JOÃO MADEIRA
A educação, apesar da perda de espaços preciosos
na sociedade, tem logrado manter alguma respeitabilidade em meio ao
conjunto de transformações típicas do atual quadro
que, por falta de um termo mais preciso, chamamos de pós modernidade.
Nesse jogo de marchas e contramarchas muito se tem dito sobre os caminhos
que devem ser determinados para o pleno exercício do magistério.
Mas, além das grandes mudanças da história, devemos
atentar para as permanências mentais que assaltam não
apenas os professores mas um conjunto significativo de profissionais
de diversas áreas. Permanências que, definidas por expectativas
de condição social, passam a conduzir os princípios
e as categorias de enquadramento da "essência filosófica"
de cada profissão. No caso específico da educação
esse fenômeno encontra especial expressão, nas atitudes,
certezas e paradigmas do conjunto do magistério. Não
raro, os professores acabam por confundir o propósito absoluto
da educação com as suas preferências de classe,
o que, de forma nenhuma, deveria submeter a realidade do aluno ao
seus modelos de conduta. Conduta esta, muito mais determinada por
exemplos oriundos do mundo que insistem em afirmar querer destruir,
mas que, inversamente, afirmam com suas distopias românticas.
A mudança social pela educação se faz pela transformação
do aluno em um ser autônomo. E, autonomia é determinar
para o discente a medida exata da sua responsabilidade a partir de
seus atos. O papel do professor se esgota no puro esforço de
autonomizar atitudes e comportamentos. Habilitar o aluno, através
do conhecimento, a interpretar criticamente o seu mundo não
significa tornar-se parceiro ou co-responsável de suas atitudes.
Somente uma educação obsessiva reduz os revezes do
ofício de ensinar, mesmo no compartilhamento da culpa da má
ação do educando, à incapacidade ou ineficiência
do professor. As expectativas frustradas do educador diante do "mau
ato" do aluno revela sua imagem refletida em um espelho quebrado.
A multifacetada superfície do reflexão destruído
pode revelar a incapacidade do educador em lidar com a realidade objetiva
que o cerca. Incompreendido, o criador passa a admirar sua retalhada
criatura e, na maior parte das vezes, buscar em si mesmo os germes
do fracasso.
Questionamento vão, pois na verdade o que aí se verifica
é a estreiteza da visão do mundo de tão "martirizado"
professor. Imerso em um imenso e complexo cabedal de erudição,
fundamentado em alfarrábios e certezas tão caras a ele
mesmo, que o impedem de vislumbrar as implicações e
conseqüências da vida em um mundo "real", ele,
nesse contesto, percebe a singularidades e diferenças de classe,
as experiências psicológicas individuais, a complexa
rede que determina a personalidade, e tudo o mais através da
lupa fria e determinada de convicções quiméricas
idealizadas.
O senso comum acadêmico mostra aí seu mais fiel parceiro
ativo. A formação do professor finalmente cumpriu sua
sagrada missão, isolou-o das contradições de
classe, dos problemas de uma sociedade cada vez mais complexa e, por
fim, criou um espaço no qual o profissional pode finalmente
desenvolver, com relativo reconhecimento de seus pares, a "nobre
arte" da lamentação.
A perspectiva de uma educação regeneradora já
possui há muito tempo profundas raízes na nossa cultura
acadêmica, mas está longe o dia de se esgotarem os males
de seu deletério efeito. Até mesmo alguns comemorados
nichos de cultura, ou mesmo o mercado editorial de livros, podem,
e quase sempre o são, uma das formas de se levar à frente
essa luta "inglória" dos mais sinceros contendores
da educação. Arena que, abstraindo as vaidades, possibilita,
no mais das vezes, a perpetuação de velhos entendimentos
e concepções. Ensejando uma autolegitimadora catarse
que sempre soa, aos mais críticos, como "variações
de um mesmo tema".
Assim a laicização, mesmo a mais retrógrada
e iluminista, ainda tarda muito a acontecer na educação.
Muitos professores acreditam pensar de forma "livre", mas
a mecânica das suas premissas funciona na mesma sintonia da
catequese que objetiva a conversão do gentio. Entendem, mesmo
que inconscientemente, o espaço físico da instituição
como um abrigo seguro do caótico mundo exterior. Os limites
da escola assim ganham autoridade moral semelhante àquela atribuída
no passado aos muros de um monastério e, por associação,
os mestres e professores recebem, nesse espaço de significação,
missão semelhante à dos monges ou presbíteros.
Fica fácil assim exigir do professor o mesmo princípio
que determinou a lógica de funcionamento das instituições
religiosas, a mesma hipocrisia e a mesma incongruência entre
a observação do mundo real e as necessidades da sociedade
"pura e ideal". Não é raro percebermos ainda
nos corredores das escolas as mesmas discussões beneditinas
sobre a subversão do riso ou mesmo comentários depreciativos
em relação ao "turbulento" comportamento provocado
pela exuberância da libido adolescente.
Muitos agem como se os portões da escola ao permitirem a entrada
dos "alunos seminaristas", tivessem a propriedade de banhá-los
em algum tipo de bálsamo telúrico e moralizador, eliminando
das suas formações toda as contradições
do "mundo profano" que os guiou até então.
Nesse sentido as "almas incultas" e os "saberes atrasados"
devem encontrar no interior do referido espaço educacional
o seu justo lugar de expiação. Seja pela punição
direta ou pela indução ao autoflagelo, inculcado pela
instituição da culpa, o aluno deve ser encaminhado ao
mundo do "sagrado". Dessa forma circulamos pela superfície
dos problemas mais candentes da educação, sem maiores
prejuízos para a ordem vigente. Imbuídos de uma missão
moral sobra pouco espaço para uma discussão mais radical
do processo de ensino. Os efeitos de tal fenômeno podem ,ser
verificados em grande parte da produção teórica
escrita para formar educadores; produção teórica
esta comprometida com a mesma lógica do modelo judaico - cristão,
servindo de correia de transmissão de valores, respaldando
as "grades invisíveis." da cultura clerical e demonstrando
com maior evidência a sua vigência também nos domínios
"laicos" da escola.
Devemos entender essa realidade como desafio e não como contingência
ou mesmo destino na nossa prática pedagógica. É
preciso identificar dentro da nossa discussão filosófica
os eixos que ainda nos prendem àquilo que, ao menos em tese,
buscamos transformar. Torna-se fundamental definir de que lado estamos
e o que efetivamente pretendemos combater. É inviável,
ao menos para um projeto sério de ruptura com o passado, continuarmos
utilizando o velho vocabulário para reivindicar coisas novas.
Para tanto devemos imprimir à nossa seriedade um sabor distinto
ao da sisudez de espírito e, à nossa investigação,
a busca de alternativas genuinamente autônomas.
A transformação não pode homenagear velhos cânones
e muito menos travesti-los com retórica pseudovanguardista.
Se os tempos clamam por mudanças, que elas sejam a necessidade
de uma nova ordem que crie a si mesma por compromissos com o presente,
desvinculada de núcleos de significação que cristalizados
no tempo só possibilitaram a manutenção de privilégios.
Para podermos provar nossa sincera vontade de ruptura é necessário
que em nossos discursos não se verifiquem os germes dos corporativismos,
situação incompatível com o vislumbre de qualquer
real independência. É necessário também
atentar para o perigo de uma autocrítica ancorada na culpa,
autopiedade e desolamento profissional agudo, pois estes sentimento,
ou mesmo a exibição pública de nossas "chagas",
pode servir de elemento retórico, por parte de governos e tecnocratas,
para justificar reformas extremamente conservadoras. Corremos o risco,
além de tudo, de fazermos parte de uma peça processual
de nossa própria condenação, pelo chamado poder
público, ou seja, podemos servir de testemunha e réu
simultaneamente em um tribunal que venha nos desqualificar profissionalmente.
Assim, sem maiores considerações, evocamos como imagem
elucidativa o Filósofo alemão F. Nietzsche quando este
vaticina, ao se referir às lamentações presentes
na cultura judaico - cristã, que "Deus está morto;
a sua piedade pelos homens o matou". A provocativa sentença
de Nietzsche resume em grande parte muito do que constitui o cerne
da nossa filosofia de educação, assim sendo, podemos
afirmar que a ética, entendida como costume, tão valorizada
na retórica, só poderá passar a definir ou guiar
comportamentos na medida em que na construção de nossas
utopias não fizermos mais distinção entre teoria
e prática, e desejo e ação.
Revista Letralivre #31