José
Maria Carvalho Ferreira
1.Questões
de índole metodológica e epistemológica no discurso
narrativo dos especialistas da pedagogia, na generalidade dos casos,
esta aparece quase sempre associada a uma visão circunscrita
à utilização de um conjunto de métodos
e técnicas relacionadas com o sistema educacional. É
interpretada e aplicada como meio de aperfeiçoamento do comportamento
humano, nos domínios físico e cognitivo, de forma a
potenciar a sua capacidade de assimilação do conhecimento.
Inscrita num modelo educacional racional-instrumental, a pedagogia
serve fundamentalmente para melhorar os processos de aprendizagem
cultural e socializar os indivíduos e grupos que vivem nas
instituições escolares.
Hoje,
no entanto, a pedagogia tornou-se num fim em si mesmo. Como conjunto
de técnicas e métodos de acção e intervenção
sobre o comportamento humano, revela-se, cada vez mais, uma disciplina
com um objecto científico e um objecto de observação
autónoma e específica. Esta evolução leva
a que os pedagogos e especialistas afins transformem a pedagogia num
objecto de compra e venda, com conceitos e metodologias próprias.
Embora mantenha laços de indissolubilidade com o ser humano
e a sociedade, tende a funcionar como um mero instrumento de adaptação
racional dos seres humanos aos desígnios das instituições
escolares, do Estado e do mercado.
Estamos,
sem dúvida, em presença de um fenómeno complexo,
cujos contornos científicos e metodológicos, por vezes,
é difícil determinar. Em primeiro lugar, porque temos
dificuldade em discernir com exactidão as fronteiras e autonomia
específica do objecto científico e do objecto de observação
da pedagogia. Em segundo lugar, porque enquanto conjunto de técnicas
e métodos aplicados ao comportamento humano, é difícil
circunscrever a sua função exclusivamente no indivíduo,
prescindindo de a relacionar com toda a envolvência cultural,
política, social e económica. Desse modo, não
podemos restringir a análise à unidade focal professor/aluno,
sem analisarmos a instituição escolar no seu todo. Mas,
ao fazê-lo, somos constrangidos a perceber a instituição
escolar como um sistema aberto e, logicamente, como uma realidade
interdependente e em interacção com a sociedade global.
Em terceiro lugar, essas relações entre a instituição
escolar e a sociedade global obrigam-nos a pensar e analisar a racionalidade
que está subjacente à pedagogia vigente, tendo presente
os conteúdos e as formas da assunção estruturante
que releva do instituinte e do instituído. Finalmente, contemporaneamente,
persiste uma grande dificuldade em descortinar o sentido e a lógica
de uma pedagogia que se ideologiza como espontânea, criativa
e livre, quando, na maioria dos casos, ela não é mais
do que um fenómeno de castração do ser humano
ao serviço da racionalidade instrumental do mercado e do Estado.
O
facto de estarmos em presença de um fenómeno complexo,
de forma alguma devemos inibir-nos perante o mesmo. Ao tentar confrontar
a essência das teorias e experiências pedagógicas
de características libertárias com a pedagogia vigente
de natureza autoritária, conseguimos clarificar esse dilema.
Por serem duas pedagogias contrastantes, ao analisar o conteúdo
e as formas mais representativas da pedagogia libertária que
procuraram e/ou procuram superar a natureza negativa da pedagogia
autoritária capitalista, isso permitir-me-á percebê-la
e analisá-la de forma dicotómica: de um lado, a individualidade,
a liberdade, a espontaneidade e a criatividade do indivíduo
a constituir-se num projecto de vida integrado, do outro, a instrumentalidade
da racionalidade do mercado, do Estado, do poder e da autoridade a
agirem e a intervirem sobre o comportamento do indivíduo de
forma tutelar e separada .
Para
evitar cair em generalizações fáceis e abusivas,
vejo-me constrangido a restringir o meu objecto de análise
ao contexto geográfico da Europa ocidental, onde o capitalismo
atingiu maior desenvolvimento. Se bem que o modelo pedagógico
de características autoritárias esteja disseminado à
escala mundial, não é possível visualizá-lo
de forma padronizada e consistente, já que temos que ter presente
o carácter discrepante dos níveis de desenvolvimento
económico, político, cultural e social dos diferentes
países. Pela homogeneidade civilizacional e grau de estruturação
histórica da instituição escolar e da pedagogia,
parece-nos mais aconselhável essa opção metodológica.
Da
mesma forma que delimitámos a amplitude geográfica do
objecto de análise, somos também obrigados a reduzir
a sua dimensão histórica. O fenómeno pedagógico,
nesse sentido, não será analisado desde os primórdios
históricos da humanidade, mas a partir do momento a que se
assiste a uma correlação estreita entre o advento histórico
do processo de laicização, industrialização
e urbanização das sociedades da Europa ocidental e a
institucionalização do ensino enquanto actividade autónoma
separada dos meios tradicionais que o ministravam: família,
igreja e corporação .
Uma
vez estabelecido o quadro epistemológico e metodológico
do texto, importa, agora, referir que numa primeira fase abordarei
sumariamente os conteúdos e formas mais representativas das
teorias e experiências pedagógicas de características
autoritária e libertária que emergiram desde a 1ª
revolução industrial. De seguida, tentarei formular
as tendências contemporâneas do fenómeno pedagógico
que se observam no quadro das sociedades capitalistas mais desenvolvidas
da Europa ocidental. Finalmente, como conclusão, procurarei
construir um conjunto de hipóteses virtuais e reais que se
apresentam à pedagogia libertária.
2.
Pressupostos da pedagogia autoritária capitalista
Fénelon
(1) personifica com alguma expressividade as características
da pedagogia autoritária que prevalecia na Europa ocidental
no período histórico da reforma e do renascentismo.
O seu Tratado da Educação das Meninas permite-nos não
só compreender o peso histórico da influência
da religião cristã no processo de aculturação
das crianças e dos adultos, como, ainda, perceber a função
de uma pedagogia autoritária baseada na discricionaridade da
autoridade do clero e dos perceptores sobre as crianças. As
técnicas e métodos pedagógicos utilizados para
ensinar as crianças não só permitiam a utilização
de violências físicas (vergastadas, réguadas,
castigos corporais e psíquicos diferenciados, etc.,), como
também funcionavam no sentido da omissão e a castração
da intelectualidade e sexualidade da criança através
da redução da pedagogia aos desígnios de uma
ordem social fundamentada nos condicionalismos do poder divino.
Para
Fénelon "todas as crianças gostam de histórias.
É necessário tirar partido dessas disposições
naturais. Mas que se tenha cuidado em só lhes contar histórias
instrutivas. As da Biblia são as melhores, porque a par do
interesse que despertam, formam as bases da religião (.). O
ensino religioso, mas histórico, deve começar pela distinção
entre a alma e o corpo e o conhecimento dum Deus todo-poderoso, criador
e conservador do Universo (.). Por esse meio preparam-se as crianças
para a leitura do Evangelo e da palavra de Deus" (2). É
uma pedagogia autoritária no sentido em que a razão,
a liberdade e a espontaneidade criativa das crianças são
coarctadas desde a infância. Por outro lado, as tipologias relacionais
da transmissão de conhecimentos polarizavam-se em formas de
autoridade e dominação arbitrárias do clero,
pais e perceptores sobre as crianças e até sobre os
adultos.
Quando
em meados do século XVIII irrompe o processo de industrialização
e de urbanização das sociedades situadas na Europa ocidental,
o ensino e, logicamente, a pedagogia são objecto de uma reestruturação
progressiva. Os múltiplos saberes - saber fazer, saber viver
e saber ser – são constrangidos a um processo de adaptação
funcional sob efeito da laicização e do individualismo
fomentados pelo progresso e a razão. O incremento das funções
e tarefas ligados à gestão e governação
do Estado e dos grandes aglomerados urbanos, a proliferação
de actividades socio-económicas relacionadas com os sectores
industrial, comercial, agricola, assim como os transportes e as comunicações,
desenvolveram de forma gigantesca as necessidades de qualificação
da mão-de-obra dos diferentes grupos sócio-profissionais.
Dessa realidade emerge uma nova racionalidade instrumental baseada
num novo tipo de ensino e pedagogia.
Tratava-se,
desde de então, de deixar o ensino escolástico e livresco
sem articulações com a razão, a ciência,
a tecnologia e o mundo do trabalho. Os processos de aprendizagem dos
múltiplos saberes passaram a ser determinados progressivamente
pelos ditames da racionalidade empresarial e estatal . O mundo da
produção, consumo e distribuição de mercadorias
exigia um tipo de conhecimentos que não se adequava mais a
um saber contemplativo da ordem divina.
Rousseau
ao escrever a seu livro Emílio (3) enunciava já algumas
das premissas que a educação e a pedagogia devia assumir
no sentido de uma adaptação da actividade espiritual
e intelectual dos seres humanos às experiências da vida
e aos diferentes ofícios.
Para
ele, a pedagogia e a educação deveria transformar as
crianças em adultos a partir de um processo de aculturação
naturalista e científico. As diferentes fases evolutivas da
criança até atingir a idade adulta passavam, previamente,
por um conhecimento das virtualidades físicas do corpo humano,
de seguida, por um conhecimento baseado na razão, para, finalmente,
instrumentalizar-se na aquisição de conhecimentos ligados
às exigências de execução de tarefas e
funções correlacionados com a actividade económica
de então.
Com
Durkheim (4), a educação e a pedagogia assumiam fundamentalmente
uma função de cientificidade. A aprendizagem de um conhecimento
científico e laico deveria estar em consonância perfeita
com as exigências da divisão do trabalho social das sociedades
industrializadas e urbanizadas. As implicações da organização
científica das empresas, das novas tecnologias, dos novos materiais
e energias potenciaram não só exigências de conhecimentos
humanos ao nível dos procedimentos operatórios das tarefas
e funções, como inclusivé traduziu-se em novas
exigências de conhecimentos no plano da adaptação
física e ergonómica dos seres humanos em relação
ao mundo do trabalho. Acresce a esses factos, a crescente complexidade
do tecido sócio-cultural e político das sociedades de
então em termos da pressão demográfica, migrações
populacionais, anomia social, gestão e governação
dos grandes aglomerados urbanos e do Estado. A socialização
desta realidade levou a um processo de institucionalização
e organização das relações sociais baseados
num sistema de representatividade formal. Por esta via, a socialização
do comportamento humano traduziu-se também na proliferação
da exigência de novos conhecimentos.
Desde
os finais do século XIX assistiu-se a um desenvolvimento progressivo
desse tipo de conhecimentos em paralelo com a criação
de outros que, entretanto, emergiram. Depreende-se desse contexto
histórico, a assunção da evolução
das características da educação e da pedagogia
de tipo autoritário capitalista. Se no tempo de Rousseau (1712-1778)
o advento da laicização e do individualismo tinham permitido
que a educação e a pedagogia evoluissem no sentido naturalista
e racional, no tempo de Durkheim (1858-1917), a industrialização
e urbanização das sociedades capitalistas desenvolvidas
da Europa ocidental deram origem à transformação
da educação e da pedagogia autoritária num sentido
racional-instrumental e laico. O Estado passa a assumir uma função
de legitimidade científica para ministrar os diferentes graus
de ensino (básico, secundário e universitário)
e simultaneamente tutela a sua institucionalização pelas
diferentes instituições e organizações
de carácter privado e público.
A
institucionalização progressiva da escolarização
do sistema social, nos diferentes graus de ensino de forma a corresponder
às novas necessidades do conhecimento humano, introduziu uma
série de dilemas aos sistema educacional e pedagógico
autoritário.
Em
primeiro lugar, o tipo de educação e pedagogia ministrada
pela Igreja, família e corporação não
consegue satisfazer a procura agregada de conhecimentos de carácter
científico e técnico que as novas qualificações
do factor trabalho e o desenvolvimento cultural do ser humano exigiam(5).
O ensino de massa, conforme a exigência dos valores da cidadania
nos parâmetros da democracia burguesa, conjugados com a descodificação
de linguagens complexas de carácter tecnológico e científico
não se coadunavam mais com os conhecimentos humanos ministrados
pela Igreja, a família e as corporações.
Por
esses motivos, as relações polares entre pais/filhos
na família, teólogos/leigos na Igreja e mestres/aprendizes
nas corporações, que serviam de suporte a todo o sistema
educacional e pedagógico tradicional, vão ser objecto
de uma desintegração progressiva.
O
carácter secular e público da instituição
escolar ao evoluir para uma crescente dependência do Estado
e do mercado, obrigou a uma reestruturação dos fenómenos
educacional e pedagógico de características autoritárias.
A partir de então tratava-se não de instruir e socializar
a criança de forma a transformá-la num adulto e de a
identificar com a ordem social vigente e o poder divino subjacente,
mas de desenvolver sobretudo um tipo de ensino que possibilitasse
transformar radicalmente as virtualidades físicas e cognitivas
do ser humano numa função de produção
e de consumo de bens e serviços de natureza mercantil capitalista.
É esta racionalidade instrumental e utilitarista baseada no
interesse e na competitividade pela apropriação de riqueza
que as expectativas racionais dos indivíduos vão ser
objecto de uma estruturação ontológica específica.
No
domínio da pedagogia desenvolvem-se métodos e técnicas
que potenciem a percepção do conhecimento num sentido
competitivo e hierárquico. A relação entre professor/aluno
pressupõe uma autoridade desigual relativamente às virtualidades
de criatividade e liberdade de acesso ao conhecimento. O processo
de aprendizagem de conhecimentos passa, desse modo, por formas de
dominação nas relações estabelecidas entre
professor/aluno. A essência ontológica dos alunos, nos
planos cognitivo, psíquico e físico, é reduzida
a uma função de passividade e subalternidade criativa,
na medida em que a dinamização da criatividade e da
espontaneidade relacionados com os múltiplos saberes é
determinada hierarquicamente por aqueles que têm o poder e a
autoridade sobre as questôes pedagógicas: Estado, instituições
escolares, professores e diferentes especialistas da pedagogia. Doravante
o corpo, o espírito e
a mente dos alunos e dos professores são objecto de experiências
laboratoriais, de aprendizagens sócio-cognitivas e formação
científica no sentido de um aperfeiçoamento crescente
das suas virtualidades, de forma a potenciarem relações
hierárquicas de dominação do professor sobre
os alunos no processo de aprendizagem de conhecimentos.
Esta
pedagogia passa a estar articulada com uma educação
que obedece a uma lógica de estratificação e
de mobilidade social confinada aos ditames do Estado e do mercado.
No quadro da sociedade capitalista, o rendimento, a propriedade, o
"status", o poder, etc., não são usufruidos
e apropriados de igual modo pelos diferentes grupos e classes sociais
que constituem essa sociedade. Pela dominação e hierarquização
que essa realidade encerra, os diferentes grupos sociais e classes
sociais passam a dispôr de capacidades e possibilidades pedagógicas
e educacionais reguladas pela competividade e concorrência do
mercado, pela legitimidade institucional imposta pelo Estado e o constrangimento
das relações sociais de produção capitalistas.
Neste
quadro, os estratos sociais desfavorecidos, em função
das suas capacidades e possibilidades económicas, sociais,
políticas e culturais, tendem a reproduzir a sua condição-função,
o que leva a serem preteridos no acesso ao desenvolvimento educacional
e pedagógico de características autoritárias.
Em última instância, o modelo educacional e pedagógico
autoritário que se desenvolve durante o século XX serve
fundamentalmente para reproduzir a estratificação social
e a mobilidade social baseada na desigualdade económica, social,
política e cultural (6).
No
âmbito das teorias autoritárias há, no entanto,
uma outra perspectiva que tende a analisar os indivíduos como
função de racionalidade a optimizar no mercado (7).
Nesta assunção, os constrangimentos estruturais e institucionais
do Estado e do mercado capitalista nunca poderão inviabilizar,
em absoluto, as expectativas racionais dos indivíduos no campo
educacional e pedagógico.
Integrados
numa lógica de acção social pautada pela percepção
da análise de custo-benefício, os indivíduos
são capazes, por si só, de desenvolver o seu potencial
físico e cognitivo de forma a melhorarem as suas "perfomances"
no quadro da mobilidade e da estratificação social .
A ideologia burguesa da plena cidadania e a função positiva
da democracia representativa optimizam-se plenamente, já que,
nesta perspectiva, pode-se passar de burguês a operário,
de ministro a sacerdote, etc., e "vice-versa", bastando
somente que os indivíduos maximizem as suas expectativas racionais
nos sistemas educacional e pedagógico vigentes.
No
fundo, todas as experiências e as teorias identificadas com
as características da educação e pedagogia autoritária
capitalista apontam para uma condição-função
homológica do ser humano em termos das suas capacidades e possibilidades
sócio-cognitivas e físicas. Baseiam-se numa educação
e pedagogia que procura formar, treinar, domesticar, desenvolver e
aperfeiçoar o indivíduo desde o seu nascimento até
à morte (8), permitindo-lhe funcionar como objecto de aperfeiçoamento
sistemático no acesso ao conhecimento, mas constrangindo-o
sempre a assumir um carácter competitivo, concorrencial, hierárquico
e castrador. Obedece a uma racionalidade instrumental que é
bem visível nas interdependências e complementaridades
que as instituições escolares mantêm com o Estado
,o mercado e os múltiplos locais de trabalho e vida quotidiana
em geral. Ou seja, o indivíduo forma e treina o seu físico
e a sua mente nas instituições escolares de maneira
a evoluirem posteriormente como padrão de comportamento tipificado
de papéis e profissões que a sociedade e o mercado lhes
permitem exercer.
Todo
o periodo histórico do século XIX até à
década de sessenta do século XX fundamentou-se na difusão
de uma racionalidade instrumental do ser humano, enquanto "homo
educandus," integrado e funcionalizado prioritariamente nos parâmetros
da ordem económica burguesa autoritária. No entanto,
não podemos deixar de observar e analisar as tipologias de
saber fazer, de saber viver e saber ser que se reportam aos sistemas
cultural. político e social. Nestes domínios, a educação
e a pedagogia limitaram-se a socializar e a modelar as funções
cognitivas e físicas dos indivíduos de forma a codificarem
e descodificarem as linguagens que emergem nas instituições
escolares em termos das relações entre grupos sociais
e relações interpessoais confinadas aos processos de
socialização dos indivíduos, aos conflitos de
poder e aprendizagem de conhecimentos.
Em
síntese, a educação e pedagogia autoritária
capitalista assumem formas e conteúdos, cuja homologia espacio-temporal
é muito representativa nos "modus vivendi" das instituições
escolares, da família, do Estado, dos locais de lazer, da fábrica
, do campo, do escritório e da praça pública,
etc. Trata-se sobretudo de relações e de interacções
sociais orientadas e presididas sempre por bases desiguais e hierárquicas,
onde predomina, por um lado, a dominação, a exploração
do homem pelo homem e, por outro, a mutilação da liberdade,
da espontaneidade, da responsabilidade e criatividade dos indivíduos.
Uma relação e uma interacção social estruturada
entre os que sabem e os que não sabem (professor/aluno); entre
os que decidem e os que acatam as decisões sobre as questões
educacionais e pedagógicas (funcionários/professores/alunos);
entre os que detém o poder de emitir ordens, controlar e punir
e os que obedecem, são controlados e punidos sobre questões
relacionadas com a espontaneidade e liberdade criativa do corpo e
da mente dos indivíduos (professores/funcionários/alunos);
entre os que orientam e institucionalizam valores, ideias, ideologias
e crenças e os que são coagidos a assumi-los (sociedade/Estado;
organizações/instituições; professores/funcionários/alunos);
e, enfim, entre os grupos sociais dominantes que detém o poder,
o prestígio e a riqueza e os grupos sociais dominados que deles
são desprovidos (classes e grupos sociais /professores/funcionários/alunos).
Toda
a educação autoritária se baseia na difusão
de um conhecimento cuja eficiência e eficácia se mede
por dar corpo e forma a essa realidade social estratificada desigualmente.
Toda a pedagogia autoritária tem por objectivo nuclear desenvolver
e aplicar um conjunto de técnicas e de métodos capazes
de aperfeiçoar, treinar e formar as virtualidades sócio-cognitivas
e físicas do ser humano como função de produção
e de reprodução da sociedade vigente. A pedagogia autoritária
é, desse modo, uma função de adaptação
dos indivíduos que se enquadra no processo de aculturação
dos indivíduos em relação à assimilação
dos múltiplos saberes que relevam dos imperativos educacionais
da evolução da sociedade capitalista no contexto geográfico
da Europa ocidental e no resto do mundo.
3.
Pressupostos da pedagogia libertária Como fenómeno de
reacção às contradições e limitações
do modelo autoritário capitalista, no período histórico
em análise, desenvolveram-se na Europa ocidental experiências
e teorias libertárias no campo educacional e pedagógico.
Essas
experiências e teorias, embora tenham uma abrangência
geográfica e social muito reduzidas, demonstram, no entanto,
um conjunto de virtualidades potenciadoras de uma educação
e de uma pedagogia que pretende ser, em princípio, a negação
do modelo precedentemente analisado. Importa, pois, compreender e
explicitar a pedagogia e a educação de caraccterísticas
libertárias enquadradas em práticas sociais e humanas
presididas pelos valores da solidariedadade, da liberdade, da autogestão,
da espontaneidade e da criatividade integradas num todo social harmónico.
Estes são os denominadores comuns das experiências e
teorias mais representativas que se enquadram na educação
e pedagogia libertária.
Os
fundamentos desta perspectiva, em primeiro lugar, radicam no facto
de que as experiências e as teorias mais representativas não
separam arbitrariamente a educação e a pedagogia do
todo social em que se integram. Subsiste entre a pedagogia, a educação
e a sociedade uma relação de interdependência
e de complementaridade sistemática, o que implica correlacionar
as funções de adaptação e de integração
entre
as partes (pedagogia e educação) e o todo (a sociedade).
Em
segundo lugar, essas experiências e teorias emergiram enquanto
fenómenos de crítica radical da sociedade vigente e
visualizavam a implementação de um modelo de sociedade
libertária, na qual a educação e a pedagogia
subentendiam relações sociais e práticas humanas
identitárias entre indivíduos e grupos que interagem
nas instituições escolares. Os objectivos são
a extinção das relações de dominação
e de exploração que subsistem entre professores, alunos
e funcionários e que trabalham e vivem nas instituições
escolares, de forma a permitir que a espontaneidade, a liberdade,
a criatividade e a responsabilidade natural dos indivíduos
pudessem emergir para configurações sociais integradas
num modelo autogestionário de características libertárias.
A educação e a pedagogia não se separam da vida
no sentido estrito do termo e dessa forma o acesso aos processos de
aprendizagem de conhecimentos não tinham limites de qualquer
espécie, quer aqueles relacionados com o organismo humano nas
suas múltiplas dimensões, quer aqueles relacionados
com o conhecimento da natureza e da sociedade.
Na
Europa ocidental, as experiências históricas e as teorias
que emergiram desde os finais do século XVIII até aos
nossos dias foram várias. Por questões de síntese
no âmbito deste texto, limitar-me-ei a enunciar os postulados
teóricos centrais que foram comuns à maioria dos autores
anarquistas - William Godwin (1756-1836), Max Stirner (1800-1856),
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), Miguel Bakounine (1814-1876),
Paul Robin (1837-1912), Pedro Kropotkine (1842-1921), Sebastien Faure
(1859-1909) (9) - e a sumariar as experiências históricas
mais representativas que ocorreram nesse período até
aos nossos dias.
A
questão da liberdade como expressão genuina da criatividade
e de espontaneidade dos indivíduos no processo de aprendizagem
dos conhecimentos sempre teve e tem uma grande relevância para
a maioria dos autores anarquistas. William Godwin ao escrever Investigações
sobre a Justiça Política em 1793 e o Investigador em
1797 dá-nos uma visão crucial para compreender a essência
de uma pedagogia e de uma educação alicerçada
na liberdade dos indivíduos. Para Godwin o problema central
da pedagogia e da educação não se confina à
transformação do aluno num adulto sujeito aos desígnios
autoritários do Estado e do professor. A liberdade do indivíduo
não deve ser sujeita a nenhuma restrição, salvo
aquelas que vão no sentido da mutilação da criatividade
e espontaneidade natural dos indivíduos. A experiência
da vida nas suas múltiplas manifestações comportamentais
deverá servir como base essencial para um desenvolvimento livre
e espontâneo dos indivíduos no processo de aprendizagem
cultural (10). Nenhum Estado ou outro tipo de autoridade moral (professor,
Deus, etc.,) poderia pedagogicamente sobrepôr-se aos desígnios
soberanos do aluno como ser essencialmente livre e criador. Para conquistar
essa liberdade e felicidade criadora é preciso que o ser humano,
desde criança, ganhe o hábito e o método de aprender
por si mesmo, sem depender de quaisquer tutela moral, política
ou religiosa.
Para
Godwin, qualquer projecto de educação nacional revelava-se
contraproducente. A escola pública (tão cara a muitos
socialistas e republicanos laicos) sob tutela de um governo nacional
e do Estado encarregar-se-ia, em todas as circunstâncias, de
difundir um tipo de ensino e de pedagogia que cerceava inevitavelmente
a liberdade e a criatividade dos indivíduos e reforçava,
simultaneamente, o poder do Estado e das suas instituições.
Max
Stirner, embora não tivesse uma visão tão globalista
e integrada como Godwin, pensou a educação e a pedagogia
como um hino de criatividade e liberdade circunscritos à soberania
absoluta do indivíduo face a todos os poderes ou autoridades
exteriores ao mesmo (11). Nesta assunção, o indivíduo,
ao assumir-se como uma função de soberania relativamente
ao outro ou aos outros instituidos em instituições de
diferentes tipos e no Estado, só assume a criatividade e espontaneidade
plena nos planos educacional e pedagógico, quando usufrui do
máximo de liberdade e de individualidade. A figura do pedagogo,
do professor e/ou do funcionário administrativo das instituições
escolares revelam-se, por tais motivos, instrumentos de negação
da liberdade e da individualidade dos seres humanos. A existência
de um processo de aprendizagem de conhecimentos de incidência
social , nestes termos, só poderia estruturar-se numa sintese
única e indivísível: a emergência de uma
sociedade hipoteticamente anarquista. Só o ser humano, enquanto
entidade ontológica única,poderia evoluir para uma soberania
de indivíduos livres que construiam e desenvolviam pedagogias
e educações múltiplas, mas simultaneamente passíveis
de se integrarem numa mesma síntese societária anarquista.
Um
dos outros elementos centrais das teorias anarquistas reporta-se à
perspectiva autogestionária e integrada da pedagogia e da educação.
Por um lado, o fenómeno da educação e da pedagogia
só é passível de entendimento se o contextualizarmos
no âmbito da sociedade global, por outro, só através
do desenvolvimento de uma sociabilidade e socialização
de carácter fraternal e solidário permitir-nos-ia falar
verdadeiramente de uma educação e de uma pedagogia libertária.
A auto-organização e auto-responsabilização
dos indivíduos no processo de aprendizagem de conhecimentos
não somente deveria enquadrar-se numa acção social
criativa e espontânea, mas também tendo presente os valores
e as finalidades últimas da emancipação dos indivíduos
numa perspectiva autogestionária e integrada.
Proudhon
foi um dos autores que maior preocupação teve relativamente
a esta questão central. Esse facto deriva, em parte, das suas
análises sobre o federalismo, o mutualismo, o sindicalismo
revolucionário e a autogestão. A ordem social e económica
que defendia num sentido de uma sociedade libertária construia-se
basicamente a partir do trabalho e dos trabalhadores livres e emancipados.
A educação e a pedagogia inscrevia-se nesta orientação
primacial e funcionavam como o motor de aprendizagem dos conhecimentos
necessários a toda actividade económica, profissões,
ofícios e vida cultural e social em geral. Este carácter
integrado da educação passava por um processo de socialização
fundamentado na autogestão. A partir dos múltiplos locais
de trabalho, das escolas de diferentes tipos e graus de ensino, etc.,
os indivíduos deveriam auto-organizar-se de forma a que o processo
de aprendizagem de conhecimentos estivesse correlacionado com a sua
vida quotidiana e estivesse identificado com os processos de decisão
e transmissão de conhecimentos baseados em relações
sociais fraternas e solidárias .
Para
Proudhon, o ensino ministrado pelo sistema de educação
burguês limitava-se a reproduzir um tipo de conhecimentos que
embrutecia e desenvolvia atavismos comportamentais nos trabalhadores,
transformando-os em máquinas obedientes e escravas da lógica
exploradora e opressiva do Estado e da burguesia. Na medida em que
considerava o trabalho como fonte criadora da ordem social e económica
da sociedade futura, o seu projecto educacional e pedagógico
está muito ligado ao mundo do trabalho. Para libertar o trabalho
do jugo da opressão e da exploração capitalista
e estatal, numa sociedade libertária, a instrução
e a educação dos trabalhadores assumia uma importância
capital.
Na
perspectiva de Proudhon, as diferentes escolas públicas e privadas
não deveriam estar desligadas da experiência, do raciocínio
científico, dos locais de trabalho e da vida quotidiana em
geral (12). A integração do ensino intelectual e manual
numa síntese criativa humana permitiria a sua inserção
espacio-temporal em todas as actividades sociais, económicas,
políticas e culturais. Para a consecução desse
objectivo, haveria três modalidades para ministrar a instrução
e a educação: pelos pais nas suas famílias e
domicílios, pelas escolas privadas em obediência aos
seus particularismos, profissionais, ideológicos e geográficos
e, ainda, as escolas públicas com uma abrangência social
alargada e baseada em pressupostos federalistas.
As
relações entre professores e alunos inscreviam-se num
quadro estrutural autogestionário, mutualista e federativo.
A auto-organização da educação e da pedagogia
baseava-se em pressupostos de solidariedade e fraternidade o que,
em princípio, inviabilizaria todo o tipo de relações
hierárquicas traduzidas em tipos de autoritarismo e de dominação
entre professores e alunos. Os professores dependiam das comunas ou
federações distribuidas por departamentos e provincias.
A escola pública, nas suas múltiplas funções
de instrução e de educação, enquadrava-se
organicamente numa sociedade global descentralizada e federalista,
opondo-se, dessa forma, às concepções centralistas
e monopolistas do ensino tutelado pelo Estado. Pedagogicamente, a
escola modelo para Proudhon é a "escola-oficina"
que permitia um processo de aprendizagem de conhecimentos politécnicos.
A politecnia era uma pedagogia que permitia um acesso ao conhecimento
dos diferentes ofícios, através da experiência
e da racionalidade científica e simultaneamente de relações
sociais espontâneas e simples, sem hierarquias e autoridades
morais exteriores ao indivíduo e ao colectivo a que pertencia.
Bakounine
não foi de forma alguma um autor profícuo na análise
do fenómeno educacional. A razão fundamental dessa assunção
radica na expressividade da sua luta pela transformação
radical da sociedade capitalista e, ainda, devido ao facto de analisar
a questão da educação e da pedagogia no quadro
da sociedade libertária futura. Neste sentido, a sua visão
colectivista do anarquismo embora estivesse pautada pela liberdade,
a criatividade e espontaneidade dos indivíduos, a sua inserção
nos parâmetros da sociabilidade e socialização
humana transcritas em tipologias interactivas e relacionais de características
solidárias e fraternas, leva-nos a interpretar o fenómeno
educacional e pedagógico como algo que se integra e adapta
aos desígnios de emancipação social, económica,
política e cultural da sociedade libertária. Assim sendo,
a criatividade e espontaneidade dos indivíduos como a sua liberdade
e responsabilidade transcende o quadro de aprendizagem de conhecimentos
na qual se inscreve o fenómeno pedagógico e educacional
(13). Mais do que privilegiar a análise das relações
polares professor/aluno, para Bakounine haveria que abolir o Estado
e as relações sociais capitalistas a nível de
toda a sociedade e, logicamente, o tipo de autoridade hierárquica
e dominação que emerge na instituição
escolar,. Neste amplo sentido, a tipologia das relações
sociais anarquistas encarregar-se-iam de estruturar de uma forma livre,
espontânea, responsável e criativa a inserção
dos indivíduos na sociedade e nas suas unidades constituintes.
A
educação, tal como a pedagogia, inscrevia-se neste quadro
típico relacional e interactivo dos indivíduos, daí
que em termos de processo de aculturação sócio-cognitivo
e físico dos indivíduos não pudesse ser objecto
de uma aprendizagem de conhecimentos diferente daquela que ocorria
em toda a sociedade libertária.
Kropotkine
sempre viu o fenómeno educacional e pedagógico como
uma função crucial na formação dos jovens,
como também o conceptualizou no sentido da emancipação
dos trabalhadores (14). O conhecimento da vida, da natureza e da sociedade
esteve sempre no centro das suas preocupações . Esse
conhecimento permitiria destruir os factores que condicionavam a inteligência
humana de percepcionar e interpretar científica e racionalmente
os fenómenos que observava, mas também permitiria ao
ser humano construir-se como ser individual e ser social emancipado
de poderes e autoridades exteriores à sua identidade intrínseca.
A
educação e a pedagogia libertária, nesse sentido,
diferentemente da pedagogia e educação burguesa, deveria
actuar de forma a que subsistisse sempre uma identidade entre tudo
aquilo que se aprende e os requisitos inquestionáveis da emancipação
individual e social: isto é, a aprendizagem de um conhecimento
traduzido na potenciação da liberdade, da criatividade,
da espontaneidade, da fraternidade e solidariedade humana .
Assim,
tal como era importante formar jovens de forma a torná-los
responsáveis e activos enquanto agentes de transformação
radical da sociedade capitalista, para Kropotkine , a pedagogia e
a educação libertária deveria desenvolver-se
em sintonia com a assimilação de um conhecimento compatível
com as necessidades de produção, de distribuição
e consumo de bens e serviços inerentes ao funcionamento de
uma sociedade libertária. A aprendizagem desse conhecimento
deveria basear-se na realidade experimental dos múltiplos aspectos
da vida quotidiana e do trabalho e fundamentar-se num equilíbrio
ecológico de características identitárias com
a natureza e seus elementos constitutivos. Nestes parâmetros,
as comunidades pedagógicas e educacionais de Kropotkine enquadravam-se
numa perspectiva de relações sociais fraternas e solidárias
entre professores e alunos, eliminando-se os fenómenos relacionais
interpessoais presididos pela dominação e exploração
do homem pelo homem.
As
experiências pedagógicas e educacionais libertárias
que consideramos mais representativas, e que passamos de seguida a
descrever, não devem ser vistas como qualquer prova de desvalorização
em relação a todas as outras que omito. Esta omissão
decorre, em primeiro lugar de opções metodológicas
e epistemológicas, como enunciei logo de início neste
texto e também porque há que referenciar aquelas que
assumiram maior força simbolica no quadro da perspectiva libertária.
No
campo das experiências libertárias, aquela que foi realizada
por Paul Robin no orfanato de Cempuis (França), entre 1880
e 1894, foi dinamizada no sentido de dar uma formação
integral às crianças nos domínios psíquico,
físico e mental (15). Esta experiência, embora estivessse
enquadrada institucionalmente no sistema escolar público da
França, fundamentou-se numa perspectiva educacional e pedagógica
libertária que Paul Robin protagonizou durante toda sua vida
de professor. Os constrangimentos estruturais e institucionais impostos
pelo meio ambiente dessa experiência não impediu que
o orfanato de Cempuis reorientasse a educação e a pedagogia
no sentido das crianças viverem o espaço-tempo da escola
num clima de liberdade, de criatividade e de espontaneidade. A educação
física, intelectual e moral constituiam as bases de formação
das crianças, desde a infância até à adolescência.
O corpo era sujeito e objecto de uma aprendizagem baseada em conhecimentos
naturais e espontâneos e eram conjugados com jogos lúdicos.
A
alimentação fundamentava-se em práticas naturalistas
e actividades de lazer acompanhados de um diálogo de aproximação
e de identidade com a natureza. A educação intelectual
estava intimamente relacionada com a vida quotidiana dos alunos e
professores, evitando-se o abuso de um ensino livresco e escolástico.
No plano da educação moral estimulava-se, no aluno,
a defesa de valores que se orientavam por princípios humanistas
e emancipalistas, procurando-se incutir no espírito das crianças
o sentido lógico da liberdade e da fraternidade entre os indivíduos.
A relação entre professores e alunos inseria-se num
esquema pedagógico de igualdade na discussão e explicação
de todos os fenómenos estudados. A coeducação
e a relação de liberdade e de igualdade entre rapazes
e raparigas foi também estimulada. A experiência educacional
e pedagógica de Paul Robin, em Cempuis, teve o seu epílogo
em 1894, porque, em última instância, era demasiada radical
para a época e punha em perigo a essência da educação
e pedagogia burguesa de carácter autoritário. Não
admira, portanto, que tivesse soçobrado perante os ataques
difamatórios que sofreu da Igreja e do sistema escolar vigente.
Sebastien
Faure pode ser enquadrado no campo das experiências educacionais
e pedagógicas mais representativas no meio libertário,
pese embora a sua obra e vida estar muito ligada aos meios anarquistas
mais como intelectual e militante de grande envergadura. Na sua perspectiva
de luta por uma sociedade anarquista, a educação e a
pedagogia assumiam uma função estruturante de crucial
importância para a emancipação das massas trabalhadoras.
O projecto educacional e pedagógico de Sebastien Faure, por
esse motivo, não podia circunscrever-se nos parâmetros
e condicionalismos da educação e pedagogia burguesa,
mas integrar-se plenamente nos objectivos e estratégias da
revolução social (16). Embora seguindo, em grande parte,
os passos de uma educação integral preconizada por Paul
Robin nos planos intelectual, moral e físico, diferentemente
deste, no entanto, fundamentou a construção de uma escola
libertária apoiada em princípios e práticas autogestionárias,
sem depender da tutela institucional e pedagógica estatal.
Nestes
termos, em 1904, sob auspícios de Sebastien Faure é
criada uma escola denominada A Colmeia, em Rambouillet (França).
Em Rambouillet, não só foi dinamizado uma aprendizagem
de conhecimentos manuais e intelectuais numa perspectiva integrada,
como, ainda, todo esse conhecimento estava harmonicamente correlacionado
com as necessidades de produção, de consumo e de educação
da cooperativa integral A Colmeia. Na medida em que persistia uma
interligação entre produção, consumo e
educação, os aspectos organizacionais e pedagógicos
eram estabelecidos mediante decisões e relações
sociais de características autogestionárias e libertárias.
A
criatividade, liberdade e espontaneidade dos alunos e professores
permitia-lhes uma auto-organização e uma auto-responsabilização
no processo de aprendizagem dos múltiplos saberes que estavam
intimamente associados e, simultaneamente, orientavam o comportamento
dos diferentes cooperantes no sentido da aprendizagem de conhecimentos
integrados, opondo-se à separação entre trabalho
manual e intelectual e à descontinuidade espacio-temporal entre
os momentos de aprender e os de trabalhar.
Para
os anarquistas e sindicalistas revolucionários que aspiravam
libertar as massas trabalhadoras da exploração e a opressão
exercida pelo Estado e a burguesia, ao criarem uma cooperativa estruturada
em princípios e práticas autogestionárias e libertárias,
significava criar as condições básicas para educá-las,
de forma a extinguir essa realidade negativa e desenvolveram a sua
luta no sentido da revolução social. Estava-se, portanto,
a desenvolver uma experiência autogestionária em que
as massas trabalhadoras tinham um espaço de manobra estratégica
para dinamizarem um projecto educacional e pedagógico de características
populares.
A
liberdade, a criatividade e a espontaneidade existentes entre alunos,
professores e restantes cooperantes ao permitirem uma aprendizagem
de conhecimentos numa perspectiva integral, desenvolviam profecientemente
o intelecto, o físico e a moral das crianças. Em termos
pedagógicos acentuava-se a autonomia e a liberdade das crianças,
privilegiava-se o estudo das diferentes ciências numa perspectiva
racionalista e prescindia-se da classificação dos alunos
em moldes hierarquizados. A cooeducação fundamentava-se
numa base igualitária nas relações sociais estabelecidas
entre rapazes e raparigas. Na medida em que esta experiência
decorria, em grande parte, das capacidades e possibilidades humanas
e financeiras de Sebastien Faure e do sindicalismo revolucionário
francês da época, com a crise social e económica
proveniente das mazelas da primeira guerra mundial, A Colmeia teve
que fechar as suas portas em princípios de 1917.
Francisco
Ferrer foi sem dúvida alguma uma figura proeminente no domínio
da luta por uma educação e pedagogia de essência
libertária. Através da sua acção persistente
criou um modelo de Escola Moderna que teve grandes repercussões
históricas na Espanha e, em menor grau, noutras partes do mundo:
Brasil, Portugal, Suissa, Holanda, etc. Com intenções
explícitas de lutar contra a ignorância e o analfabetismo
endémico que perpassava a Espanha, Francisco Ferrer ao desenvolver
a sua perspectiva racionalista e laica de ensino, depressa encontrou
grandes resistências e oposição por parte da Igreja
Católica que tinha uma influência clerical hegemónica
sobre o sistema educacional e pedagógico espanhol.
Propriamente
dito, a experiência da Escola Moderna teve o seu início,
em Barcelona, no ano de 1904, e generalizou-se de seguida em outros
locais na Espanha. Para além de seguir alguns dos passos educacionais
e pedagógicos que Paul Robin tinha já desenvolvido em
Cempuis, a estratégia e os objectivos da Escola Moderna enquadravam-se
num regime de coeducação de crianças,com rapazes
e raparigas em situação de igualdade , e na alfabetização
de adultos.
Sem
pôr em causa a sua essência libertária, o que singularizava,
porém, a força da acção da Escola Moderna
era o seu carácter laico e racional (17). Em uma sociedade,
como era o caso da Espanha de então, modelada espiritual e
físicamente pelo poder despótico do ensino clerical
da Igreja Católica, criar e dinamizar um projecto educacional
e pedagógico libertário por todas as regiões
de Espanha, revelava-se, no mínimo, um perigo e uma afronta
para todos os poderes instituídos: Estado, burguesia e Igreja.
No fundo, era um tipo de escola que procurava fazer da educação
e da pedagogia um instrumento de desenvolvimento humano das crianças
e dos adultos numa perspectiva racionalista e ateia e simultaneamente
criar as bases emancipalistas das classes trabalhadoras e do povo
em geral.
Pelos
constrangimentos em que decorria, a integração da educação
moral e física não atingiram o mesmo nível de
desenvolvimento das experências que ocorreram em Cempuis e Rambouillet.
Deverá, ainda, sublinhar-se que os seus objectivos de educação
popular foram custeados pelos pais dos alunos e/ou pelos próprios
alunos adultos, mas sempre em função das suas capacidades
financeiras específicas.
Com
o fusilamento de Francisco Ferrer em 1909, em Barcelona, sob as ordens
de Afonso XIII, a experiência libertária da Escola Moderna
sofreu um rude golpe nas suas aspirações de expansão.
Após esse acontecimento trágico, o projecto de Francisco
Ferrer foi-se desintegrando progressivamente. Porém, isso não
impediu que a sua força simbólica no campo das experiências
pedagógicas e educacionais libertárias deixasse rastos
para sempre no imaginário colectivo anarquista, quer em Espanha,
quer no resto do Mundo.
A
revolução espanhola, de 1936-1939, revelou-se uma experiência
no campo pedagógico e educacional libertário que não
podemos desprezar. Em primeiro lugar, porque ela foi realizada no
quadro das contingências de uma transformação
radical da sociedade capitalista espanhola. Em segundo lugar, porque
os constrangimentos e os condicionalismos da sociedade global em relação
ao funcionamento interno das instituições escolares
eram menos relevantes.
O
projecto educacional e pedagógico apresentado pela CNT (Confederação
Nacional do Trabalho) no Congresso de Saragoza, em Maio de 1936, é
bastante elucidativo a esse respeito. É certo que o projecto
educacional e pedagógico consubstanciado na Escola Nova Unificada
só foi implementado após o início da revolução
espanhola, em Julho de 1936, e, em grande medida, não teve
os efeitos práticos que o Congreso de Saragossa pretendia.
Isso, porém, não invalida que, na região da Catalunha
e outras regiões onde a CNT tinha uma certa influência,
fosse implementado um processo de aprendizagem de conhecimentos pautado
pela força estruturante da liberdade, da criatividade e espontaneidade
dos alunos, professores e restantes pessoas que estavam integrados
no projecto autogestionário de educação e pedagogia
libertária (18).
O
insucesso relativo desta experiência, em grande medida, deve-se
ao epílogo da revolução espanhola em 1939 e também
porque o funcionamento quotidiano da Escola Nova Unificada foi perpassado
por um conjunto de contradições e conflitos resultantes
das alianças realizadas pela CNT com os diferentes sindicatos
que estavam sob tutela dos partidos socialista, comunista e republicano.
Mesmo
sabendo que existiram e existem um conjunto de experiências
libertárias no campo da educação e da pedagogia,
pelas diferentes partes do planeta, não gostaria porém
de fazer uma pequena referência a alguns exemplos que se enquadram,
de certo modo, nas suas virtualidades. Refiro-me, concretamente, às
experiências de Alexander Sutherland Neil, iniciada em 1921,
Summerhill (Inglaterra) (19), às Comunidades Escolares de Hamburgo
(20), iniciadas em 1919 na Alemanha, durante a vigência da Republica
de Weimar e, finalmente, ao projecto educacional e pedagógico
desenvolvido pelo Colectivo Paideia em Mérida (Espanha) desde
há vários anos (21).
Não
obstante saber das diferenças subsitentes entre essas experiências
que foram objecto de análise, todas elas, no entanto, procuraram
e procuram extinguir ou superar os factores que estão na base
dos constrangimentos e na negação da emergência
de um projecto educacional e pedagógico fundamentado na liberdade,
espontaneidade, criatividade e responsabilidade dos indivíduos,
sem que para tal haja necessidade de amos ou senhores ou de qualquer
poder ou autoridade exteriores a esse projecto.
4.
Actualidade da pedagogia autoritária e hipóteses históricas
para a pedagogia libertária
Como
enunciei no início do texto, a pedagogia e a educação
são impossíveis de separar mecanicamente do contexto
global de que fazem parte e onde ocorrem: a sociedade global. Este
carácter de interdependência e de complementaridade sistemática
entre as diferentes realidades permite-nos compreender e interpretar,
com maior rigor e verdade, os conteúdos e formas que a pedagogia
e a educação autoritária capitalista assume,
nos nossos dias, na Europa ocidental. Se fizermos da instituição
escolar o nosso objecto de observação científico,
somos constrangidos, inevitavelmente, a analisar três aspectos
essenciais: 1) que tipo de ensino é ministrado pelas instituições
escolares?; 2) que relações sociais e tipologias interactivas
emergem no quadro do funcionamento interno das instituições
escolares?; 3) que tipos de articulações e adaptações
existem entre a instituição escolar, o Estado, o mercado,
empresas e outras instituições que fazem parte da sociedade?
Asim
quando, hoje, tentamos descortinar o tipo de ensino que é ministrado
pelas diferentes instituições escolares, torna-se, quase
impossível, analisá-lo exclusivamente como expressão
genuina dos interesses e necessidades dos indivíduos e grupos
que o asssimilam, nem conseguimos vivê-lo e pensá-lo
como algo neutral ou abstracto. Na generalidade dos casos, o tipo
de ensino ministrado reflecte as necessidades de desenvolvimento cultural
dos indivíduos que compõem uma dada sociedade e, por
outro lado, serve de padrão de instrução e de
veiculação de saberes múltiplos que se adequam
à produção e reprodução da sociedade
em que o mesmo se insere. Em face desta realidade, existe um tipo
de educação que tem por função o desenvolvimento
pessoal e social dos indivíduos e, por outro lado, a função
de aprendizagem sócio-cultural, polí;tica e económica
no quadro de uma sociedade específica.
No
entanto, quando nos reportamos à esssência racional e
instrumental da educação relacionada com um tipo de
ensino que é ministrado nas escolas, liceus e universidades
dos países capitalistas desenvolvidos da Europa ocidental,
depressa nos apercebemos que estamos a referenciar uma educação
bem específica. Nesta óptica, o que persiste como modelo
educacional está basicamente identificado como o desenvolvimento
dos indivíduos nos domínios sócio-profissional,
do poder, do "status", da propriedade e da apropriação
e usufruto de bens e serviços sob as mais variadas formas.
O ensino nos seus diferentes graus hierarquiza e legitima institucionalmente
todos os indivíduos que se integrarão numa função
de saber em determinado grupo sócio-profissional, ao mesmo
tempo que isso lhes possibilita uma contrapartida do exercício
desse saber corporizado num sistema de recompensas políticas,
sociais, económicas e culturais. Por essa via podem mobilizar-se
e integrar-se na escala hierárquica da estratificação
social da sociedade .
Esta
identidade racional-instrumental, que existe entre o tipo de ensino
ministrado x=saber do indíduo x=profissão x= lugar na
escala da estratificação social x, está, no entanto,
a sofrer uma grande transformação. Nem o tipo de ensino
coincide exactamente com as necessidades funcionais e de regulação
do mercado, do Estado e da sociedade em geral, como inclusivé
o que se aprende nas escolas, liceus e universidades não se
identifica com a maioria das expectativas racionais e instrumentais
dos indivíduos nos múltiplos domínios da sua
articulação com vida de todos os dias na sociedade.
Não funcionando plenamente este tipo de ensino racional-instrumental,
assiste-se ao desenvolvimento de fenómenos que originam a desintegração
social .
A
desedequacção persiste com cerca de 30 milhões
de desempregados na Comunidade Económica Europeia que, entretanto,
tinham sido alfabetizados pelo sistema escolar mas não encontraram
aplicabilidade prática no mundo do mercado do trabalho .
Esta
tendência do modelo educacional autoritário capitalista
demonstra-nos que nem o Estado, nem o mercado, nem a sociedade capitalista
conseguem socializar e regular com a eficácia requerida o tipo
de ensino que é dinamizado pelas diferentes instituições
escolares públicas e privadas. Estas, em contrapartida, são,
cada vez mais, meros reservatórios para estruturar a integração
social de indivíduos marginalizados e desocupados. Mais do
que ministrar um tipo de ensino para promover e desenvolver culturalmente
os indivíduos, trata-se antes de socializar e controlar indivíduos
em espaços fechados, durante um certo número de horas,
de forma a impedir que se tornam agentes de marginalidade e de desintegração
social.
Para
agravar a disfuncionalidade da racionalidade instrumental da educação
autoritária capitalista, com a emergência de novos desafios
ao sistema educacional vigente impostos pelas novas tecnologias, a
crise ambiental, a pressão demográfica, a marginalidade
social e a desintegração social, etc., assiste-se à
exigência de novos conhecimentos cujas linguagens complexas
e sofisticadas são muito difíceis de descodificar. Os
múltiplos saberes que estão correlacionados com essas
novas exigências de conhecimento humano são, no entanto,
paradoxais para o sistema educacional autoritário capitalista.
Isso ocorre porque, em grande medida, muitas das manifestações
críticas que a sociedade capitalista atravessa são o
resultado lógico da aplicabilidade concreta da educacção
racional-instrumental subsistente. Nas circunstâncias, dinamizar
novos conhecimentos ao ser humano de forma a superar a actual crise
corporizada no ambiente, marginalidade social, desintegração
social e pressão demográfica, etc., revela-se paradoxal,
já que foi o processo de aculturação racional-instrumental
dos indivíduos que está na base dessa crise.
A
partir do momento que nos situamos na análise da educação
e da pedagogia, estamos, quase sempre, a compreender e interpretar
as instituições escolares na lógica do seu funcionamento
interno. Em termos sócio-culturais e políticos, essa
realidade interna é fundamentalmente um espaço de interacção
social e de significados simbólicos para os professores, alunos
e funcionários. É uma realidade atravessada por uma
intervenção social de significados simbólicos
que se consubstancia em tipologias interactivas e relações
sociais padronizadas que põem em acção, jogos
e formas de poder, atitudes, valores e conflitos diferenciados.
Desse
contexto emergem relações sociais padronizadas que são
legitimadas institucionalmente pela sociedade e o Estado em que as
instituições escolares operam. Os valores e as ideologias
da sociedade traduzem-se, por outro lado, em normas e regras prescritivas
que orientam e sancionam um comportamento humano padronizado de todos
aqueles que integram as instituições escolares. Desse
modo, toda a pedagogia e a educação é objecto
de uma socialização traduzida em papéis e funções
específicas do professor, do aluno e do funcionário
que foram, na ocorrência, legitimados e formalizados previamente
pelas instituições tutelares do Estado e da sociedade.
Há, portanto, níveis hierárquicos de autoridade
formal que determinam à partida quem pode e deve exercer o
poder dentro da instituição escolar. As tarefas e funções
do professor, a partir do momento que obedecem a uma lógica
normativa e prescritiva, leva a que o seu papel se traduza numa função
de discricionaridade pedagógica e educacional de tipo autoritário
nas relações que têm com oa alunos. Embora inscritos
num outro plano relacional, o mesmo poderemos afirmar em relação
aos papéis que decorrem da autoridade formal dos quadros administrativos
superiores, os professores e os funcionários subalternos das
instituições escolares. Mesmo sendo relações
sociais vinculadas por diferenças de estatutio sócio-profissional,
entre os vários grupos subsistem modalidades de acção
e de intervenção mediatizadas pela autoridade hierárquica
formal legitimada pela instituição escolar.
As
relações sociais entre alunos e funcionários
também passam por mecanismos relacionais de poder. É
no poder de decisão burocrático-administrativo que se
observa expressivamente o poder dos funcionários sobre os alunos
e, muitas vezes, sobre os próprios professores. As relações
de poder entre professores, alunos e funcionários, na medida
em que são atravessados por fenómenos de dominação,
geram um conjunto de conflitos quando os processos comunicacionais
e de decisão relacionados com a aprendizagem de conhecimentos
ocorrem nas instituições escolares. É evidente
que o exercício do poder formal legitima um tipo de autoridade
que se manifesta na aplicação de uma pedagogia autoritária.
A codificação e a descodificação das linguagens
inerentes aos múltiplos saberes veiculados pelos professores,
e que são objecto de percepção por parte dos
alunos, não permitem que as potencialidades cognitivas e físicas
dos alunos se exprimam num clima de liberdade, criatividade, espontaneidade
e responsabilidade. Por outro lado, a emergência de fenómenos
de contestação e de avaliação do conteúdo
e formas das mensagens transmitidas pelo professor dificilmente ocorrerão
porque não lhes é permitido reequacionar ou sequer reformular
erros ou distorsões durante o processo de aprendizagem de conhecimentos.
A
força constrangedora da autoridade formal do professor observa-se
também nas atitudes e valores que veiculam. Nestes aspectos,
a função do professor resume-se a ministrar uma educação
que decorre e é prescrita por um conjunto de ideias, crenças
e valores institucionalizados pelo Estado e a sociedade. Os múltiplos
saberes veiculados pelo sistema educacional são orientados
por um conjunto de ideologias e valores dominantes que se traduzem
em atitudes inquestionáveis e intransigentes por parte do professor
em relação a qualquer constestação ou
interrogação dos alunos sobre o conteúdo e as
formas como as matérias são ministradas.
Os
fenómenos de reacção contra esta pedagogia autoritária
capitalista implicou a emergência de conflitos intragrupais
e intergrupais e, logicamente, o aparecimento de grupos informais
nas instituições escolares. Esses grupos embora não
sejam legitimados pela estrutura da autoridade formal das escolas,
vão, no entanto, buscar a sua razão de ser a opções
de acção colectiva confinadas a interesses especificos
e a reivindicações junto daqueles que detêm a
autoridade e o poder formal. Professores, alunos e funcionários
podem, desse modo, interagir num sentido de exercício de uma
autoridade e poder que é legitimado pela forma como se estabelecem
as relações de poder entre as estruturas formais e informais
e a força estruturante das relações sociais de
tipo informal em relação às relações
sociais de tipo formal nas instituições escolares.
Depreendemos
as razões da emergência de conflitos e de relações
sociais de tipo informal como formas de reacção e de
adaptação ao funcionamento interno das instituições
escolares baseadas numa pedagogia e educação autoritária.
Pelo facto de nunca questionarem essa realidade negativa em profundidade,
não admira que ao longo da história, e mais recentemente,
tenham surgido um conjunto de pedagogias com a finalidade de superar
as contradições da pedagogia autoritária capitalista.
A antipedagogia, a pedagogia institucional, a pedagogia terapêutica
e a dinâmica de grupo, entre outras, como pedagogias inovadoras,
até agora, mais não têm feito do que tentar aperfeiçoar
essa pedagogia e essa educação, sem todavia pôrem
em causa a sua essência autoritária e opressiva e a própria
sociedade e Estado que lhes dão corpo e forma (22).
Em
presença das diferentes tendências que estruturam as
sociedades capitalistas desenvolvidas da Europa ocidental, denota-se
que o processo de aculturação dos indivíduos,
com a emergência histórica das novas tecnologias no campo
da informática, electrónica, rádio, televisão,
rádio e imprensa, foi drasticamente modificado. A aprendizagem
de conhecimentos e da cultura em geral pulverizou-se e estrutura-se
numa polivalência funcional que não é mais passível
de organizar e institucionalizar nos estritos limites e fronteiras
das instituições escolares clássicas.
As
capacidades e possibilidades de transmitir informação
é gigantesca e os processos de inovação no que
toca a aprendizagem de conhecimentos modificou-se substancialmente.
O processo de aculturação dos indivíduos num
sentido mais global, por esta via, vai também ser objecto de
grandes mudanças, na medida em que o conteúdo e as formas
de codificação e descodificação das linguagens
deixam de ser personificados por linguagens corporizadas em observações
e comunicações humanas directas e passam a ser mediatizadas
por artefactos tecnológicos sofisticados, o que subverte os
processos cognitivos de aprendizagem de conhecimentos nos planos educacional
e pedagógico.
A
mediação funcional dos novos meios de comunicação
que podem ser objecto de utilização no acesso à
informação e ao conhecimento relacionado com os múltiplos
saberes potenciou e transformou as capacidades e possibilidades relacionais
dos indivíduos a todos níveis: gestão e controlo
das mensagens recebidas e emitidas; velocidade e distâncias
espacio-temporais e seus significados simbólicos através
das mensagens recebidas e emitidas; heterogeneidade e sínteses
sócio-culturais das mensagens transmitidas; mudanças
no processo de percepção cognitiva e adaptações
diferenciadas do corpo e da mente humana, etc.
Em
função destas tendências, o processo de aculturação
dos indivíduos ultrapassou as fronteiras do quadro institucional
e funcional das instituições escolares clássicas
e transformam as próprias funções de controlo
e de regulação do Estado e do mercado em relação
ao fenómeno pedagógico e educacional. As tendências
actuais constrangem ao aparecimento de novas instituições
e organizações, cuja função crucial consiste
em protagonizar uma difusão importante do conhecimento racional-instrumental
autoritário capitalista: televisão, imprensa, rádio,
empresas de formação, instituições e organizações
de produção e difusão cultural, de lazer, etc.
Este facto, leva a que as relações e as interacções
sociais ligadas aos fenómenos educacional e pedagógico
reestruturem o poder e a autoridade daqueles que ensinam e daqueles
que são ensinados. As relações clássicas
polares professor/aluno, embora ainda sejam importantes, vão
sendo progressivamente substituidas por relações multipolares
inscritas em códigos de linguagens com significados diferenciados
e múltiplas qualificações sócio-profissionais.
Em
presença deste quadro tendencial da pedagogia e educação
autoritária capitalista, as hipóteses históricas
de uma perspectiva libertária são sempre passíveis
de equacionar a duas dimensões:
1)como
função integrada numa sociedade hipoteticamente anarquista
e; 2) como hipótese de desenvolvimento de experiências
radicais no próprio contexto da evolução da sociedade
capitalista. Pela sua natureza tendencial e virtualidades reais, interessa-nos
mais construir as alternativas mais credíveis a partir da segunda
dimensão.
Nestes
termos, em primeiro lugar, as virtualidades da pedagogia e da educação
libertária têm um valor simbólico no imaginário
colectivo dos seres humanos que em si próprio, é inquestionável
em qualquer tipo de sociedade. Como escolha radical, ao alicerçar
uma sociedade baseada num processo de aculturação dos
indivíduos, tendo como base os pressupostos da liberdade, espontaneidade,
criatividade e responsabilidade humana, sempre houve e haverá
pessoas que vão integrar acções individuais e
colectivas que se inscreverão numa luta pela emancipação
social e individual em termos integrados e autogestionários.
Em
segundo lugar, as próprias contradições e condicionalismos
da pedagogia e educação autoritária capitalista
tendem a evoluir para uma desintegração social, cuja
crise assumirá proporções inauditas. As contingências
e constrangimentos dessa crise levarão a uma necessidade de
encontrar soluções credíveis para a sua superação.
Em confronto com as múltiplas alternativas pedagógicas
e educacionais de características autoritárias e mesmo
daquelas que se inscrevam em pressupostos de não-directividade
e na dinâmica de grupo, a pedagogia e a educação
libertária tem grandes possibilidades, porque as outras têm
extrema dificuldade em superar a crise do modelo educacional e pedagógico
vigente. Ora, neste domínio, pela originalidade que personifica
nos domínios da auto-reflexão e da auto-organização,
a perspectiva libertária pode ser estruturada com viabilidade
em contextos autogestionários e cooperativos, desde que tenha
em atenção os fenómenos de adaptação
e de reacção impostos pelas outras realidades institucionais
e organizacionais escolares e pela própria sociedade global.
Finalmente,
o projecto educacional e pedagógico libertário pode
ser visto como uma base de alternativa mais ampla face à realidade
de anomia e de desintegração social que subsiste na
articulação das comunidades locais e regionais com os
sistemas de representatividade formal corporizadas na centralização
e burocratização do Estado, nos grandes aglomerados
urbanos e na própria sociedade. Enquanto projecto de vida autogestionário
e comunitário integrado, a possibilidade de construir projectos
educacionais e pedagógicos numa perspectiva libertária
nos espaços comunidades locais e regionais, seria sem dúvida
um bom antídoto para começar a superar as contradições
e antagonismos que persistem no modelo educacional e pedagógia
autoritário capitalista.
*
José Maria Carvalho Ferreira Professor do ISEG-Universidade
Técnica de Lisboa
NOTAS
E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1)
PAROZ, Jules, História universal da pedagogia, Porto, Livraria
Figueirinhas -Editora, 1908.
(2)
PAROZ, Jules, ob. cit., pp. 124-125.
(3)
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