruanos,
nascida em Paris. Preocupada com o problema social, engajou-se nas
lutas operárias e escreveu, em 1843, a União Operária,
uma das primeiras propostas de organização internacional
dos trabalhadores.
10 Louise Michel (1833-1905). Professora e militante anarquista francesa.
Participou da Comuna de Paris e acompanhou de forma ativa o crescimento
do movimento operário e do anarquismo francês.
11 Voltairine de Cleyre (1866-1912). Uma das mais ativas agitadoras
e oradoras anarquistas americanas, colaborou na revista Mother Earth
e destacou-se por tratar dos temas referentes às mulheres e
ao amor livre.
12 Lucy Parsons (1853-1942). Militante operária e anarquista
americana. Companheira de Albert Parsons, um dos mártires de
Chicago, continuou sendo uma ativa militante operária até
ao final da sua vida, dando destaque aos temas da mulher e do racismo.
13 Teresa Mané (1865-1939). Militante anarquista e professora,
ficou conhecida pelo pseudônimo de Soledad Gustavo, foi companheira
de Federico Urales e mãe de Federica Montseny, que constituíram
uma das famílias mais ativas no movimento anarquista espanhol.
14 Federica Montseny (1905-1994). Uma das mais conhecidas militantes
anarquistas espanholas. Militante da CNT, durante a Revolução
de 1936 integrou o governo republicano como ministra da saúde,
por decisão majoritária, embora polêmica do movimento
anarquista.
15 May Picqueray (1898-1983). Anarquista individualista e ativa pacifista
francesa.
16 Giovanna Caleffi (1897-1962). Militante anarquista italiana, companheira
de Camilo Berneri, assassinado pelos estalinistas em Barcelona. Continuou
sua militância em Itália até morrer. Sua filha
Maria Louise Berneri, foi também militante anarquista.
17 Luce Fabri (1908-). Ativa militante anarquista uruguaia ainda viva,
filha de Luigi Fabri (1877-1935) um dos mais ativos anarquistas italianos
deste século.
18 Miquelina Sardinha (1902-1966). Professora e militante anarquista
portuguesa, companheira de Francisco Quintal (1898-1987) ativo militante
anarco-sindicalista.
19 Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909). Pedagogo e militante anarquista
espanhol que desenvolveu os princípios da Escola Moderna baseada
no ensino misto, laico, crítico e científico. O seu
método e filosofia de educação espalharam-se
por diversos países entre os quais o Brasil. O movimento operário,
principalmente o anarco-sindicalista, criou escolas nos sindicatos
baseadas no pensamento de Ferrer. Franscisco Ferrer viria a ser fuzilado,
em 1909, em razão das suas idéias e da sua militância
social.
20 Rachel de Queiroz (1910-). Romancista e cronista brasileira nascida
no Ceará. Autora dos romances: O Quinze; João Miguel;
Caminho das Pedras e Memorial de Maria Moura, entre outros. Esteve
próxima às posições trotskistas e hoje
gosta de se definir como "uma anarquista doce".
21 Embora no livro de Míriam Leite, Outra face do feminismo,
se tente provar a aproximação de Maria Lacerda de Moura
do Partido Comunista, Otávio Brandão, dirigente comunista
da época, e ex-anarquista, desmente na sua autobiografia, Combates
e Batalhas (São Paulo: Alfa-Omega, 1978), que a sua tentativa
tenha resultado.
Bibliografia consultada:
- Combates e Batalhas,
Otávio Brandão. São Paulo: Editora Alfa-Omega,
1978.
- Os Companheiros (vol 1 a 5), Edgar Rodrigues. Florianópolis:
Editora Insular, 1997-1998.
- Os Libertários, Edgar Rodrigues. Petrópolis: Editora
Vozes, 1988.
- Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de Moura, Míriam Lifchtitz
Moureira Leite. São Paulo: Editora Ática, 1984.
- Jornal O Ceará, Fortaleza, 1928.
Adelaide Gonçalves(1)
e Jorge Silva(2)
Revista Utopia # 9