Prof.
Dr. Sílvio Gallo
Artigo
publicado em Nuances - Revista do Curso de Pedagogia,
Presidente Prudente: FCT UNESP, nº 2, 1996
O
Anarquismo vem sendo recuperado, pelo menos ao nível das pesquisas
acadêmicas, como uma filosofia política; tal recuperação
ganhou mais razão de ser com a propalada "crise dos paradigmas"
nas ciências sociais, intensificada com os acontecimentos políticos
nos países do leste europeu e na ex-União Soviética,
com a queda do socialismo real. Ante a falta de referenciais sólidos
para uma análise política da realidade cotidiana, o
Anarquismo volta à cena.
Quando
estudamos o Anarquismo, porém, vemos que seria muito mais correto
falarmos em Anarquismos, e não seriam poucos... Como, então,
falarmos em um paradigma anarquista? Muito rapidamente,
gostaria de demonstrar aqui que considerar o Anarquismo uma doutrina
política é um sério problema, tanto prática
quanto conceitualmente. Dada a diversidade de perspectivas assumidas
pelos diversos teóricos e militantes do movimento anarquista
histórico, seria impossível agrupá-las todas
numa única doutrina; por outro lado, a força do Anarquismo
estaria justamente no fato de não caber a ele a solidificação
de princípios que impõe a constituição
de uma doutrina. Se ele pode ser uma teoria política aglutinadora
de largas parcelas do movimento operário europeu no século
passado e se pode ser também uma teoria política que
permite a análise dos fatos sociais contemporâneos é
justamente porque não se constitui numa doutrina.
O
PARADIGMA ANARQUISTA
Para
que entendamos a real dimensão da filosofia política
do anarquismo, é necessário que o entendamos como constituído
por uma atitude, a de negação de toda e qualquer
autoridade e a afirmação da liberdade. O próprio
ato de transformar essa atitude radical em um corpo de idéias
abstratas, eternas e válidas em qualquer situação
seria a negação do princípio básico da
liberdade. Admitir o Anarquismo como uma doutrina política
é provocar o seu sepultamento, é negar sua principal
força, a afirmação da liberdade e a negação
radical da dominação e da exploração.
Devemos,
assim, considerar o anarquismo como um princípio
gerador, uma atitude básica que pode e deve assumir
as mais diversas características particulares de acordo com
as condições sociais e históricas às quais
é submetido. O princípio gerador
anarquista é formado por quatro princípios básicos
de teoria e de ação: autonomia individual, autogestão
social, internacionalismo e ação direta. Vejamos brevemente
cada um deles.
Autonomia
individual: o socialismo libertário vê no indivíduo
a célula fundamental de qualquer grupo ou associação,
elemento esse que não pode ser preterido em nome do grupo.
A relação indivíduo/sociedade, no Anarquismo,
é essencialmente dialética: o indivíduo, enquanto
pessoa humana, só existe se pertencente a um grupo social -
a idéia de um homem isolado da sociedade é absurda -;
a sociedade, por sua vez, só existe enquanto agrupamento de
indivíduos que, ao constituí-la, não perdem sua
condição de indivíduos autônomos, mas a
constroem. A própria idéia de indivíduo só
é possível enquanto constituinte de uma sociedade. A
ação anarquista é essencialmente social, mas
baseada em cada um dos indivíduos que compõem a sociedade,
e voltada para cada um deles.
Autogestão
social: em decorrência do princípio de liberdade
individual, o Anarquismo é contrário a todo e qualquer
poder institucionalizado, contra qualquer autoridade e hierarquização
e qualquer forma de associação assim constituída.
Para os anarquistas a gestão da sociedade deve ser direta,
fruto dela própria, o que ficou conhecido como autogestão.
Radicalmente contrários à democracia representativa,
onde determinado número de representantes é eleito para
agir em nome da população, os libertários propõem
uma democracia participativa, onde cada pessoa participe ativamente
dos destinos políticos de sua comunidade.
Internacionalismo:
a constituição dos Estados-nação europeus
foi um empreendimento político ligado à ascensão
e consolidação do capitalismo, sendo, portanto, expressão
de um processo de dominação e exploração;
para os anarquistas, é inconcebível que uma luta política
pela emancipação dos trabalhadores e pela construção
de uma sociedade libertária possa se restringir a uma ou a
algumas dessas unidades geopolíticas às quais chamamos
países. Daí a defesa de um internacionalismo da revolução,
que só teria sentido se fosse globalizada.
Ação
direta: a tática de luta anarquista é
a da ação direta; as massas devem construir a revolução
e gerir o processo como obra delas próprias. A ação
direta anarquista traduz-se principalmente nas atividades de propaganda
e educação, destinadas a despertar nas massas a consciência
das contradições sociais a que estão submetidas,
fazendo com que o desejo e a consciência da necessidade da revolução
surja em cada um dos indivíduos. Pode-se dizer que a principal
fonte da ação direta foi a da propaganda, através
dos jornais e revistas, assim como da literatura e do teatro. Outro
veio importante foi o da educação, propriamente dita
- formal ou informal - como veremos adiante.
Tomando
o Anarquismo como princípio gerador,
ancorado nesses quatro princípios básicos, podemos falar
nele como um paradigma de análise
político-social, pois existiria assim um único Anarquismo
que assumiria diferentes formas e facetas de interpretação
da realidade e de ação de acordo com o momento e as
condições históricas em que fosse aplicado. É
nesse sentido que trataremos, aqui, da aplicação do
paradigma anarquista à teoria da educação.
A
EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
Os
anarquistas sempre deram muita importância à questão
da educação ao tratar do problema da transformação
social: não apenas à educação dita formal,
aquela oferecida nas escolas, mas também àquela dita
informal, realizada pelo conjunto social e daí sua
ação cultural através do teatro, da imprensa,
seus esforços de alfabetização e educação
dos trabalhadores, seja através dos sindicatos seja através
das associações operárias.
Foi
com relação à escola, porém, que vimos
os maiores desenvolvimentos teóricos e práticos no sentido
da constituição de uma educação libertária.
Os
esforços anarquistas nesta área principiam com uma crítica
à educação tradicional, oferecida pelo capitalismo,
tanto em seu aparelho estatal de educação quanto nas
instituições privadas - normalmente mantidas e geridas
por ordens religiosas. A principal acusação libertária
diz respeito ao caráter ideológico da educação:
procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzir a
estrutura da sociedade de exploração e dominação,
ensinando os alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados.
A educação assumia, assim, uma importância política
bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob
uma aparente e propalada "neutralidade".
Os
anarquistas assumem de vez tal caráter político da educação,
querendo colocá-la não mais ao serviço da manutenção
de uma ordem social, mas sim de sua transformação, denunciando
as injustiças e desmascarando os sistemas de dominação,
despertando nos indivíduos a consciência da necessidade
de uma revolução social.
Metodologicamente,
a proposta anarquista de educação vai procurar trabalhar
com o princípio de liberdade, o que abre duas vertentes
de compreensão e de ação diferenciadas: uma que
entende que a educação deve ser feita através
da liberdade e outra que considera que a educação deva
ser feita para a liberdade; em outras palavras, uma toma
a liberdade como meio, a outra como fim.
Tomar
a liberdade como meio parece-me um equívoco, pois significa
considerar, como Rousseau, que a liberdade seja uma característica
natural do indivíduo, posição já
duramente criticada por Bakunin; por outro lado, equivale também
à metodologia das pedagogias não-diretivas, alicerçadas
no velho Emílio e consolidadas nos esforços
escolanovistas, delas diferenciando-se apenas nos pressupostos políticos,
mas sem conseguir diferentes resultados práticos além
daquela suposta liberdade individualizada característica das
perspectivas liberais.
Tomar,
de outro modo, a pedagogia libertária como uma educação
que tem na liberdade o seu fim pode levar a resultados bastante diferentes.
Se a liberdade, como queria Bakunin é conquistada e construída
socialmente, a educação não pode partir dela,
mas pode chegar a ela. Metodologicamente, a liberdade deixa de ser
um princípio, o que afasta a pedagogia anarquista das pedagogias
não-diretivas; por mais estranho que possa parecer aos olhos
de alguns, a pedagogia anarquista deve partir, isso sim, do princípio
de autoridade.
A
escola não pode ser um espaço de liberdade em meio à
coerção social; sua ação seria inócua,
pois os efeitos da relação do indivíduo com as
demais instâncias sociais seria muito mais forte. Partindo do
princípio de autoridade, a escola não se afasta da sociedade,
mas insere-se nela. O fato é, porém, que uma educação
anarquista coerente com seu intento de crítica e transformação
social deve partir da autoridade não para tomá-la como
absoluta e intransponível, mas para superá-la. O processo
pedagógico de uma construção coletiva da liberdade
é um processo de des-construção paulatina da
autoridade.
Tal
processo é assumido positivamente pela pedagogia libertária
como uma atividade ideológica; posto que não há
educação neutra, posto que toda educação
fundamenta-se numa concepção de homem e numa concepção
de sociedade, trata-se de definir de qual homem e de qual sociedade
estamos falando. Como não faz sentido pensarmos no indivíduo
livre numa sociedade anarquista, trata-se de educar um homem comprometido
não com a manutenção da sociedade de exploração,
mas sim com o engajamento na luta e na construção de
uma nova sociedade. Trata-se, em outras palavras, de criar um indivíduo
"desajustado" para os padrões sociais capitalistas.
A educação libertária constitui-se, assim, numa
educação contra o Estado, alheia, portanto,
aos sistemas públicos de ensino.
O
PARADIGMA ANARQUISTA E A EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA
O
mote progressista nas discussões pedagógicas contemporâneas
é a defesa da escola pública. A atual Constituição
brasileira afirma que a educação é um "direito
do cidadão e um dever do Estado", definindo desde
o início a responsabilidade do Estado para com a educação.
Ela é, porém, um empreendimento bastante dispendioso,
como sabemos, e por certo esse interesse do Estado não pode
ser gratuito ou meramente filantrópico. A história nos
mostra que os assim chamados sistemas públicos de ensino são
bastante recentes: consolidam-se junto com as revoluções
burguesas e parecem querer contribuir para transformar o "súdito"
em "cidadão", operando a transição
política para as sociedades contemporâneas. Outro fator
importante é a criação, através de uma
educação "única", do sentimento de
nacionalidade e identidade nacional, fundamental para a constituição
do Estado-nação.
Os
anarquistas, coerentes com sua crítica ao Estado, jamais aceitaram
essa educação oferecida e gerida por ele; por um lado,
porque o Estado certamente utilizar-se-á deste veículo
de formação/informação que é a
educação para disseminar as visões sócio-políticas
que lhe são interessantes.
Nesse
ponto a pedagogia anarquista diverge de outras tendências progressistas
da educação, que procuram ver no sistema público
de ensino "brechas" que permitam uma ação
transformadora, subversiva mesmo, que vá aos poucos minando
por dentro esse sistema estatal e seus interesses. O que nos mostra
a aplicação dos princípios anarquistas a essa
análise é que existem limites muito estreitos para uma
suposta "gestão democrática" da escola pública.
Ou, para usar palavras mais fortes mas também mais precisas,
o Estado "permite" uma certa democratização
e mesmo uma ação progressista até o ponto em
que essas ações não coloquem em xeque a manutenção
de suas instituições e de seu poder; se este risco chega
a ser pressentido, o Estado não deixa de utilizar de todas
as suas armas para neutralizar as ações "subversivas".
É
por isso que, na perspectiva anarquista, a única educação
revolucionária possível é aquela que dá-se
fora do contexto definido pelo Estado, sendo esse afastamento mesmo
já uma atitude revolucionária. A proposta é que
a própria sociedade organize seu sistema de ensino, à
margem do Estado e sem a sua ingerência, definindo ela mesma como
aplicar seus recursos e fazendo a gestão direta deles, construindo
um sistema de ensino que seja o reflexo de seus interesses e desejos.
É o que os anarquistas chamam de autogestão.
CONSIDERAÇÕES À MANEIRA DE UMA CONCLUSÃO
Tomar
os princípios filosófico-políticos do Anarquismo
como referencial para pensar a educação contemporânea
é pois uma empresa de movimento; se podemos, por um lado, sistematizar
tais princípios a partir dos "clássicos" do
século passado e do início deste, traduzindo-os para
a contemporaneidade de nossos problemas, não encontramos, ainda,
um "solo firme" para nossas respostas - não no sentido
de que elas não tenham consistência, mas sim que apontam
sempre para uma realidade em construção que processa
a des-construção de nosso cotidiano.
Se
há um lugar e um sentido para uma escola anarquista hoje, esse
é o do enfrentamento; uma pedagogia libertária de fato
é incompatível com a estrutura do Estado e da sociedade
capitalista. Marx já mostrou que uma sociedade só se
transforma quando o modo de produção que a sustenta
já esgotou todas as suas possibilidades; Deleuze e Guattari
mostraram, por outro lado, que o capitalismo apresenta uma "elasticidade",
uma capacidade de alargar seu limite de possibilidades. É certo,
porém, que sua constante de elasticidade não
é infinita: para uma escola anarquista hoje trata-se, portanto,
de testar essa elasticidade, tensionando-a permanentemente, buscando
os pontos de ruptura que possibilitariam a emergência do novo,
através do desenvolvimento de consciências e atos que
busquem escapar aos limites do capitalismo.
No
aspecto da formação individual, Henri Arvon já
afirmava, em 1979, que para uma sociedade de rápidas transformações
como é a nossa, o projeto educativo anarquista parece ser o
que melhor responderia às necessidades de uma educação
de qualidade. O desenvolvimento científico-tecnológico
e especialmente as transformações geopolíticas
nesses últimos quinze anos vieram a confirmar essa necessidade
de uma educação dinâmica e autônoma, que
encontra cada vez maiores possibilidades de realização
com o suporte da informática e da multimídia. Não
podemos, entretanto, deixar que a própria perspectiva libertária
da educação seja cooptada pelo capitalismo, neutralizando
seu caráter político transformador, levando-a para um
âmbito de liberdade individual e desembocando num novo escolanovismo,
aparelhado pelas novas tecnologias. O caráter político
da pedagogia libertária deve ser constantemente reafirmado,
na tentativa de não permitir o aparecimento de uma nova massa
de excluídos, tanto do fluxo de informações quanto
das máquinas que permitem o acesso a ele.
Por
outro lado, o desenvolvimento tecnológico que leva-nos cada
vez mais rápido rumo a uma "Sociedade Informática",
para utilizarmos a expressão de Adam Schaff, define um horizonte
de possibilidades de futuro bastante interessantes; numa sociedade
que politicamente não se define mais com base nos detentores
dos meios de produção, mas sim com base naqueles que
têm acesso e controle sobre os meios de informação,
encontramos duas possibilidades básicas: a realização
de um totalitarismo absoluto baseado no controle do fluxo de informações,
como o pensado por Orwell em seu 1984 ou por Huxley em seu
Admirável Mundo Novo, ou então a realização
da antiga utopia da democracia direta, estando o fluxo de informações
autogerido pelo conjunto da sociedade. Em outras palavras, o desenvolvimento
da sociedade informática parece possibilitar-nos duas sociedades,
uma antípoda da outra: a totalitária, com o Estado absoluto,
ou a anarquista, absolutamente sem Estado; a escolha estaria fundada
obviamente numa opção política que só
seria possível através da consciência e da informação,
aparecendo então a figura da educação, formal
ou informal, no sentido de sustentar tal conscientização.
Mas
a possibilidade de trabalho que parece-me mais próxima no momento
é o pensar a filosofia da educação no contexto
do paradigma anarquista. Se tal filosofia da educação
pode servir de suporte teórico para a construção
deste projeto de educação que tem por meta a autogestão
e a verdadeira democracia que a tecnologia informática pode
finalmente tornar possível através de uma rede planetária
que imploda as fronteiras dos Estados-nação, ela pode
ainda servir-nos como ferramenta de análise e crítica
da sociedade capitalista e da educação por ela pensada,
assim como do sistema de ensino por ela constituído - a sempre
ambígua dualidade dos sistemas público e privado. No
caso específico do Brasil contemporâneo, ela pode constituir-se
num interessante referencial para a discussão e análise
dos graves problemas educacionais que enfrentamos, de uma perspectiva
bastante singular, como no caso da qualidade do ensino e da publicização/democratização
da escola, trazendo contribuições criativas diferentes
das usuais.
No
contexto da polarização da filosofia da educação
brasileira entre a tendência neo-liberal - privatizadora - sucessora
das tendências tradicional, escolanovista e tecnicista como expressão
ideológica da manutenção do sistema e uma tendência
dialética que, por sua vez, encontra-se dividida em várias
propostas de análise e tem sido - erroneamente - posta em xeque
como paradigma devido à crise do assim chamado "socialismo
real", tomada como a falência do método dialético
e o triunfo do liberalismo - novo ou velho, não importa - e a
instauração de uma "nova ordem mundial" centrada
no paradigma liberal, a tendência anarquista ou libertária
pode apresentar-se como um novo referencial para a análise, ao
mostrar, explicitamente, que , como cantou Caetano Veloso, "alguma
coisa está fora da nova ordem mundial". O que tentei aqui
foi tão somente trazê-la para a luz das discussões,
buscando sua viabilidade.
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