É
indubitável que em pleno apogeu do progresso e da razão,
a complexidade da mudança sócio-cultural, política
e económica mergulhou todas as sociedades numa crise profunda
que tende inclusive a pôr em causa a sobrevivência da espécie
humana.
Estamos, portanto, num período
histórico de paradoxos estruturados pela sofisticação
e o desenvolvimento gigantesco das capacidades e possibilidades científicas
e tecnológicas. Entre as várias manifestações
em que se corporiza essa realidade, emerge a atividade econômica
com um desenvolvimento ininterrupto das funções de produção
e de consumo de bens e serviço. Paradoxalmente, no entanto, a
riqueza produzida não se traduz numa distribuição
e apropriação equitativa pelos diferentes indivíduos,
grupos e classes sociais que constituem as diferentes sociedades. Por
outro lado, a relação do homem com a natureza tende a
agravar-se no sentido de um desequilíbrio irreversível,
destruindo progressivamente a harmonia ecossistémica que subsistia
há vários milénios.
Hoje, face à gravidade
dos problemas existentes, para além de perceber os sintomas dessa
crise, interessa-nos explicitar os factores e as condições
que se revelam mais emblemáticos para o devir da natureza e da
humanidade. Assim, quando nos debruçamos na análise do
sistema social global, deparamos, quase sempre, com uma situação
sócio-cultural que põe em risco as hipóteses de
interacção social que fundamentam os processos de sociabilidade
e de socialização dos indivíduos à escala
planetária. Para tal basta olharmos para os níveis de
pobreza e de desemprego, de marginalidade e de miséria social,
pressão demográfica, fome e guerra que persistem à
escala mundial. Simultaneamente, quando observamos as modalidades de
intervenção e de transformação do homem
nas suas relações com a natureza e o ambiente em geral,
questionamos até que ponto ainda nos é possível
sobreviver no planeta Terra.
Cientistas e políticos
são pródigos em interpretações que indiciam
que caminhamos para o abismo, caso nos mantenhamos com o mesmo modelo
de desenvolvimento económico e social (ROBIN, 1977). Essas hipóteses
são de tal modo negativas que, face à impotência
das soluções racionais-instrumentais da sociedade capitalista
para inverter essa evolução, revela-se cada vez mais banal
a função utilitária das alternativas ecologistas
até há pouco tempo consideradas utópicas pelo mercado
e o poder normativo vigente. Tendo presente essa realidade, mais do
que enumerar e pretender superar as contradições existentes
através das múltiplas soluções terapêuticas
normativas que pretendem superar os efeitos da crise social e humana
e da natureza, sem se preocuparem de extinguirem as causas da mesma,
torna-se imperioso e urgente analisar o modelo de desenvolvimento económico,
social, cultural e político que está na origem do dilema
histórico em que nos encontramos.
Infelizmente, nos dias que correm,
as análises científicas tendem a reflectir os desígnios
ideológicos da racionalidade instrumental do capitalismo e a
servirem como um produto circunscrito aos sucessos conjunturais da moda
intelectual e espectáculo informativo dos "mass media".
Acresce a esse facto, revestirem-se ainda de uma pseudo-neutralidade
científica identificada com as necessidades intrínsecas
da sociedade, esquecendo-se que foram objecto de uma institucionalização,
cuja legitimidade foi outorgada em função dos interesses
das classes dominantes e do Estado. Os paradigmas científicos
mais representativos são, neste domínio, o exemplo mais
acabado desse tipo de posição.
É muito fácil chegar
a essa conclusão. Verifique-se a "objectividade" e
a "neutralidade" dos milhares de artigos e livros escritos
sobre os temas sublinhados e tenha-se presente, a esse respeito, os
milhares de análises que se realizaram sobre a natureza e a história
dos países denominados "socialistas". Numa outra perspectiva,
observe-se o sentido meta-histórico de uma evolução
unilinear pretensamente harmoniosa que se pretende dar ao modelo de
sociedade capitalista, enquanto processo histórico distintivo
do desenvolvimento sócio-cultural, económico e político
das sociedades. Contra esta hegemonia totalitária, persistem
um conjunto de autores que se revelam excepções marginais
às regras científicas predominantes. Por opções
éticas, morais e científicas têm analisado, de forma
radical, esse modelo de desenvolvimento, demonstrando as suas contradições
e limites históricos.
Não obstante saber do
peso dessas posições hegemónicas e contradições
paradigmáticas, perante os desafios que se nos apresentam, mais
do nunca, torna-se imperioso compreender e explicitar as características
e tendências do modelo de desenvolvimento que está na origem
da crise que atravessamos.
Quase sempre, em situações
históricas semelhantes, quando assistimos a este tipo de fenómenos,
os sintomas críticos do modelo de desenvolvimento capitalista,
tendem a ser resolvidos pela via da reforma ou de uma hipotética
revolução. Ambas coexistem num processo de interdependência
e complementaridade, estimulando e estruturando soluções
de ultrapassagem da crise social, humana e ecológica. Tendo presente
os sucessivos insucessos das reformas e revoluções já
realizadas, assunção, os cenários de mudança
ou de transformação radical da sociedade capitalista que
possamos deduzir, revestem-se de contingências e ensinamentos
históricos que não podemos descurar. Numa óptica
estrita de sobrevivência histórica e de intervenção
social pautada pela coerência e a eficácia, nada mais nos
resta do que evoluir no sentido da construção de uma outra
sociedade. Esta terá que ser ser dinamizada com base em transformações
económicas, sociais, políticas e culturais de características
radicais. Na emergência deste quadro revolucionário, a
ecologia social assente nos princípios e práticas do anarquismo,
tantas vezes esquecida e adulterada como um modelo utópico, revela-se,
hoje, com virtualidades inesgotáveis.
A ecologia social aparece, assim,
como uma hipótese histórica de superação
das incongruências funcionais do atual modelo de desenvolvimento
que subsiste à escala planetária. Nesse sentido, ela introduz
novas perspectivas de equilíbrio ecossistémico entre as
diferentes espécies animais e vegetais e, sobretudo, entre o
homem e a natureza. Finalmente, pela sua essência anarquista,
ela aparece como uma potencialidade real de construirmos um novo mundo,
o que nos indicia desenvolvermos uma ética e uma filosofia apoiada
em princípios humanistas e fraternais em relação
à sociedade e à natureza.
1. Características da
crise do sistema social global no limiar do século XXI
A generalidade das análises
que se debruçam sobre a atual crise da evolução
das sociedades contemporâneas sublinham, com especial significado,
os problemas relacionados com a explosão demográfica,
a destruição do ambiente, a guerra, o desemprego, a marginalidade
social, a fome e a pobreza.
Se pensarmos na pertinência
desses diferentes flagelos no contexto estrutural e institucional das
atuais sociedades, verifica-se que todos eles estão em estreita
sintonia, quer nas causas que estão na sua origem, quer nos seus
efeitos perversos. Todos esses fenómenos resultam de uma lógica
competitiva e concorrencial, na qual os objectivos do lucro e da exploração
estão sempre presentes. Em termos de uma racionalidade pautada
por fins e meios, todos eles estão submetidos a um sistema de
eficácia e eficiência capitalista. Na maneira como estão
articulados entre si, cada um deles desenvolve-se num sentido interdependente
e complementar. Os resultados lógicos da interacção
que resulta desse sistema complexo são visíveis através
da produção e consumo de bens e serviços, na transformação
e esgotamento dos recursos naturais e num crescendo populacional inaudito.
A outra versão dessa interacção produzida pelos
diferentes componentes do sistema social global observa-se através
da explosão dos fenómenos migratórios, da pobreza,
da segregação e marginalidade social provenientes da catástrofe
ambiental, da guerra, do desemprego e da fome à escala universal
(PNUD, 1994).
As projeções da
população mundial para o ano de 2050 apontam para cerca
de 10.000 milhões de pessoas no planeta Terra. Entre as várias
consequências, importa referir as suas incidências geográficas
e ambientais. O continente africano, que conta atualmente com 12% da
população mundial, no ano de 2050 passará a deter
27% da referida população. Em comparação,
para o mesmo ano de 2050, a Ásia manter-se-á ligeiramente
acima dos 50% da população total, enquanto que a América
Latina passará dos 9% actuais para 10% da população
total no ano de 2050 e a população total dos países
considerados desenvolvidos tenderá a decrescer dos 23% actuais
para 13% (FNUAP, 1992).
Sem
descrever as profundas implicações que resultam da pressão
demográfica em termos ambientais, económicos, políticos,
sociais e culturais, importa, para já, pensar em alguns dos seus
aspectos mais significativos. Segundo as projeções do
Relatório sobre a População Mundial de 1992
elaborado pelas Nações Unidas, a manter-se essa evolução
demográfica, persiste a necessidade de aumentar em 56% a área
de terreno cultivável que os países "considerados
em desenvolvimento" actualmente dispõem: isto é,
só para as necessidades de terrenos não agrícolas
ter-se-á que recorrer a 4,5 milhões de quilómetros
quadrados de "habitat" da fauna selvagem considerados para
fins agrícolas. Dito de outro modo, cada pessoa nos países
em desenvolvimento terá possivelmente à sua disposição
11% de 1 (um) hectare de terra cultivável.
A destruição do
ambiente é visível a diferentes níveis. Para essa
averiguação basta olharmos para o grau de destruição
dos recursos renováveis até agora considerados "ilimitados":
água, terra, espécies vegetais e animais. A erosão
dos solos, a desertificação das zonas semi-áridas,
a salinização das áreas irrigadas e a poluição
dos rios e dos mares são disso uma prova irrefutável (SACHS,
1980). Acresce a essa realidade ambiental negativa, a poluição
atmosférica e hídrica, o sobre-aquecimento da terra, a
destruição progressiva da camada do ozono, a destruição
das florestas e de milhares de outras espécies vegetais e animais
(WEINER, 1991).
O esgotamento e a erosão
dos recursos naturais considerados "renováveis", como
é o caso da água e dos solos aráveis, são
previsíveis nessas projecções e sobretudo apontam
para uma eventual catástrofe ecológica. Em presença
de um crescente agravamento da poluição atmosférica
e hídrica, da destruição progressiva da camada
do ozono, do sobre-aquecimento global do planeta Terra, das calamidades
naturais que estão ocorrer nos países mais industrializados
e urbanizados, etc..., essas tendências negativas desenvolvem-se,
cada vez mais, com maior acuidade.
Não se pode analisar a
destruição do ambiente em função exclusiva
da erosão e esgotamento dos recursos naturais. A lógica
racional da sociedade capitalista assente numa economia de produção
e consumo de bens e serviços efémeros, e a guerra que
emerge em inúmeros países, estão a contribuir enormemente
para essa situação. O número de refugiados internacionais
é neste aspecto muito elucidativo. Para fugir à guerra
ou à miséria provocada por cataclismos naturais de uma
economia depradadora, percebe-se, de certa maneira, porque dos 2,8 milhões
de refugiados em 1976, passou-se para 17,3 milhões em 1990. Com
o agravamento da crise económica e a proliferação
dos conflitos bélicos à escala regional, o número
de refugiados tende a aumentar assustadoramente. Se juntarmos a esta
realidade o número de emigrantes clandestinos, depreende-se de
como a África, a América Latina, a Ásia e a África
estão a tornar-se um laboratório experimental migratório
para outras regiões geográficas. Vivendo em condições
infra-humanas, sujeitam-se a emigrar para os países vizinhos,
ou em última análise para os EUA e a Europa ocidental,
de modo a evitarem o genocídio provocado pela guerra e a fome.
Se tivermos, ainda, em linha de conta a desintegração
social e económica que subsiste nos países do leste europeu
que tinham enveredado pelo "socialismo real", os problemas
das migrações clandestinas assumem proporções
alarmantes no continente europeu. Acresce que os fenómenos migratórios
resultam também da miséria existencial que abunda numa
parte significativa desses países. O número de pobres
que era de 944 milhões em 1970, segundo o relatório das
Nações Unidas já mencionado, subiu para 1.156 milhões
em 1985 e na perspectiva de outras fontes recentes esse número
não pára de aumentar (PNUD,1994). Em termos da sua situação
geográfica, 273 milhões vivem na África, 204 milhões
na América Latina e 737 milhões na Ásia.
É notória a intenção
dos referidos relatórios em demonstrarem as incidências
negativas da pobreza nos países em desenvolvimento. Ora este
panorama não é muito brilhante nos países "considerados
desenvolvidos". Segundo estimativas recentes (Diário de
Notícias, 1992), havia 53 milhões de pobres na CEE numa
população de 340 milhões, enquanto que nos EUA,
para uma população de 245 milhões, existiam 31,5
milhões de pobres. Este tipo de pobreza embora possa ser considerado
diferente daquela que ocorre nos países em desenvolvimento, na
medida em que podem usufruir de educação, saúde,
da segurança social e habitação num limiar de sobrevivência
mínima, ela revela-se fundamentalmente uma chaga social que não
pára de crescer e de se identificar com as causas e os efeitos
perversos do funcionamento normativo dos países capitalistas
desenvolvidos (PNUD, 1994).
Torna-se claro, cada vez mais,
que a crise actual da sociedade capitalista e do seu modelo de desenvolvimento
não afeta exclusivamente os países em vias de desenvolvimento.
O desemprego e a marginalidade social, a violência, a droga, o
crime, a guerra, a xenofobia, o racismo e o etnocídio, assim
como a segregação social, também fazem parte do
mundo "civilizado" do ocidente.
Numa
perspectiva sociológica, todos esses fenómenos resultam
de um conjunto de fatores cuja evolução tende a agravar
a crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista. Sem querer
dar-lhes uma base determinista, entre os mais importantes, sublinhe-se:
a pressão demográfica; a urbanização
e burocratização das relações sociais e
dos processos de socialização dos indivíduos e
grupos sociais; pobreza e desigualdade social; nacionalismos e integrismos
religiosos; anomia e desintegração social.
As manifestações
sócio-culturais da pressão demográfica não
se coadunam com os pressupostos analíticos das teses malthusianas
e darwinistas. A espécie humana vê-se constrangida a lutar
pela sobrevivência, utilizando formas relacionais de tipo coletivo
e individual alienantes. É uma luta traduzida por uma racionalidade
espaço-temporal mercantil, regulada, em parte, por processos
migratórios conflitantes, fomentadores de uma segregação
ecológica e social.
Porém, com base nas virtualidades
explicativas dessas teses, nem a função estruturante da
racionalidade económica, nem as virtualidades do determinismo
biológico da natureza humana têm impedido que o crescimento
da população mundial evolua de modo caótico e as
excrecências comportamentais das elites governamentais sejam irracionalmente
competitivas.
Em contextos estruturantes da
pobreza e da miséria e em situações contingenciais
ambientais adversas, é natural que as taxas de fecundidade e
de natalidade aumentem de forma desproporcionada. Na Europa Ocidental
e nos EUA passa-se um fenómeno inverso: as taxas de fecundidade
e da natalidade tendem para a estacionaridade. Esta realidade aponta
para a importante função da diversidade dos valores sócio-culturais,
quase sempre identificados com comportamentos humanos estandardizados
no domínio da procriação e reprodução
da sua espécie.
Num outro plano, importa referir
que os princípios e práticas do mimetismo polarizado no
sistema capitalista à escala universal tem gerado processos de
êxodo rural e de urbanização desequilibrados. O
desenvolvimento discrepante dos sectores agrícola, industrial
e terciário, para além de gerar uma desigualdade social,
económica, política e cultural de características
negativas, transformou os aglomerados urbanos num antro de miséria
e de marginalidade social. Destruindo-se as relações sociais
comunitárias, diminuindo-se as bases de coesão social,
desintegrando-se os laços de solidariedade social, criam-se as
condições que fomentam um acréscimo gigantesco
das taxas de fecundidade e de natalidade. Como consequência, a
pressão demográfica nos grandes aglomerados urbanos desenvolve-se
em termos de uma dimensão, heterogeneidade e densidade populacionais
que conduzem à desintegração e à anomia
social.
Uma das outras vertentes da pressão
demográfica e do processo de industrialização e
urbanização das sociedades expressa-se em tipologias de
ordenamento do território e na utilização do solo
de forma caótica e desordenada. A distribuição
e organização espacial das zonas de residência e
de trabalho, assim como das infraestruturas e equipamentos coletivos,
não se coadunam com uma organização social harmoniosa
e, por outro lado, transforma a cidade num amontoado caótico
de cimento, vidro e ferro, na qual se torna impossível viver.
O processo de urbanização
das sociedades, ao mesmo tempo que induz à transformação
da matéria orgânica em matéria inorgânica
(ou seja, através da transformação dos elementos
naturais em elementos de construção do "habitat",
fábricas, hipermercados estradas, infraestruturas e equipamentos
colectivos, etc.), traduz-se, por outro lado, numa organização
social perpassada por uma crise de identidade e de representatividade
social. O isolamento dos indivíduos e dos grupos no contexto
da complexidade organizacional dos grandes aglomerados urbanos assume
proporções inauditas. As relações sociais
não se fazem numa base directa em situações de
co-presença física e visibilidade relacional, o que impossibilita
a construção social de diálogos baseados na fraternidade
e na solidariedade. Os indivíduo e os grupos, estando sós
e sendo dependentes de um poder dominante que lhes escapa, entram num
processo de desintegração social.
Pode-se compreender esses fenómenos
se tivermos presente as dificuldades de uma interacção
social positiva e funcional em contextos urbanos que atingiram uma grande
dimensão, níveis de densidade e de heterogeneidade populacionais
altíssimas. Desse contexto, depreende-se as contingências
e os constrangimentos provindos do exercício burocrático
da representatividade formal para suprir as exigências funcionais
de uma sociedade, cada vez mais, complexa e sofisticada. A anomia e
a desintegração social são passíveis de
observar tendo presente o peso da burocratização e da
centralização dos processos de regulação
social.
A outra versão moderna
da desintegração social e da anomia subsistem ao nível
das perdas de referência e de identidade social. Esta realidade
é não só perceptível no âmbito da
especificidade das relações sociais corporizadas na superficialidade
e transitoriedade relacional nos contextos urbanos, mas também
ao nível da destruição progressiva das relações
sociais baseadas no interconhecimento e nos processos de aprendizagem
social e de aculturação que só podem ser dinamizados
pelos pequenos grupos e as comunidades locais (CHOMBART DE LAUWE, 1982).
Na ausência desses requisitos
de organização social, formaram-se, entretanto, estruturas
burocráticas gigantescas que decidem anacronicamente do governo
e da gestão das cidades. Simultaneamente, a longiquidade espaço-temporal
que persiste entre a sociedade global e os indivíduos, entre
o Estado, instituições, organizações, os
grupos e indivíduos, leva a que o sistema de representatividade
formal de natureza burocrática e centralista não permita
uma socialização e sociabilidade positivas dos indivíduos
e dos grupos, razão pela qual os fenómenos de desintegração
social e de marginalidade social crescem em exponencial e certas instituições
e cientistas sociais reivindiquem uma maior participação
dos indivíduos nos mecanismos processuais de integração
social (PNUD, 1993).
Desde que não haja uma
participação e decisão dos indivíduos e
grupos sobre a governação das cidades, persiste um alheamento
generalizado dos mesmos sobre todas as contingências negativas
que daí resultam. As relações de identidade entre
o que é do foro individual e colectivo não existe. A interação
entre os diferentes elementos humanos que constituem o sistema urbano
revela-se difícil de realizar, o que condiciona enormemente as
relações de interdependência e de complementaridade
relacionadas com as tarefas e funções do seu funcionamento
global.
Um outro fator da crise do modelo
de desenvolvimento capitalista emerge do desemprego. Este, como todo
o trabalho baseado num vínculo contratual precário, exprime
o estádio normativo de regulação das necessidades
do mercado de trabalho capitalista à escala da economia global.
Corresponde, estruturalmente, aos ditames do crescimento e progresso
económico e está articulado deterministicamente às
vicissitudes da revolução tecnológica em curso,
com especial incidência na informática, micro-electrónica,
biotecnologia, telemática, robótica, indústria
espacial, etc. Estes factores desintegram o sistema de relações
sócio-profissionais e das relações industriais
que perdurava há vários decénios, por via das restruturações
sistemáticas realizadas no âmbito das qualificações
e divisão social do trabalho do trabalho e, por outro lado, desenvolvem-se
novos saberes técnicos e humanos nos sectores terciário
e industrial à escala universal, em detrimento progressivo dos
saberes e práticas relacionadas com a actividade dos sector primário.
No fundo, as bases estruturais e institucionais, do que foi denominada
a segunda revolução industrial, estão a desintegrar-se,
dando origem à formação de um mercado de trabalho
segmentado numa regulação sustentada por trabalhadores
desqualificados, qualificados, desempregados ou com vínculo contratual
precário.
Em parte, enquanto consequência
lógica do mundo dos desempregados que pululam nos grandes aglomerados
urbanos, a marginalidade e a segregação social são
também a expressão genuína da competição
e da concorrência desenfreada que decorrem de uma regulação
social apoiada num crescimento económico desenfreado. Esta racionalidade
económica levada ao extremo tem custos irreversíveis.
Quem não consegue posicionar-se no mercado do trabalho em situação
privilegiada de concorrência ou de vantagem competitiva, facilmente
soçobrará na pobreza ou na exclusão social. Quem
não consegue adaptar-se aos padrões competitivos das funções
de produção e de consumo mercantil identificado com a
lógica normativa de capitalização humana, ver-se-á
impossibilitado de apropriar-se do conjunto de necessidades que lhe
permitem sobreviver, o que geralmente se traduz a evoluir para formas
de existência pautadas pela marginalidade social e, logicamente,
a ser objecto de exclusão e segregação social (PASSET,
1979).
Não podemos, porém,
confinar os problemas da marginalidade e da segregação
social ao determinismo económico da sociedade capitalista. Ambas
as realidades são também o produto de modelos sócio-culturais
e políticos predominantes que se estruturam através de
um processo social fundamentado na inclusão e de exclusão
de grupos sociais diferenciados e contrastantes.
A alteridade sócio-cultural
não é passível de socializar com base em identidades
comunitárias diferenciadas. No período histórico
que atravessamos, em que a interacção social no sistema
social global se objetiva com base nas capacidades de competição
e de segregação social, quando as comunidades nacionais,
regionais e étnicas se vêem incapacitadas de subsistir,
utilizam as outras como bode expiatório das suas situações
negativas. A "guerra contra o outro" assume uma preponderância
capital na manutenção do poder por parte das classes dominantes
e, por outro lado, alimenta a coesão e a identidade das comunidades
nacionais que tendem a desintegrar-se socialmente. Nestas condições,
apercebemo-nos como certas elites que lideram os nacionalismos e os
integrismos religiosos socializam e controlam ideológica e politicamente
os fenómenos da marginalidade e da segregação social
existentes nos seus países.
Os problemas da pobreza e da
desigualdade social demonstram, de forma inequívoca, a tragédia
existencial humana actual (PNUD, 1994). Sem cair na averiguação
fácil da existência de "sub-espécies humanas"
estratificadas por níveis de vida abaixo do mínimo de
subsistência vital, torna-se, no entanto, pacífica a afirmação
de que a grande maioria dos 4.000 milhões de seres humanos dos
países em vias de desenvolvimento estão submergidos pela
fome, a pobreza e a exclusão social. Em contrapartida, grande
parte dos 1.000 milhões que existem nos países desenvolvidos
são constrangidos a levar uma vida quotidiana baseada na ostentação,
produção e consumo de bens e serviços efémeros.
Tendo em atenção
os milhões de seres humanos que pululam no pântano do genocídio,
da miséria e da pobreza gerada nos grandes aglomerados urbanos
da África, da Ásia e da América Latina, há
também que não esquecer a outra versão da miséria
e da pobreza urbana existente no "eldorado" dos países
do mundo capitalista considerado desenvolvido. Estes últimos,
muito embora demonstrem que têm "estatísticas positivas,
com indicadores sociais sobre o saneamento básico, políticas
assistenciais nos domínios da educação, saúde
e segurança social estatais para a maioria da população,
estão, no entanto, mergulhados no asfalto do desemprego, da indiferença
e da exclusão social.
Um outro fenómeno crítico
da modernidade do desenvolvimento capitalista à escala mundial
é visível na emergência dos movimentos sociais e
guerras regionais estruturados pelo nacionalismos e integrismos religiosos
actuais. O etnocídio, o racismo e a xenofobia são outras
manifestações articuladas com uma realidade socioeconómica,
política e cultural que evolui no mesmo sentido racional-instrumental
capitalista.
Como primeira abordagem desses
fenómenos, dir-se-ia que todos eles têm causas lógicas
comuns, se pensarmos nas consequências geradas pelo desmembramento
do "socialismo real" nos países do leste europeu e,
sobretudo, olharmos para o desemprego que afectam todos os estratos
sócio-profissionais clássicos na Europa Ocidental. Importa,
por outro lado, pensar as próprias consequências da fome
e da pobreza que atravessam certas regiões na África,
América Latina e Ásia e as suas correlações
com os surtos migratórios e a segregação social
existente entre as diferentes identidades étnicas e nacionais.
A explicação mais
plausível das suas causas não deve, não obstante,
servir para omitir a função negativa que assumem esses
fenómenos. O nacionalismo, o integrismo religioso, o racismo
e a xenofobia, na medida em que se apoiam em modelos sociais tendentes
a estruturar-se numa perspectiva unidimensional e segregacional negam,
com facilidade, a alteridade sócio-cultural, política,
económica e religiosa a identidade dos outros povos, etnias e
comunidades que compõem as múltiplas sociedades humanas
do planeta Terra. As práticas humanas de cooperação
e da solidariedade inter-étnicas e inter-comunitárias
dos povos e nações são destruídas. Em alternativa,
persiste a lógica de uma guerra imperialista confinada a interesses
económicos e políticos geo-estratégicos, mas simultaneamente
fundamentada no extermínio das diferenças sócio-culturais
que as outras comunidades étnicas personificam.
2. Características do
modelo de desenvolvimento que funciona como paradigma dominante
Genericamente, o conceito de
desenvolvimento, situado nos parâmetros da lógica do progresso
e da razão, consubstancia-se na melhoria progressiva e equilibrada
do homem em termos de "bem-estar" económico, social,
cultural e político. Esta visão apoia-se na quantificação
e comparação de um conjunto de indicadores qualitativos
específicos, considerados os mais representativos para um dado
período histórico do desenvolvimento. Assim, quando se
comparam o nível de desenvolvimento entre países, tem-se
presente os índices que especificam o produto nacional bruto,
o produto interno bruto, o rendimento "per capita", taxas
de alfabetização, taxas de mortalidade e natalidade, número
de telefones e automóveis por habitante, número de hospitais
e médicos por habitante, etc...
O desenvolvimento, nestas circunstâncias,
avalia-se em função de um "bem-estar" instrumentalizado
pela quantidade de bens e serviços que uma dada sociedade pode
usufruir. O conceito de "países desenvolvidos" e "países
subdesenvolvidos" ou ainda de "países em desenvolvimento"
é concebido em função dessa visão analítica.
Esta concepção
histórica da evolução das sociedades traduz-se
num modelo de desenvolvimento que procura explicar o passado, em função
do presente e o devir harmónico da sociedade capitalista. As
variáveis que estruturam o modelo de desenvolvimento capitalista
expressam a eliminação progressiva da dependência
do homem em relação ao poder divino no sentido da sua
transformação em uma entidade antropocêntrica. A
base materialista da produção de bens e serviços
de características capitalistas provoca progressivamente a separação
do sagrado e do profano, ao mesmo tempo que estrutura a independência
e a autonomia dos indivíduos na esfera do mercado e a sua adesão
ideológica às normas e valores sócio-culturais
identificados com uma racionalidade económica baseada na maximização
do lucro.
O processo interactivo do progresso
e da razão materializou-se também na formação
do "Welfare State" e no Estado-providência. Estes, conjugados
com acção da racionalidade económica mercantil
aumentou os índices de produção e consumo de saúde,
educação e habitação, como inclusivé,
sancionaram as inovações e mudanças operadas no
campo do trabalho, da tecnologia e da ciência. Essas funções
permitem que haja simultaneamente um crescendo progressivo de produção
e consumo de bens e serviços múltiplos. Deste modo, o
modelo de desenvolvimento do capitalismo satisfaz, como sistema paradigmático,
as necessidades básicas dos indivíduos e grupos que compõem
as sociedades actuais. Para tal basta que haja uma repartição
de rendimentos propiciadora de um consumo de um conjunto de necessidades
básicas padronizadas num conjunto típico de bens e serviços
circunscritos à alimentação, habitação,
saúde, educação e transportes. Esgotando-se esse
patamar de necessidades padronizadas, o modelo de desenvolvimento capitalista
alarga e aprofunda a sua matriz do progresso e da razão. Novas
necessidades básicas são criadas e não admira que
hoje se corporizem no lazer, turismo, actividades lúdicas, jogos
de guerra, espaços livres, ambiente despoluído, etc...
(PASSET, 1979).
Averiguando, no entanto, a realidade
política, cultural, económica e social que sustenta e
reproduz esse modelo de desenvolvimento, deparamos com grandes contradições
e antagonismos.
Em primeiro lugar, assiste-se
à desintegração das virtualidades positivas do
homem antropocêntrico capitalista. Este para além de ser
um objecto produtor e consumidor de bens e serviços, transformou-se
basicamente numa entidade depredadora e destruidora de si próprio
e da natureza. Esta contradição não somente alienou
o homem das suas funções criativas cruciais nos domínios
da actividade política, cultural e social, mas sobretudo transformou-o
numa função competitiva e concorrencial de todos os outros
que com ele interagem às escalas local, regional, nacional e
transnacional.
Em segundo lugar, as relações
sociais capitalistas baseiam-se em funções hierarquizadas,
onde tarefas e funções, assim como o poder e a autoridade
obedecem a uma lógica de dominação. Indivíduos
e grupos com tarefas, funções, poder e autoridade sustentadas
pela dominação e a exploração do homem pelo
homem, fomentam uma desigualdade social corporizada em privilégios,
rendimentos, propriedade, exercício do poder e apropriação
de riqueza diferenciada, etc... Essa exploração e dominação
observa-se fundamentalmente nas relações sócio-organizacionais
entre empresários, gestores e assalariados subalternos, na relações
entre homem e mulher, nas relações entre estratos sócio-profissionais,
entre o Estado, indivíduos e grupos que compõem a sociedade
civil, etc..., e, quando nos situamos numa escala geográfica
universal, entre etnias, o Estado-Nação e instituições
transnacionais.
Em terceiro lugar, o sistema
democrático representativo capitalista não funciona em
exclusiva sintonia com as virtualidades do mercado e da liberdade humanas.
A racionalidade sociobiológica do ser humano "capitalista"
e os predicados de regulação do mercado tão queridos
de Darwin e Malthus, como dos liberais modernos, não funcionam
plenamente. Por tais motivos, para suprir as insuficiências da
integração e controlo social subjacentes à dinâmica
social das sociedades actuais, o Estado, indivíduos e grupos
recorrem a formas violentas e irracionais a fim de manterem o "status
quo".
Nestes termos, observamos que
as relações sociais nos planos institucional e organizacional
são perpassadas por tipologias de exercício de poder baseadas
na dominação, na qual a participação, a
decisão e a concepção das actividades económica,
política, cultural e social são arbitrariamente assumidas
e partilhadas, sem que se nos apercebamos do carácter prescritivo
e funcional das regras e normas que determinam o exercício da
autoridade hierárquica formal.
O exemplo do Estado, de instituições
e organizações com vocações repressivas,
quando exercem as suas funções de socialização,
são bem patentes na forma insuficiente e arbitrária como
controlam, integram e sancionam todas as transgressões e potenciais
desvios normativos desenvolvidos pelos indivíduos e grupos em
relação à ordem social vigente.
Finalmente, a expansão
universal do capitalismo tornou-o mais complexo e sofisticado. Como
sistema social, as suas diferentes componentes quando estão em
interacção, nem sempre funcionam como função
de complementaridade e interdependência, de forma a construir
sínteses positivas. A sua expansão geográfica revela-se
demasiado abstracta e formal.
A longiquidade espaço-temporal
embora seja mediatizada por uma interação social personificada
pelas novas tecnologias e poder comunicacional dos "mass media",
não tem evitado a artificialidade e a contradição
nas relações sociais entre as diferentes partes que constituem
a sociedade global. Por outro lado, as características competitivas
do "homo economicus" atingiu um grande paroxismo. A sobrevivência
da espécie humana persiste, mas à custa de uma socialização
muito difícil. Os exemplos são elucidativos. Incapazes
de se inserirem nos grupos, colectividades e sociedade, os indivíduos
evoluem para múltiplas formas de morte e de desintegração
social: desemprego, guerra, pobreza, violência, crime, droga,
prostituição, etc.
Desde que o desenvolvimento capitalista
erigiu o homem em entidade antropocêntrica, o progresso e a razão
associados à racionalidade económica assumiram-se como
função de espoliação e de transformação
da natureza de forma abrupta e irreversível (WEINER, 1991). O
capitalismo ao transformar o homem em objecto de produção
e de consumo de mercadorias, transformou a natureza num espaço
vital de parasitismo, na qual os recursos naturais tornaram-se uma fonte
inesgotável dos desígnios de uma sociedade insaciável.
Como consequência, o homem
deixou progressivamente os últimos laços de identidade
que ainda mantinha com a natureza. Em vez de adaptar-se, reagir e regular
as leis da natureza numa perspectiva de equilíbrio ecossistémico,
transforma e destrói a unidade da diversidade criativa e dialógica
dos diferentes seres que compõem o universo. Em função
dos parâmetros determinísticos do modelo de desenvolvimento
capitalista, a natureza em geral e todas as espécies vegetais
e animais, em particular, são constrangidos a evoluir dentro
dos parâmetros totalitários da racionalidade económica
capitalista. Esta tem um objectivo central: transformação
da matéria orgânica em matéria inorgânica,
produzir, distribuir e consumir mercadorias.
O que hoje os políticos,
cientistas, profetas e ideólogos da salvação do
impossível denominam de "mau ambiente", decorre da
sua visão apocalíptica e reformista. Facilmente chegam
à conclusão de que se caminha para uma catástrofe
ecológica, caso a sociedade não consiga inverter os efeitos
da crise ambiental polarizada à volta do efeito estufa, da degradação
da camada do ozono, da extinção da biodiversidade e do
esgotamento e poluição dos recursos naturais (ROYAL, 1992).
Está-se perante uma visão em que a degradação
do ambiente é algo que pode ser objecto de reparação,
regulação e controlo, bastando para tal reconstituir os
equilíbrios ecossistémicos que, entretanto, foram destruídos.
Em presença de tais terapêuticas,
tantas vezes testadas e frustradas, o mínimo que delas se pode
depreender é a sua inoperância, já que após
sucessivas aplicações, tudo isso não consegue evitar
a mesma tendência suicidária.
Mais do que encontrar nos sintomas
da crise ecológica uma forma airosa ideológica de omitir
as causas que estão na origem da destruição do
planeta Terra, torna-se necessário inferir que os problemas do
ambiente não decorrem de causas exteriores à sociedade
capitalista e que, desse modo, há que situar toda a análise
na lógica normativa do desenvolvimento do capitalismo e, mais
concretamente, na sua esfera de actividade económica mercantil
(PASSET, 1992).
Objectiva e subjectivamente,
o que importa referir radica no sentido da transposição
mecânica que o capitalismo pratica, ao transformar a natureza
num objecto de dominação e de hierarquização
idêntico à ordem social que estrutura os processos de socialização
e de regulação das relações sociais da sociedade
capitalista (BOOKCHIN, 1989). A dominação e a hierarquização
relacional que a espécie humana mantém com a natureza
é modelada e projectada pelas exigências e contigências
de uma a racionalidade mercantil concorrencial e competitiva. Recursos
humanos e naturais fazem parte de uma lógica indissociável,
em que meios e fins, se integram na consecução dos mesmos
objectivos (SACHS, 1986). Não admira, portanto, que a ordem social
capitalista transposta para o campo das relações do homem
com a natureza resultem em transformações e configurações
espaciais e físicas enquadradas numa determinada utilização
do solo e do ordenamento do território e que estes, por sua vez,
desenvolvam a crise ambiental e a destruição progressiva
dos recursos naturais ainda disponíveis (PELT, 1991).
Esta evolução tem,
no entanto, custos, limites físicos e sociais. A natureza não
pode ser modelada impunemente através de uma entidade antropocêntrica
orientada pelos objectivos imperativos do progresso e da razão
que estão identificados com a racionalidade económica
capitalista. Mantendo-se a irreversibilidade deste modelo de desenvolvimento,
assistiremos inevitavelmente a um crescendo progressivo da deterioração
ambiental a todos os níveis.
Não se pode, porém,
racionar como se não persistissem interdependências e complementaridades
entre os fenómenos ambientais e os que relevam da realidade sócio-organizacional.
Nesse aspecto, assim como somos capazes de observar os efeitos negativos
que relevam da ordem social sobre a natureza, interessa, por outro lado,
também perceber as incidências que a própria destruição
do ambiente tem sobre o modelo sócio-organizacional vigente.
A utilização e
a apropriação do solo e as suas articulações
com o ordenamento do território, assim como a poluição
hídrica e atmosférica, como já referimos, estão
bem patentes no processo de urbanização das sociedades.
As configurações
sociais e físicas da urbanização traduzem-se num
aumento da competitividade e da concorrência interpessoais e intergrupais,
dando azo à construção de tipologias de interacção
social padronizadas em formas específicas de apropriação
e utilização do espaço vital que é imprescindível
à vida quotidiana dos indivíduos e colectividades. Essa
interacção social torna-se propícia à construção
de territórios segregacionais que se identificam com a capacidade
competitiva dos grupos e indivíduos e que, por sua vez, permitem
a dinamização de uma acção individual colectiva
orientada pela força constrangedora da sua representatividades
social no contexto da sociedade global.
Por outro lado, a complexidade
organizacional resultante das configurações físicas
e sociais que emergem da regulação do mercado e do Estado
constrange os sistemas de decisão e de controlo da sociedade
civil a evoluirem para uma crescente burocratização e
centralização. As relações entre os diferentes
poderes instituídos, os indivíduos, as comunidades locais
e regionais, as sociedades nacionais e transnacionais revelam-se progressivamente
conflituais. O paradoxo é no mínimo contraproducente.
É no mínimo contraditório que um sistema global,
cada vez mais hegemónico e totalitário, crie instituições
supra-nacionais, viva vicissitudes de crise ambiental de natureza universal
e, na ocorrência, não consiga legitimar de forma idónea
e funcional o seu sistema político.
Finalmente, a regulação
e controlo das complementaridades e das interdependências físicas
e sociais que subsistem à escala universal revelam-se difíceis
de realizar pela entidade Estado-Nação. Em presença
da destruição do ambiente gerado pela lógica do
desenvolvimento capitalista, o Estado-Nação, enquanto
entidade fiscalizadora dos recursos naturais e, por outro lado, gestor
e planificador das políticas económicas, revela-se impotente
perante a acção estruturante das economias subterrâneas
de âmbito nacional e transnacional.
Este aspecto revela-nos que o
Estado-Nação e as comunidades nacionais, regionais e locais
não têm capacidade política e económica suficiente
para adaptarem o ambiente à sua identidade sócio-cultural
e fronteiras específicas, conseguindo um controlo eficiente na
utilização e ordenamento dos seus espaços físico
e social. No momento histórico actual verifica-se que a regulação
do ambiente não é passível de gerir dentro dos
limites das fronteiras territoriais, institucionais e administrativas
do Estado-Nação clássico. Este último não
é funcional e idóneo, não tem legitimidade nem
poder suficiente para inverter o processo de destruição
da natureza.
Depreende-se, por outro lado,
que o Estado circunscrito ao espaço nacional tem extrema dificuldade
em controlar atempadamente as variáveis sócio-culturais,
económicas e políticas em que se apoia o actual desenvolvimento
capitalista, de forma a poder inverter os factores relacionais humanos
que originam a destruição do ambiente. Nesta assunção,
a atomização da acção social das comunidades
locais, regionais e nacionais só é explicável pela
crescente subalternização e dependência hierárquica
que mantêm em relação Estado supra-nacional emergente.
O indivíduo, por outro lado, ao ser transformado num puro objecto
de produção e consumo de mercadorias com simbologia e
proveniência universal, revela-se, cada vez mais, uma entidade
amorfa e alienada, o que o leva a comportar-se como uma entidade anómica
desprovida de sentido, de participação e decisão
em todos os níveis espaciais em que se encontra inserido.
Em presença desta nova
configuração mundial estabelecida entre um Estado totalitário
e o crescente amorfismo da capacidade das comunidades nacionais, regionais
e locais, não é de admirar que as grandes organizações
supra-nacionais assumam a liderança dos processos de transformação,
controlo e regulação do sistema social global, a fim de
inverter o colapso apocalíptico da natureza e a destruição
do ambiente provocado pelo desenvolvimento capitalista. O exemplo dos
últimos relatórios do Banco Mundial e a Eco-92 do Brasil,
organizado sob os auspícios da ONU, é bem a demonstração
da impossibilidade e fragilidade da acção do Estado, das
instituições, organizações e indivíduos
que se inserem nessas escalas sócio-espaciais.
3. Potencialidades de uma ecologia
social anarquista face à crise do modelo de desenvolvimento capitalista
Como verificámos nos capítulos
precedentes, uma parte substancial dos cientistas que abordam as relações
do homem com o ambiente, omitem o carácter indissolúvel
dessa relação no quadro de categorias conceptuais sistémicas.
Assim, tanto encontramos análises que vão no sentido de
uma naturalização absoluta e conservadora do homem, referenciando
este como uma entidade exclusivamente biológica e natural, perdendo-se
dessa forma a sua essência criativa sócio-cultural que
se manifesta na capacidade e possibilidade de construir modelos de organização
social diferentes daqueles que são próprios às
outras espécies animais e vegetais. (MALTHUS, s/d). Num sentido
oposto, encontramos análises que estipulam deterministicamente
a autonomia da espécie humana em relação ao seu
ambiente, transformando-a numa espécie de sociologismo orgânico
que se explica de forma específica e autónoma, sem para
tal sujeitar-se às contingências da interacção
e interdependência com o meio ambiente (DURKHEIM, 1975)
É facto que não
podemos prescindir de analisar a contribuição de alguns
autores que ultrapassaram esta visão dicotómica das articulações
e integrações dos espaços social e físico.
Desde a década de 1920 que um grupo de investigadores da universidade
de Chicago observou e analisou a influência do ambiente sobre
os comportamentos humanos, referenciando as formas e conteúdos
das configurações espaciais físicas e sociais que
decorriam de uma matriz social diversificada corporizada na acção
colectiva das múltiplas comunidades e etnias, com identidades
sócio-culturais e capacidades concorrenciais e segregacionais
específicas. Robert Park, Ernest Burgess, Louis Wirth e outros
puderam, desse modo, enveredar por uma abordagem sociológica
que permitia percepcionar e explicar o homem e a natureza numa perspectiva
ecológica e humana (PARK, BURGESS, McKENZIE, 1967).
Na continuidade desta linha de
pensamento científico, hoje, persiste uma abordagem mais sistematizada
e enquadrada na crise ecológica da sociedade capitalista ao ponto
de alguns investigadores contemporâneos, a partir da década
de 1970, desenvolverem um conjunto de postulados teóricos conducentes
à criação de uma disciplina denominada Sociologia
Ambiental e, inclusivé, com intenções de a transformarem
num novo paradigma ecológico (CATTON e DUNLAP, 1980).
Estes trabalhos científicos
têm indiscutivelmente um grande mérito. Face à crise
interpretativa e explicativa dos múltiplos fenómenos relacionados
com ambiente, eles tentam averiguar, de forma pertinente, os efeitos
perversos mais representativos que emergem da actual crise ecológica
do modelo de desenvolvimento capitalista. As suas análises pecam,
no entanto, por uma série de limitações e contradições.
Circunscrever os problemas da crise ecológica a uma racionalidade
populacional e humana, de forma alguma pode-nos permitir culpabilizar
e responsabilizar a espécie humana, os grupos e os indivíduos
como um todo identitário e homogéneo na sua condição-função
de depredadora do equilíbrio ecossistémico. A acção
colectiva e individual não pode ser analisada fora do tipo de
sociedade em que elas se inscrevem. A ordem social capitalista, com
as suas estruturas e modelos institucionalizados de cultura normativa,
só legitima relações sociais hierárquicas
e de dominação que se identificam com as funções
de produção e de consumo de bens e serviços e,
logicamente, com o consequente agravamento da crise ambiental.
Por estas razões, essas
análises são redutoras. Nestas circunstâncias, torna-se
impossível omitir as causas sócio-culturais, políticas
e económicas que corporizam o modelo de desenvolvimento capitalista
e, logicamente, a sua função estruturante na modelação
das estruturas sociais hierarquizadas e de dominação que
se traduzem num conjunto de regras e normas tipificadas por comportamentos
humanos que, em última instância, determinam os seus padrões
de interacção com a natureza. O ambiente é o resultado
desse processo interactivo.
Partindo desta perspectiva, observa-se
que as contradições e antagonismos subsistentes residem
no modelo de produção e de consumo de bens e serviços
que acompanha a evolução da racionalidade económica
capitalista. Esta é perpassada pela concorrência e competição
mercantil e regulada socialmente por estruturas e relações
sociais pautadas pela opressão e exploração do
homem pelo homem. A personificação dessa realidade é
averiguável pela condição-função
de classes sociais, estratos sociais, etnias e castas hierarquizadas
e estratificadas por escalas de rendimento, prestígio social,
poder e posse de riqueza, como também pelas relações
sociais de âmbito mais geral personificadas por uma condição/função
de nível etário (velho/jovem), sexual (homem/mulher),
e social (empregado/desempregado), etc ...
Como não se pode percepcionar
a crise do ambiente e da sociedade exclusivamente a partir de uma visão
ecológica naturalista, também não nos parece possível
fazer o mesmo através de análises centradas num sociologismo
com os seus efeitos perversos e disfuncionais.
Em relação ao pensamento
de outros autores procura-se associar a crise do ambiente e da sociedade
a partir das características estruturantes da revolução
tecnológica em curso e a natureza da pressão demográfica
(FNUAP, 1992). Segundo estes, para superar a actual crise social e ecológica,
bastaria reestruturar as tecnologias e adaptá-las ao meio ambiente
de modo a torná-las menos depredadoras dos recursos naturais
e menos poluidoras da biosfera. Se possível, elas deveriam não
causar tantas mortes através das diversas guerras regionais e
locais e, inclusivé, deveriam adaptar-se a funções
circunscritas à saúde e educação e, sobretudo,
fortalecer e aperfeiçoar a sua utilização sistemática
em métodos científicos anti-concepcionais, de forma a
inverterem e/ou estacionarem o surto de crescimento demográfico,
miséria e a fome que ocorre na generalidade dos países
do hemisfério Sul.
Esta hipótese científico-tecnicista
que pretende superar as excrecências populacionais mais significativas
da crise do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista à
escala mundial é, muitas vezes, confrontada outras que têm
menor representatividade social: a naturalista-conservadora e a eco-tecnocrática.
A primeira procura solucionar a crise do modelo de desenvolvimento capitalista,
com um retorno às configurações sócio-históricas
do passado, tentando fazer tábua rasa da historicidade dos construídos
sociais que foram estruturados por uma matriz sócio-cultural
secular. A segunda procura transformar o homem antropocêntrico
numa categoria divina semelhante ao poder das máquinas e dos
deuses.
Estamos, neste caso, a pensar
o "homem" como uma realidade omnipotente e omnisciente, com
capacidades e possibilidades ilimitadas de inovação e
de mudança em todos os aspectos da vida social e humana. Os defensores
da sociobiologia dão-nos algumas pistas nos campos da engenharia
genética e social (BOOKCHIN, 1990).
Todas essas perspectivas são
redutoras e enfermam de um conjunto de contradições. A
visão naturalista-conservadora, que é actualmente personificada
pela maioria dos grupos ecologistas, esquece que o homem enquanto entidade
auto-consciente e auto-reflexiva evolui num processo histórico,
da qual é impossível dissociar o presente do passado e
do futuro. Todo esse processo é um elo com laços contínuos
e descontínuos. Nesta dimensão, só pode ser analisado
e interpretado como um fenómeno estruturado por factores de natureza
reversível e irreversível.
A visão eco-tecnocrática
pensa que é possível re-equacionar a relação
do homem com a natureza através de uma função ilimitada
do poderio dos meios técnicos e científicos, atribuindo-se
um poder diabólico à espécie humana, como se esta
pudesse assumir um domínio absoluto e arbitrário sobre
si, sobre as outras espécies e própria natureza (PASSET,
1979). Nesta perspectiva, poderíamos até pensar num "admirável
mundo novo" personificado por uma espécie humana modelada
geneticamente, adquirindo, posteriormente, ela mesmo uma capacidade
e possibilidade de criar e modelar a natureza à sua imagem e
semelhança.
Face ao actual cenário
da crise do modelo de desenvolvimento capitalista não se vislumbra
que o pragmatismo conjuntural das políticas económicas
dos estados, nem a racionalidade económica do mercado capitalista,
possam inverter ou superar essa realidade. Por outro lado, manifestamente,
todos os modelos analíticos, que se identificam científica
e ideologicamente com o paradigma explicativo dominante, não
conseguem interpretar de forma eficiente e coerente a crise que atravessamos,
de forma a que se possa eventualmente verificar remediar algumas das
contradições e antagonismos da sociedade capitalista.
Tendo presente o legado histórico
do pensamento e da acção social emancipalista, em face
dos problemas que estamos a presenciar à escala mundial, surge-nos
um dilema ambiental e social de proporções gravíssimas.
Neste contexto, a ecologia social de características anarquistas
tem um conjunto de virtualidades que urge referenciar e potenciar nas
nossas sociedades.
Mais do que inverter a lógica
de evolução do sistema social global, importa, desde já,
referir que a espécie humana é, acima de tudo, uma entidade
que evolui através de um processo histórico pautado pela
estruturação de uma auto-consciência progressiva
e que, em função das suas capacidades e possibilidades
ontológicas, adopta modelos de auto-governação
e de auto-organização que a pode racionalmente diferenciar
das outras espécies vegetais e animais. É nesta especificidade
estrutural ontológica que podemos compreender, em grande parte,
a sua evolução gregária no sentido da construção
da sociedade, passando de modelos sociais simples para modelos sociais
complexos. Os pressupostos da socialização e da sociabilidade
humana, nessa assunção, só foram possíveis
de concretizar na medida em que o ser humano conseguiu articular-se
com a natureza de uma forma dialógica.
Com base nestes princípios
básicos, facilmente chegamos à conclusão que as
relações do homem com a natureza não são
deduzíveis de meras reacções adaptativas contingenciais
impostas pelo poder inerente à natureza. A relação
do homem com a natureza, neste sentido, não pode apoiar-se numa
visão restritiva circunscrita às necessidades da sua sobrevivência
material. Enquanto elemento da natureza que interage com milhões
de seres vegetais e animais, o homem só pode partilhar e viver
nessa mesma natureza como parte de um todo indissolúvel ecossistémico.
Assim sendo, esse imperativo crucial só é passível
de realizar através da transformação do homem numa
entidade auto-consciente e humanizada, com a capacidade virtual e real
de construir um modelo sócio-organizacional identificado com
a sua essência humanista e emancipalista, alicerçada em
relações sociais pautados pela fraternidade e a solidariedade.
Nesta perspectiva, torna-se impossível
pensar a ecologia sem alargar a sua dimensão fenomenal ao quadro
epistemológico e metodológico da sociedade global em que
persistimos. Na estrita medida em que as relações do homem
com a natureza são mediatizadas por relações de
tipo reflexivo e organizacional, a ecologia, em última instância,
é e só pode ser de natureza social.
Integrando-me no princípio
tantas vezes já demonstrado de que é possível racionar
e agir de uma maneira radicalmente diferente a que estamos habituados,
a tragédia da crise social e ecológica que vivemos é
passível de ser superada. Neste sentido, para tornar operacional
o conceito de ecologia social, enquanto fenómeno de auto-consciência,
de auto-governação e de auto-organização
do ser humano, somos constrangidos à admissibilidade da exigência
de uma transformação radical da sociedade em que persistimos
(KROPOTKINE,1906; BOOKCHIN,1976). Essa transformação radical
da sociedade capitalista à escala universal implica a desestruturação
da organização social, política, cultural e económica
baseada em relações sociais hierarquizadas e na dominação.
Ela passará, ainda, por uma redefinição radical
do homem em relação à natureza, o que implica a
criação e a dinamização de novos padrões
de interacção social, tipificados por comportamentos humanos
conducentes à manutenção e regulação
de um novo equilíbrio ecossistémico assente na biodiversidade
das diferentes espécies animais e vegetais (BOOKCHIN, 1976).
De maneira a dar forma e conteúdo
a essa exigência de transformação radical da sociedade
capitalista e, por conseguinte, do seu modelo de desenvolvimento, o
projecto de sociedade de ecologia social anarquista deve apoiar-se essencialmente
na criação de eco-comunidades às escalas local,
regional, nacional e transnacional. A integração e a articulação
dessas realidades singulares estruturar-se-ão num sistema global
de relações sociais fraternas e solidárias através
de uma rede orgânica coordenada e regulada por laços federativos
e confederais à escala universal. É uma alternativa de
sociedade que supera os antagonismos e contradições da
exploração e opressão capitalista, mas que também
supera as causas e os efeitos perversos de um conjunto de factores:
centralização, burocratização, concentração
e complexidade organizacional e social; inexistência de participação
e de decisão dos indivíduos e grupos nas colectividades
e sociedade; desintegração e anomia social.
O quadro epistemológico
e metodológico da ecologia social tem as suas raízes históricas
nos princípios e práticas do anarquismo. Essa plausibilidade
é pacífica de demonstrar através dos indícios
de certas experiências históricas já realizadas
(Comuna de Paris- 1871, Revolução Russa-1917-1921, Guerra
Civil em Espanha-1936-1939, etc...) como, ainda, é personificada
pelas obras de alguns autores anarquistas mais emblemáticos:
Proudhon, Bakunine, Kroptokine, Malatesta e, modernamente, Murray Bookchin.
Hoje, a ecologia social baseada nos princípios e práticas
anarquistas, que tem sido analisada e dinamizada desde o século
XIX, revela-se reforçada nas suas potencialidades históricas,
nos domínios científico e social, a partir de várias
dimensões.
Em primeiro lugar, a dicotomia
que subsiste entre a cidade e o campo chegou ao extremo de um paroxismo
sem fim. As cidades, enquanto construídos sociais gigantescos,
transformaram-se progressivamente em objectos de desintegração
e segregação social, de violência, de marginalidade
social e alienação. Por outro lado, revelam-se um mundo
de miséria e de promiscuidade física e social, onde pessoas,
objectos, resíduos sólidos, líquidos e gasosos
se confundem e atrofiam num labirinto que caminha inexoravelmente para
uma catástrofe ecológica (MUMFORD, 1982). Perante o seu
gigantismo, complexidade sócio-organizacional e irreversibilidade
destruidora dos aglomerados urbanos, os habitantes que neles vivem,
estando desprovidos do exercício de uma cidadania plena, não
participam, não concebem, nem planeiam, nem decidem sobre o governo
e a gestão das suas cidades.
Para a ecologia social anarquista
impõe-se criar as condições sócio-organizacionais
que possibilitem extinguir progressivamente os atuais aglomerados urbanos,
de forma a tornar compatíveis as articulações e
regulações da organização dos espaços
físico e social e, por conseguinte, viabilizar as hipóteses
de construção de um equilíbrio harmonioso entre
o homem e a natureza e permitir o restabelecimento da biodiversidade
ecossistémica. As cidades devem configurar-se em comunidades
populacionais geríveis no sentido da sua auto-governação
e auto-organização. Quer em relação aos
equipamentos colectivos, quer no tocante a infra-estruturas, produção
e distribuição de bens e serviços, etc..., sem
exceção, devem ser objecto de uma auto-regulação
confinada à soberania do agregado populacional urbano. Todos
os aspectos económicos, sócio-culturais e políticos
estão integrados nesse processo de modo harmonioso, estando os
habitantes, das respectivas comunidades urbanas, dotados de uma ação
social inteligível e construtiva. Acima de tudo, ela é
soberana em todos os aspectos relacionados com a decisão e a
participação nas múltiplas funções
e tarefas que estão envolvidas na cidadania urbana.
Essas comunidades urbanas não
podem atingir uma dimensão populacional que ponha em causa a
soberania dos seus habitantes. Os princípios e as práticas
da democracia directa, implicam que as relações sociais
sejam visíveis e directas e os pressupostos relacionais de toda
a organização social não se coadunam com funções
e tarefas assentes na hierarquia de uma hipotética autoridade
formal. O poder de decisão sobre toda a governação
e gestão das cidades está nas mãos dos habitantes
da cidade. Indivíduos e grupos interagem no sentido da sua liberdade
específica, tendo sempre presente que existe a liberdade dos
outros e que as próprias comunidades urbanas livres são
a sua síntese genuína. As relações sociais
informais atravessam todo o tecido social urbano, submetendo as funções
coordenação e regulação de tipo formal a
uma reversibilidade e rotatividade sistemática.
Neste aspecto, certas virtualidades
intrínsecas do campo que ainda perduram, pode-nos servir de exemplo.
Para tal, basta observá-lo como espaço potencial de recursos
naturais e, por outro, como modelo hipotético de organização
social estruturado por relações e interacções
sociais baseadas no interconhecimento, na concepção, decisão
e participação das pessoas no quadro da sua vida quotidiana
e comunitária. Isso, no entanto, não obsta a que a actual
realidade sócio-organizacional, económica e política
do espaço rural tenha também que sofrer uma transformação
radical.
Com virtualidades específicas
próprias, o espaço rural deve ser concebido e construído
num sentido sócio-organizacional autónomo e equilibrado.
Enquanto contexto particular inserido numa realidade sócio-organizacional
global só pode subsistir numa base de complementaridade e de
interdependência com o espaço urbano. As comunidades rurais
não podem ser o prolongamento lógico da estruturação
unidimensional imposta pela urbanização capitalista. Na
medida em que as comunidades rurais tem menor complexidade sócio-organizacional,
só nesse capítulo se pode diferenciar das comunidades
urbanas. A auto-suficiência económica, sócio-cultural
e política traduzir-se-á inevitavelmente numa realidade
semelhante àquelas que se desenvolvem nos contextos considerados
urbanos.
Em segundo lugar, a oposição
que subsiste entre o Estado e as diferentes comunidades urbanas e rurais
deriva de um sistema hierárquico centralizado e burocratizado.
São relações de coordenação e de
controlo dos indivíduos e das colectividades legitimadas pelo
uso da função repressiva da jurisprudência e da
coação física das instituições militar
e policial. Simultaneamente, a própria manutenção
do Estado implica que o mesmo exerça uma espoliação
sistemática dos recursos humanos naturais, financeiros e humanos
que pertencem, em geral, à sociedade civil, às comunidades
locais e regionais e, particularmente, aos indivíduos.
O Estado, para além disso,
transformou-se num aparelho burocratizado e totalitário através
das suas funções de representatividade social e de autoridade
formal, no exercício tutelar das actividades políticas,
sócio-culturais e económicas. Esse facto, levou-o a distanciar-se
e a oprimir a sociedade civil que "legitimamente" dirige e
representa. Tornou-se inútil e disfuncional, mas simultaneamente
demasiado perigoso, na medida em que mantém nas suas mãos
poderes discricionários absolutos que resultam na utilização
massiva de meios tecnológicos e militares sofisticados. As guerras
fomentadas pelos estados levam à destruição irracional
de recursos humanos e naturais. Elas atingem proporções
inauditas, ao ponto de revelarem-se catastróficas para a sobrevivência
da própria humanidade.
Tudo isso é explicável,
segundo aqueles que defendem a perpetuação do Estado,
porque os indivíduos e as respectivas comunidades não
são capazes de se auto-organizarem e auto-governarem. No sentido
da perspectiva de Hobbes, o homem transformar-se-ia em lobo do próprio
homem. Na ocorrência, os indivíduos e os grupos criaram
e desenvolveram o Estado.
É no mínimo uma
posição que não se coaduna com a realidade. Hoje,
os fenómenos de desintegração e marginalidade social
são genuinamente efeitos perversos de causas que residem na função
e acção do Estado. Olhe-se para o exemplo da droga e da
violência que perpassam as sociedades actuais. A polícia,
os tribunais, os serviços de saúde e educação
actuam no sentido de eliminarem e controlarem esses "flagelos"
da sociedade. No mínimo são medidas aberrantes para um
Estado e uma sociedade que funciona nos parâmetros da lógica
da racionalidade mercantil. Se a droga e o crime são objectos
de compra e venda deduzida da liberdade dos indivíduos no espaço
do mercado. Se os mesmos estão em consonância estreita
com a racionalidade dos meios e dos fins para se obterem lucros, não
se compreende porque é que o Estado e as suas instituições
são chamados a intervir nesse processo.
No fundo, a função
e a acção do Estado confina-se a controlar e a reprimir
indivíduos e grupos que não pensam, não decidem,
nem reflectem sobre as suas vidas em termos autónomos e livres.
O que o Estado controla e reprime são indivíduos e grupos
amputados de uma motivação assente em princípios
e práticas fundamentados na liberdade, fraternidade e na solidariedade.
No sentido amplo, a plausibilidade da erradicação hipotética
da droga e do crime, passa previamente pela destruição
das suas causas: o Estado.
Em oposição a essa
realidade estatal, as comunidades e colectividades de âmbito local
e regional têm capacidades e possibilidades de auto-organização
e de auto-governação superiores ao Estado. São
entidades capazes de reflectir e organizar os recursos naturais e os
recursos humanos com maior facilidade (CASTORIADIS, 1990).
Com relações sociais
baseadas no interconhecimento e uma identidade com o meio ambiente,
torna-se possível produzir, distribuir e consumir bens e serviços
em termos harmoniosos. Todas as relações internas e externas
dinamizadas pelas diferentes colectividades devem ser pautadas com base
na reciprocidade e igualdade, extinguindo-se as razões da trocas
baseadas no lucro, na opressão e exploração do
homem pelo homem. Nesta assunção, pode-se prescindir do
Estado e de outras instituições, na estrita medida que
à escala espacial local, regional, nacional e transnacional,
os indivíduos, grupos e colectividades diferenciadas assumiam
uma soberania plena numa federação universal de povos
e etnias.
Em terceiro lugar, os modelos
de produção e de consumo centrados nos sectores industrial
e terciário tendem a destruir progressivamente as virtualidades
reais do sector agrícola e, simultaneamente, desenvolvem assustadoramente
a destruição do meio ambiente e, naturalmente, a desintegração
do tecido social através da marginalidade social e do desemprego.
Nunca é demais referir
que as causas dessa evolução radicam essencialmente no
modelo de desenvolvimento capitalista apoiado numa racionalidade económica
que se alimenta de uma competição e de uma concorrência
mercantil desenfreada. Esta lógica normativa só pode manter-se
com a produção e o consumo gigantesco de bens e serviços.
No entanto, o crescendo progressivo
desse processo chegou a um paroxismo tal que o homem, enquanto entidade
produtora e consumidora de objectos, destruiu milhares de espécies,
esgotou os recursos naturais, transformou a matéria orgânica
em matéria inorgânica de forma absurda e está, simultaneamente,
a auto-destruir-se como ser humano. O risco é, portanto, duplo.
Destrói-se a Terra e os seres que nela vivem e desintegram-se
as estruturas sociais que compõem as sociedades. O retorno a
um equilíbrio entre os sectores agrícola, industrial e
terciário implica que os modelos de produção e
de consumo deixem de estar orientados e submetidos aos imperativos do
lucro, da concorrência e da competição entre os
seres humanos (GORZ, 1991). O mercado e o Estado funcionam como entidades
externas dos interesses e motivações dos indivíduos
e grupos que compõem a sociedade capitalista. São eles
que decidem, em última instância, como se produz, consome
e distribui a riqueza. Ou seja, quem trabalha, quem não trabalha.
Quem é rico ou pobre. Quem detém poder ou não.
Para os indivíduos e grupos
que vivem nas actuais sociedades, torna-se imperioso extinguir as funções
e as estruturas de socialização e de sociabilidade dos
indivíduos e grupos, cuja proveniência decorre da racionalidade
económica capitalista e do Estado. A autogestão da produção,
da distribuição e o consumo de bens e serviços,
estritamente identificada com as necessidades soberanas dos indivíduos
e colectividades inseridas nos diferentes espaços locais e regionais
à escala universal, revela-se, nestas condições,
cada vez mais, pertinente. A participação e a decisão
dos indivíduos e grupos em todo o processo autogestionário
desenvolve-se harmoniosamente. A democracia directa impõe-se
como modelo relacional básico, dando lugar a que todos os indivíduos
e grupos tenham uma participação e decisão efectiva
em todos os aspectos do funcionamento interno e externo das colectividades
em que estão inseridos. A autogestão torna-se uma função
pacífica de socializar entre todos os membros das diferentes
colectividades, na medida em que a sua essência intrínseca
apela à criatividade, à espontaneidade, à liberdade
e responsabilidade de todos os indivíduos. Por outro lado, a
autogestão de características anarquistas induz a que
persista uma identidade real entre o produtor, o consumidor e o homem
trabalhador.
Como consequência lógica
dessas hipóteses, haverá que olhar para a natureza como
a mãe de tudo aquilo que se produz e consome. A depredação
do ambiente e apropriação e utilização de
bens e serviços como objectos efémeros, como inclusivé
o desperdício e o lixo que resultam das diferentes actividades
humanas terão que ser totalmente reestruturados, ou substancialmente
extintos, de forma a reencontrar o equilíbrio entre o homem e
a natureza. O ordenamento do território e a utilização
do solo, os equipamentos colectivos e as infra-estruturas, tecnologias,
etc, serão sempre expressão de um modelo de produção
e de consumo que se orienta e traduz em práticas humanas pautadas
pela solidariedade e o apoio mútuo, onde coexistem a liberdade
individual e social, mas onde também a criatividade e a responsabilidade
estarão sempre presente.
Finalmente, a organização
social, económica, política e cultural identificada com
os parâmetros da ecologia social anarquista terá que generalizar-se
à escala universal e estruturar-se organicamente em termos autogestionários
e federativos. Qualquer hipótese de emergência organizacional
centralista ou burocrática, neste contexto, não se afigura
plausível, na medida que a força estruturante das múltiplas
colectividades, grupos e indivíduos federados nas diferentes
escalas espaciais assumem uma soberania plena. A motivação
e a identificação entre o homem e a natureza, neste âmbito,
assume-se a uma escala universal. Bens e serviços, recursos naturais,
florestas, rios, mares, etc..., fazem parte de um todo indissolúvel,
que não pertence a uma colectividade específica, mas a
um legado indelével da natureza e da comunidade universal.
Mais de qualquer outra razão
e mais além de qualquer pressuposto realista da sociedade capitalista,
é na sua essência universal e emancipação
humana que o anarquismo se fundamenta. Assim sendo, há espaço
interventivo de construção social sustentado pela auto-organização
dos indivíduos e dos grupos, com uma interacção
social suficientemente capaz de apoiar-se no interconhecimento e na
democracia directa e dinamizar, por essa via, uma auto-consciência
e um auto-governo corporizados em acções individuais e
colectivas identitárias nas múltiplas colectividades que
compõem a sociedade global.
As diferentes colectividades,
grupos e indivíduos localizadas aos níveis espaciais local,
regional, nacional e transnacional, opor-se-ão ao centralismo
burocrático e repressivo do Estado-Nação e do imperialismo
das entidades estatais supra-nacionais. Elas têm virtualidades
que podem-se tornar reais. Através dos indivíduos, grupos
e movimentos sociais podem-se difundir práticas, teorias, manifestações,
etc..., que decorrem de um projecto de sociedade anarquista. Mais do
que nunca, as hipóteses de auto-organização e auto-reflexão
no sentido da libertação da espécie humana impõem-se.
Na medida em que toda a acção
individual e colectiva inserida nos espaços locais, regionais,
nacionais e transnacionais são progressivamente mais interdependentes
e complementares, a construção de sínteses no âmbito
do espaço mundial revela-se fulcral. Essa virtualidade, tantas
vezes considerada utópica, pode tornar-se real. Hoje, podermos
pensar e praticar a anarquia como algo natural e do domínio do
possível. É pacífico começarmos a construirmos
um movimento social suficientemente forte de forma a darmos início
à extinção da sociedade em que persistimos. Para
isso, basta aprender com o passado, olhar para o presente e lutar pela
construção de uma sociedade futura baseada nos princípios
e práticas da democracia directa, fraternidade, igualdade, solidariedade
e liberdade.
J. M. Carvalho Ferreira