Sociedade e Ecologia

Murray Bookchin

A humanidade tem sido difamada pelos próprios seres humanos, ironicamente como uma forma de vida amaldiçoada que acima de tudo destrói o mundo vivo e ameaça a sua integridade. À confusão que já temos acerca do nosso próprio tempo e identidade pessoais, junta-se agora a confusão de que a condição humana é vista como uma espécie de caos produzido pela nossa tendência para a destruição, e a nossa capacidade para o exercício dessa tendência é tanto maior precisamente porque possuímos razão, ciência e tecnologia. É até este ponto absurdo que certos anti-humanistas, biocentristas e misantropos podem levar a lógica das suas premissas.

Os problemas que muita gente enfrenta hoje em dia para «definir-se» a si própria, para conhecer «quem é» — problemas que alimentam a vasta indústria das psicoterapias — não são problemas apenas pessoais. Estes problemas existem não apenas ao nível dos indivíduos mas na própria sociedade moderna, entendida como um todo. Socialmente, vivemos numa desesperada incerteza sobre o modo como as pessoas se relacionam entre si. Não é só como indivíduos que sofremos de alienação e confusão acerca das nossas identidades e objetivos; toda a nossa sociedade, concebida como entidade, parece confusa quanto à sua natureza e direção. Se sociedades mais antigas tentaram fomentar a crença nas virtudes da cooperação e do apoio, desse modo atribuindo um sentido ético à vida social, a sociedade moderna fomenta a crença nas virtudes da competição e do egoísmo, assim despojando a associação humana de todo o seu significado — exceto, talvez, enquanto instrumento de ganho e de consumo sem sentido.

Somos tentados a acreditar que os homens e as mulheres de outros tempos eram guiados por convicções e esperanças — valores que os definiam precisamente como seres humanos e que davam sentido às suas vidas. Referimo-nos à Idade Média como uma «idade de fé», ou ao Iluminismo como uma «idade da razão». Mesmo na época anterior à Segunda Grande Guerra e nos anos que se lhe seguiram parecia haver um tempo fascinante de inocência e esperança, apesar do período da Grande Depressão e dos terríveis conflitos que a mancharam. É como se durante esses anos da guerra se fosse perdendo a inocência da juventude, e com isso a sua «limpidez» — o sentido das intenções e do idealismo que guiavam os comportamentos.

Essa «limpidez», hoje em dia, desapareceu. Foi substituída pela ambigüidade. A confiança em que a tecnologia e a ciência iriam melhorar a condição humana foi escarnecida pela proliferação das armas nucleares, das fomes maciças no terceiro mundo e da pobreza no primeiro. A ardente crença em que a liberdade triunfaria sobre a tirania foi desmentida pelo crescimento da centralização estatal um pouco por todo o lado e pelo enfraquecimento dos povos pelas burocracias, pelas forças policiais e pelas sofisticadas técnicas de vigilância — não menos nas nossas «democracias» do que nos países mais ostensivamente autoritários. A esperança em que viríamos a constituir «um único mundo», uma vasta comunidade de variados povos que partilhariam os seus recursos para melhorar a vida de todos, foi despedaçada por uma crescente maré de nacionalismo, racismo e um insensível paroquialismo que alimenta a indiferença perante a miséria de milhões.

Pensamos que os nossos valores são piores do que aqueles que tinham as pessoas apenas duas ou três gerações atrás. A geração atual parece mais autocentrada, isolada e conformada em comparação com as anteriores. Perdeu os sistemas de apoio que eram assegurados pelas redes familiares, pela comunidade, pelo empenho na ajuda mútua. O encontro do indivíduo com a sociedade parece ocorrer mais por frios procedimentos burocráticos do que por calorosos contatos pessoais.

Esta falta de sentido e de identidade social é a maior desolação, face aos crescentes problemas com que nos confrontamos. A guerra é uma condição crônica nos dias de hoje; a incerteza econômica, uma presença constante; a solidariedade humana, um mito rarefeito. O menor dos problemas que enfrentamos não é certamente o pesadelo de um apocalipse ecológico — uma ruptura catastrófica dos sistemas que mantêm a estabilidade do planeta. Vivemos debaixo da constante ameaça de que o mundo vivo esteja irrevogavelmente minado por uma sociedade enlouquecida pela sua necessidade de crescimento, substituindo o orgânico pelo inorgânico, o solo pelo cimento, as florestas por terrenos estéreis e a diversidade das formas de vida por ecossistemas despojados; em resumo, um andar para trás do relógio evolucionário, para um mundo mais antigo, mais inorgânico, mineralizado, incapaz de suportar quaisquer formas complexas de vida, incluindo a espécie humana.

A ambigüidade sobre o nosso destino, o nosso sentido, o nosso propósito, faz levantar uma questão assustadora: a sociedade é, em si própria, uma maldição, uma praga para a vida em geral? Temos alguma solução para este novo fenômeno chamado «civilização» que parece estar num ponto de destruição de todo o mundo natural, que foi o resultado de milhões de anos de evolução orgânica?

Uma imensa literatura sobre estas questões emergiu, ganhando a atenção de milhões de leitores: uma literatura que fomenta um novo pessimismo em relação à civilização, enquanto tal. Esta literatura cava um fosso de antagonismos entre a tecnologia e uma natureza orgânica presumidamente «virginal», a cidade e o rural, o rural e o «selvagem», a ciência e uma «reverência» pela vida, a razão e a «inocência» da intuição, em suma, a humanidade contra a biosfera inteira.

Mostramos os sinais da perda de fé na nossa ímpar capacidade humana — a capacidade de viver em paz uns com os outros, a nossa capacidade de atender aos outros seres humanos e às outras formas de vida. Este pessimismo é alimentado diariamente pelos sociobiologistas, que pretendem localizar as nossas falhas nos nossos genes, pelos antihumanistas que lamentam a nossa sensibilidade «antinatural», e pelos biocentristas que desdizem as nossas qualidades racionais com noções de que não somos, em «valor intrínseco», muito diferentes das formigas. Em resumo, testemunhamos o alastrar do assalto contra as capacidades da razão, da ciência e da tecnologia em contribuírem para a melhoria do mundo, para nós próprios e para a vida em geral.

A idéia histórica de que a civilização é, inevitavelmente, oposta à natureza, e que portanto corrompe a «natureza humana», emerge entre nós ressurgindo da época de Rousseau, ou seja, precisamente no momento em que a nossa necessidade de uma civilização verdadeiramente humana e ecológica é maior que nunca, se quisermos salvar o planeta e a nós próprios. A civilização, com todas as suas marcas da razão e da tecnologia, é cada vez mais vista como uma nova praga. Mais ainda, a sociedade enquanto tal vem sendo tão posta em causa quanto o seu papel na formação da humanidade é entendido como algo verdadeiramente «não-natural» e intrinsecamente destrutivo.

A humanidade, com efeito, tem sido difamada pelos próprios seres humanos, ironicamente como uma forma de vida amaldiçoada que acima de tudo destrói o mundo vivo e ameaça a sua integridade. À confusão que já temos acerca do nosso próprio tempo e identidade pessoais, junta-se agora a confusão de que a condição humana é vista como uma espécie de caos produzido pela nossa tendência para a destruição, e a nossa capacidade para o exercício dessa tendência é tanto maior precisamente porque possuímos razão, ciência e tecnologia.

É até este ponto absurdo que certos antihumanistas, biocentristas e misantropos podem levar a lógica das suas premissas.

O que é vital nesta mistura de resmungos e meias idéias é que, afinal, as várias formas de instituições e de relações que compõem aquilo a que chamamos sociedade são largamente ignoradas. De fato, o uso de expressões genéricas como «humanidade» ou de termos zoológicos como homo sapiens oculta vastas diferenças ou mesmo amargos antagonismos, como os que existem entre brancos e pretos, homens e mulheres, ricos e pobres, opressores e oprimidos; do mesmo modo, vagas expressões como «sociedade» e «civilização» escondem as diferenças entre sociedades livres, não hierárquicas, sem Estado e sem classes, por um lado, e sociedades que são, mesmo que em graus diferentes, hierárquicas, estatistas, autoritárias ou dirigidas por interesses de classe, por outro. A zoologia, com efeito, substitui aqui uma ecologia socialmente comprometida; o radicalismo das «leis naturais» baseadas nas curvas populacionais entre os animais substitui os conflitos econômicos e os interesses sociais entre os homens.

Simplesmente, opor a «sociedade» à «natureza», a «humanidade» à «biosfera» e a «razão», a «tecnologia» e a «ciência» a modos menos desenvolvidos, até mesmo primitivos, de interação com o mundo natural, impede-nos de examinar as diferenças e divisões altamente complexas existentes dentro da sociedade, o que é absolutamente necessário para a definição dos nossos problemas e das suas soluções.

O antigo Egito, por exemplo, tinha uma atitude em relação à natureza significativamente diferente da da antiga Babilônia. O Egito assumia uma atitude de reverência para com uma multidão de divindades essencialmente animistas, muitas das quais eram fisicamente meio humanas meio animais, enquanto os babilônios criavam um panteão de divindades políticas bastante humanas. Mas o Egito nem por isso era menos hierárquico do que a Babilônia no modo como tratava o seu povo e igualmente, se não mais, opressor em relação à individualidade do homem. Alguns povos caçadores podem ser tão destrutivos da vida selvagem, apesar das suas fortes crenças animistas, como as culturas urbanas que se apoiam na exaltação do racionalismo. Quando estas inúmeras diferenças são simplesmente engolidas conjuntamente com a grande variedade de formas sociais por uma palavra chamada «sociedade», estamos tão só a violentar o raciocínio, ou a própria inteligência. A sociedade em si torna-se qualquer coisa de não-natural. A razão, a ciência, a tecnologia tornam-se coisas destrutivas, sem qualquer relação com os fatores sociais que condicionam o seu uso. As ações humanas sobre o ambiente natural são entendidas como ameaças — enquanto a nossa espécie pouco ou nada pode fazer para melhorar o planeta ou a vida, em geral.

É claro, não somos menos animais do que os outros mamíferos, mas somos algo mais do que rebanhos nas planícies africanas. O modo como somos este algo mais — nomeadamente pelos tipos de sociedade que formamos e como nos dividimos uns contra os outros em hierarquias e classes — é que afeta profundamente os nossos comportamentos e os efeitos que podemos provocar no mundo natural.

Afinal, ao separar tão radicalmente da natureza humanidade e sociedade, ou ao reduzilas ingenuamente a meras entidades zoológicas, não se entende como é que a natureza humana deriva de uma natureza inumana, e a evolução social de uma evolução natural. A humanidade torna-se estranha e alienada não apenas de si mesma, nesta nossa idade da alienação, mas do próprio mundo natural, no qual sempre teve as suas raízes enquanto força viva complexa e pensante.

Assim, somos alimentados por uma dieta de recriminações, por ambientalistas liberais e misantrópicos, acerca de como a nossa espécie tem sido responsável pelas rupturas ambientais. Não é preciso irmos aos terreiros de gurus e místicos em São Francisco para encontrar esta visão associal dos problemas ecológicos e das suas causas; podemos fazê-lo facilmente em Nova Iorque. Não me esquecerei facilmente de uma exposição «ambiental» no Museu de História Natural, nos anos 70, em que o público era colocado perante uma longa série de quadros apresentando exemplos de poluição e ruptura ecológica. A exposição culminava com uma assustadora chamada ao «Mais Perigoso Animal sobre a Terra», que consistia, tão simplesmente, num espelho que refletia o observador humano plantado em frente a ele. Recordo claramente uma criança negra de pé em frente ao espelho, enquanto um professor branco lhe tentava explicar a mensagem que esta arrogante exposição procurava transmitir. Não estavam lá expostos os conselhos de administração a planear a desflorestação de uma colina, nem os governantes a atuar como seus cúmplices. A exposição transmitia uma mensagem basicamente misantrópica: as pessoas, enquanto tais, não uma sociedade rapace nem os seus poderosos beneficiários, são os responsáveis pelas alterações ambientais: os pobres não menos do que os ricos, as pessoas de cor do que os privilegiados brancos, as mulheres do que os homens, os oprimidos do que os opressores. Uma mítica espécie humana surge no lugar das classes, o indivíduo substitui as hierarquias, os gostos e valores pessoais (muitos dos quais são o resultado dos predadores meios de comunicação de massas) em vez das relações sociais e os despossuídos, com as suas vidas estéreis e isoladas, estão no lugar das gigantescas corporações, das burocracias que se auto-alimentam, da violenta parafernália do Estado.

A relação da sociedade com a natureza

Deixando de lado estas ultrajantes exposições «ambientais», que pretendem colocar os privilegiados e os desprivilegiados dentro da mesma moldura, parece apropriado neste momento trazer à tona uma necessidade altamente relevante: a necessidade de recolocar a sociedade dentro de um quadro ecológico. Mais do que nunca, a ênfase deve ser posta no fato de que praticamente todos os problemas ecológicos são problemas sociais, e não só a resultante de ideologias religiosas, espirituais ou políticas. Que estas ideologias possam promover uma atitude anti-ecológica em pessoas de todos os estratos não deixa de ser importante, mas mais do que tomar simplesmente as ideologias pelo seu valor aparente é para nós crucial questionar de onde é que elas surgiram e como se desenvolveram.

Com bastante freqüência as necessidades econômicas podem forçar as pessoas a agir contra os seus melhores impulsos, mesmo que sejam fortes valores naturais. Os lenhadores que são contratados para cortar uma magnífica floresta normalmente não têm nenhuma aversão às árvores; eles têm pouca ou nenhuma escolha em relação a cortar as árvores, assim como os trabalhadores dos matadouros pouca ou nenhuma têm em relação ao abate dos animais. Qualquer comunidade ou profissão terá a sua quota-parte de sádicos ou de indivíduos com tendências destrutivas, e bem podemos aqui incluir os ambientalistas misantropos que gostariam de ver a humanidade exterminada, mas para a grande maioria das pessoas este tipo de tarefas, bem assim como outras particularmente penosas, como os mineiros, não são o resultado de uma livre escolha. Elas são motivadas pela necessidade e, sobretudo, resultam de contingências sociais sobre as quais as pessoas comuns nenhum controle conseguem ter.

Para compreender os problemas atuais, os ecológicos da mesma maneira que os econômicos e os políticos, há que examinar as suas causas sociais e procurar as suas soluções através de processos também sociais. A ecologia profunda, espiritual e misantrópica, desvia-nos gravemente destas questões quando nos chama a atenção mais para os sintomas do que para as causas. Se a nossa obrigação é ver as mudanças nas relações sociais de modo a compreender as mudanças ecológicas mais significativas, este tipo de ecologia, pelo contrário, afasta-se da sociedade e dirige-se para o «espiritual», o «cultural» ou para aquilo que vagamente designa como raízes «tradicionais». Não foi a Bíblia que criou um antinaturalismo europeu, ela apenas serviu para justificar um antinaturalismo já existente desde os tempos pagãos, apesar da feição animista das religiões pré-cristãs. A influência antinaturalista cristã tornou-se especialmente marcada com a emergência do capitalismo. A sociedade não tem apenas que ser trazida a um quadro ecológico para perceber porque é que as pessoas tendem a optar por sensibilidades competitivas — algumas fortemente naturalistas, outras fortemente antinaturalistas — mas temos que pesquisar mais fundo dentro da própria sociedade. Temos de procurar o relacionamento da sociedade com a natureza, as razões por que pode destruir o mundo natural e, em alternativa, as razões por que conseguiu, e ainda pode, alimentar e fortemente contribuir para a evolução natural.

Enquanto até agora podemos falar de «sociedade» num sentido geral e abstrato — e recordemos que cada sociedade é absolutamente única e diferente das outras numa perspectiva histórica — é necessário examinar o que melhor chamaríamos socialização, e não apenas a sociedade. A sociedade é um dado conjunto de relações que tendemos a considerar como definidas e estáticas. Para muita gente, é como se a sociedade de mercado, baseada na competição e na compra e venda, sempre tivesse existido, embora tenhamos uma vaga idéia da existência de sociedades pré-mercantis, baseadas na troca de dádivas e na cooperação. A socialização, por outro lado, é um processo, no mesmo sentido em que um indivíduo vivo o é também. Historicamente, o processo de socialização pode ser visto como uma espécie de infância social, que implica uma dolorosa construção da maturidade social da humanidade.

Mas quando consideramos a socialização mais atentamente, o que acaba por nos impressionar é que a própria sociedade, na sua forma mais básica, radica na natureza. Qualquer evolução social, de fato, é virtualmente uma extensão da evolução natural, no domínio específico da humanidade. Como já dizia Cícero, orador e filósofo romano, há dois mil anos atrás : «…pelo uso das nossas mãos construímos, dentro do reino da Natureza, uma segunda natureza para nós próprios.» Na verdade, a frase de Cícero até é bastante incompleta: o primitivo e presumidamente intocado «estado de natureza», ou «primeira natureza», é reconstruído numa «segunda natureza» não só pelo uso das nossas mãos; o pensamento, a linguagem e as complexas e importantes mudanças biológicas desempenham igualmente um papel crucial e muitas vezes decisivo no desenvolvimento dessa «segunda natureza».

Uso o termo reconstruir deliberadamente para focar o fato de essa segunda natureza não ser um fenômeno que se desenvolva à parte da «primeira natureza» — e daí o especial valor que apresenta a expressão de Cícero «dentro do reino da Natureza». Para sublinhar que a segunda natureza, ou mais precisamente a sociedade, para usar esta palavra no seu sentido mais geral, emerge de dentro da primitiva «primeira natureza», está o fato de a vida social ter sempre uma dimensão naturalista, por muito que a sociedade seja oposta à natureza no nosso modo de pensar. A ecologia social claramente expressa o fato de a sociedade não ser uma irrupção súbita no mundo; a vida social não tem necessariamente que enfrentar a natureza como um combatente numa guerra inevitável. A emergência da sociedade é um dado natural que tem a sua origem na biologia da socialização humana.

Este processo de socialização humana de que emerge a sociedade — seja sob a forma de famílias, bandos, tribos ou outros tipos mais complexos de inter-relacionamento — tem a sua origem na relação parental, particularmente na vinculação mãe-filho. A mãe biológica, para sermos precisos, pode ser substituída por outros, incluindo o pai, outros familiares ou, para o que aqui interessa, pelos membros da comunidade. É quando os pais sociais e a «linhagem» social, isto é, a comunidade humana que está à volta do jovem, começam a participar num sistema de proteção e cuidados, o que é habitualmente desempenhado pelos pais biológicos, que a sociedade começa verdadeiramente a revelar-se.

A sociedade ultrapassa, então, e muito o mero grupo reprodutivo; mas fá-lo a partir das relações humanas institucionalizadas ou de uma comunidade animal relativamente informe rumo a uma ordem social claramente estruturada. Mas no início mesmo da sociedade, parece que os seres humanos são socializados na sua «segunda natureza» através de laços de sangue profundos, especificamente os laços maternos. Podemos ver que ao longo do tempo as estruturas ou instituições que marcaram o avanço da humanidade, da mera comunidade animal a uma autêntica sociedade, começam por sofrer mudanças de longo alcance, e estas mudanças tornam-se questões de suprema importância para a ecologia social. Para o melhor e para o pior, as sociedades desenvolvem-se à volta de grupos de status, hierarquias, classes, formações estatais. Mas a reprodução e os cuidados familiares continuam a ser a permanente base biológica para qualquer forma de vida social, assim como o fator original da socialização dos jovens e da formação da sociedade. Como observou R. Briffault na primeira metade deste século, «um fator conhecido que estabelece uma profunda distinção entre a constituição dos grupos humanos mais rudimentares e todos os outros grupos animais [é a] associação das mães e das crias, que é a única forma verdadeira de solidariedade social entre os animais. Em toda a classe dos mamíferos há uma crescente duração desta associação, que é a conseqüência do prolongamento da dependência infantil», um prolongamento que Briffault relaciona com o aumento do período de gestação fetal e com os avanços na inteligência da espécie.

A dimensão biológica que Briffault acrescenta àquilo que chamamos sociedade e socialização não pode ser acentuada em demasia. É uma presença decisiva, não apenas nas origens da sociedade ao longo dos tempos da evolução animal mas também nas nossas vivências quotidianas. O aparecimento de uma nova criança e a extensão dos cuidados e atenções que ela recebe, por muitos anos, recordam-nos que não se trata apenas de um ser humano que se reproduziu, mas da própria sociedade. Em comparação com os elementos juvenis de outras espécies, as crianças desenvolvem-se lentamente e durante muito tempo. Ao viverem em estreita associação com os pais, com os seus antecessores, com o seu grupo de parentesco e com uma alargada comunidade de gente, elas mantêm uma plasticidade mental que faz a criatividade individual e a capacidade de formar grupos sociais. Ainda que outros animais se possam aproximar das formas humanas de associação em vários aspectos, eles não criam uma «segunda natureza» que incorpore as tradições culturais, nem possuem uma linguagem complexa, nem elaboram poderes conceptuais ou uma impressiva capacidade de reestruturar o seu ambiente de acordo com as suas necessidades.

Os chimpanzés, por exemplo, apenas permanecem crianças durante três anos, e a sua fase juvenil é de sete anos; aos dez anos já são adultos completos. As crianças humanas, em contraste, são consideradas infantis durante seis anos e jovens durante catorze. Ou seja, um chimpanzé cresce mental e fisicamente em mais ou menos metade do tempo que é necessário a um humano, e a sua capacidade para aprender está já estabelecida por comparação com o ser humano, cujas capacidades mentais podem continuar a expandir-se durante décadas. Do mesmo modo, as associações nos chimpanzés são geralmente muito particulares e razoavelmente limitadas. As associações humanas, pelo contrário, são basicamente estáveis, fortemente institucionalizadas e caracterizadas por um grau de solidariedade e de criatividade sem igual noutras espécies, tanto quanto sabemos.

Este prolongado grau de plasticidade mental humana, de dependência e criatividade social produzem dois resultados de importância decisiva. Em primeiro lugar, as associações humanas primitivas terão alimentado uma forte predisposição para a interdependência entre os membros do grupo, e não o «rude individualismo» a que associamos a independência. A enorme massa de dados antropológicos sugere que a participação, a ajuda mútua, a solidariedade e a empatia seriam os valores sociais que os primeiros humanos sublinhavam dentro das suas comunidades. A idéia de que as pessoas são interdependentes para que a sua vida seja melhor, senão mesmo para a sua própria sobrevivência, é uma seqüência da prolongada dependência dos jovens em relação aos adultos. A independência, para não dizer já a competição, teria parecido completamente estranha, senão mesmo bizarra, a uma criatura mantida durante largos anos em condição de dependência. A proteção dos outros seria vista como um resultado perfeitamente normal para um ser altamente aculturado e que era, por sua vez, claramente necessitado de cuidados prolongados. A nossa versão moderna de individualismo, ou mais precisamente de egoísmo, terá cortado rente a semente da primitiva solidariedade e da ajuda mútua — características, devo acrescentar, sem as quais um animal tão frágil fisicamente como o ser humano dificilmente conseguiria sobreviver como adulto, quanto mais como criança.

Em segundo lugar, a interdependência humana teria assumido uma forma bastante estruturada. Não há nenhuma evidência de que os seres humanos normalmente se relacionem entre si através do tipo de vagos laços que encontramos nos nossos primos chegados, os primatas. Que os laços sociais humanos podem ser dissolvidos ou desinstitucionalizados em momentos de mudança radical ou de ruptura cultural é demasiado óbvio para ser discutido; mas em condições relativamente estáveis, a sociedade humana nunca foi a «horda» que os antropólogos do século passado supunham como base rudimentar da vida social. Pelo contrário, as provas que possuímos apontam precisamente para o fato de que todos os humanos, talvez até incluindo os nossos longínquos antepassados hominídios, viveram num certo tipo de grupos familiares estruturados e, posteriormente, em bandos, tribos, aldeias. Resumindo, interligaram-se (como ainda fazem) não apenas emocional e moralmente mas também estruturalmente, em planeadas, claramente definíveis e razoavelmente permanentes instituições.

Outros animais podem constituir vagas comunidades, ou mesmo tomar disposições coletivas para proteger os seus jovens dos predadores, mas dificilmente tais comunidades podem ser consideradas estruturadas, a não ser num largo e efêmero sentido. Os humanos, pelo contrário, criam comunidades altamente formalizadas que se vão estruturando cada vez mais ao longo do tempo. Com efeito, eles não formam somente comunidades; formam esse novo fenômeno chamado sociedade.

Se não formos capazes de distinguir as comunidades animais das sociedades humanas, arriscamo-nos a ignorar o único fato que distingue a vida social humana das comunidades animais — especialmente a capacidade da sociedade de mudar, melhor ou pior, e os fatores que produzem essas mudanças. Reduzindo uma sociedade complexa a uma simples comunidade, facilmente podemos esquecer quanto as sociedades têm sido diferentes umas das outras ao longo da História. Podemos igualmente falhar na compreensão de como elas vão construindo simples diferenças de status em hierarquias estabelecidas, ou hierarquias em classes econômicas. Na verdade, corremos o risco de uma total incompreensão do verdadeiro sentido de vocábulos como «hierarquia», enquanto sistema altamente organizado de comando e obediência — e nisso se distinguindo das diferenças de status, pessoais, individuais e tantas vezes de curto alcance e que não envolvem atos compulsivos. Temos tendência, de fato, a confundir as criações estritamente institucionais da vontade humana, propósitos, interesses conflituais e tradições, com a vida da comunidade nas suas mais definidas formas, ainda que lidemos com características inerentes e aparentemente inalteráveis da sociedade, mais do que com estruturas fabricadas que possam ser modificadas, melhoradas, pioradas ou simplesmente abandonadas. A manha de todas as elites dirigentes, do princípio da História até aos tempos modernos, tem sido a de conseguir fazer identificar os seus próprios sistemas de dominação, socialmente construídos, com a própria sociedade, disso resultando o fato de instituições feitas pelo homem adquirirem assim uma intocabilidade divina ou biológica.

Uma dada sociedade e as suas instituições, deste modo, tendem a tornar-se entidades permanentes e imutáveis que adquirem uma misteriosa vida própria, fora da natureza — nomeadamente, os produtos de uma aparentemente definida natureza humana que é o resultado da programação genética do início da vida social. Em alternativa, noutra visão, uma dada sociedade e as suas instituições podem dissolver-se na natureza, como outra mera forma de comunidade animal, com os seus machos dominantes, guardiões, líderes e rebanho. Quando temas desagradáveis como a guerra ou os conflitos sociais se colocaram, foram atribuídos à atividade de «genes» que presumivelmente desencadeiam a guerra, ou até a «ganância».

Em qualquer dos casos, é esta a noção de uma sociedade abstrata que existe para lá da natureza, ou de uma comunidade natural que é indistinguível da natureza, um dualismo que aparece e que friamente separa a sociedade da natureza, ou um tosco reducionismo que surge e dissolve a sociedade na natureza. Estas noções aparentemente contrastantes mas na verdade intimamente relacionadas são tanto mais sedutoras quanto são simplistas. Apesar de serem muitas vezes apresentadas pelos seus apoiantes mais sofisticados de uma forma razoavelmente matizada, tais noções são facilmente reduzidas a slogans grandiloqüentes que cristalizam como dogmas fáceis e poderosos.

A ecologia social

A abordagem da sociedade e da natureza que é feita pela ecologia social pode parecer mais exigente intelectualmente, mas assim evita o simplismo do dualismo e a rudeza do reducionismo. A ecologia social tenta mostrar de que modo a natureza lentamente se introduz na sociedade, sem ignorar as diferenças entre uma e outra, por um lado, nem a extensão pela qual se fundem, por outro. A socialização diária dos jovens pela família não radica menos na biologia do que os cuidados diários aos velhos pela instituição médica radicam nos duros fatos sociais. Do mesmo modo, nunca deixamos de ser mamíferos que ainda mantêm os mesmos impulsos primários naturais, mas institucionalizamos esses impulsos e a sua satisfação numa ampla variedade de formas sociais. Assim, o social e o natural continuamente se interpenetram nas atividades mais comuns do dia a dia, sem perda da sua identidade, num processo partilhado de interação e interatividade.

A ecologia social levanta questões importantes quanto aos diferentes modos como a natureza e o social têm interagido ao longo dos tempos e que problemas essa interação tem originado. Como é que emergiu uma relação entre a humanidade e a natureza de tipo divisionista, mesmo conflitual? Quais foram as formas institucionais e as ideologias que o tornaram possível? Considerando o crescimento das necessidades humanas e da tecnologia, era tal conflito inevitável? E poderá ele ser ultrapassado no futuro, numa sociedade ecologicamente empenhada?

De que modo é que uma sociedade racional e ecologicamente orientada se adequa ao processo da evolução natural? Indo ainda mais longe: existe alguma razão para crer que a mente humana, ela própria um produto da evolução, assim como a cultura, representa um cume decisivo de desenvolvimento natural — nomeadamente no longo desenvolvimento das formas de vida simples até à notável intelectualidade e autoconsciência das mais complexas?

Ao colocar estas questões altamente provocatórias não pretendo justificar nenhuma pomposa arrogância em relação à vida não-humana. Claramente, devemos trazer a particularidade da humanidade como espécie, caracterizada por atributos sociais, imaginativos e construtivos preciosos, à sincronicidade com a fecundidade, diversidade e criatividade da natureza. Defendo que esta sincronicidade não deve ser conseguida à custa da oposição entre natureza e cultura, vida humana e não-humana, fecundidade natural e tecnologia ou uma subjetividade natural oposta à mente humana. De fato, um importante resultado que emerge da discussão do inter-relacionamento da natureza com a sociedade é o fato do pensamento humano ter também uma base natural. O nosso cérebro e o nosso sistema nervoso não surgiram repentinamente, têm uma longa história natural. Aquilo que mais prezamos como integral para a nossa humanidade — a nossa extraordinária capacidade de pensar em níveis conceptuais complexos — pode ser pesquisado desde a rede nervosa dos invertebrados primitivos, os gânglios dos moluscos, a medula dos peixes, o cérebro dos anfíbios, até ao córtex dos primatas.

Mesmo aqui, no mais íntimo dos nossos atributos humanos, não somos menos produto da evolução natural do que da evolução social. Enquanto seres humanos incorporamos eras de diferenciação e elaboração orgânicas. Como as outras formas de vida complexas, não somos apenas parte da evolução natural, somos igualmente seus herdeiros e produto da fecundidade natural.

Ao tentar mostrar como a sociedade lentamente vai crescendo a partir da natureza, no entanto, a ecologia social também se vê obrigada a mostrar como a sociedade também sofre diferenciação e elaboração internas. Ao fazê-lo, a ecologia social deve examinar aquelas costuras na evolução social em que as rupturas ocorrem, empurrando lentamente a sociedade para uma oposição ao mundo natural, e explicar a emergência desta oposição desde as suas origens pré-históricas até aos nossos dias. De fato, se a espécie humana é uma forma de vida que pode conscientemente enriquecer o mundo natural, em vez de apenas lhe causar prejuízo, é importante para a ecologia social revelar os fatores que tornaram muitos seres humanos parasitas de um mundo vivo, e não parceiros ativos da evolução orgânica. Este projeto deve ser assumido não de um modo ocasional mas como uma séria tentativa de dar coerência à evolução natural e social, e como relevante para os nossos tempos e para a construção de uma sociedade ecológica.

Talvez que um dos contributos mais importantes da ecologia social para as discussões atuais no seio da ecologia seja o ponto de vista de que os problemas básicos que colocam a sociedade contra a natureza estão situados dentro do próprio desenvolvimento social, e não entre a sociedade e a natureza. Que é o mesmo que dizer que as divisões entre sociedade e natureza têm as suas raízes profundas nas divisões internas no domínio do social, nomeadamente nos conflitos entre humanos, que tantas vezes ignoramos pelo uso generalizado da palavra «humanidade».

Esta visão fundamental corta com as raízes de quase todo o pensamento ecológico contemporâneo, e mesmo das teorizações sociais. Uma das mais arreigadas noções que o pensamento ecológico atual partilha com o liberalismo, o marxismo e o conservadorismo é a da crença histórica de que o domínio da natureza exige o domínio do homem pelo homem. Isto é igualmente óbvio nas teorias sociais; quase todas as nossas ideologias sociais contemporâneas colocaram a noção de dominação humana no centro das suas teorizações. Tal continua a ser uma das noções mais largamente aceites, dos pensadores clássicos aos contemporâneos, de que a libertação do «homem da dominação pela natureza» arrasta a dominação do homem pelo homem, como nos primeiros modos de produção e o uso de seres humanos como instrumentos de sujeição do mundo natural. Por isso, no sentido de domar o mundo natural, foi defendido durante muito tempo que era necessário sujeitar os seres humanos enquanto tal, sob forma de escravos, servos e trabalhadores.

Que esta noção instrumental penetre a ideologia de quase todas as elites dirigentes e que tenha fornecido quer aos movimentos liberais quer conservadores argumentos para a sua conformação com o status quo, não exige grande reflexão. O mito de uma natureza «mesquinha» sempre foi usado para justificar a «prodigalidade» dos exploradores no seu severo tratamento dos explorados — e forneceu a desculpa para o oportunismo político liberal, tanto quanto o dos conservadores. Trabalhar «por dentro do sistema» sempre implicou uma aceitação da dominação como forma de «organização» da vida social e, quanto muito, um modo de libertação dos humanos da sua presumida dominação pela natureza.

O que talvez seja menos conhecido, no entanto, é que também Marx justificava o surgimento da sociedade de classes e do Estado como etapas para o domínio da natureza e, presumivelmente, a libertação da humanidade. Foi na força desta visão histórica que Marx formulou a sua concepção materialista da história e baseou a sua crença na necessidade da sociedade de classes como ponto de apoio na marcha histórica para o comunismo.

Ironicamente, muito do que atualmente passa por ecologia anti-humanística e mística envolve exatamente o mesmo tipo de pensamentos, mas na sua forma invertida. Assim como os seus oponentes instrumentais, estes ecologistas assumem que a humanidade é dominada pela natureza, seja sob a forma de «leis naturais» ou de uma inefável «sabedoria da terra» que guiam o comportamento humano. Mas enquanto os seus adversários defendem a necessidade de conseguir uma «rendição» da natureza a uma humanidade activa-agressiva e «conquistadora», os ecologistas antihumanistas e místicos defendem a «rendição» de uma humanidade passiva-receptiva a uma natureza «conquistadora». Por muito que estes dois pontos de vista se diferenciem no seu paleio e nas suas lamentações, a dominação permanece a noção subjacente em ambos: um mundo natural concebido como dirigente, seja para ser controlado ou obedecido.

A ecologia social confronta esta armadilha dramaticamente, reexaminando o próprio conceito de dominação, seja na natureza ou na sociedade ou sob a forma de lei natural ou social. Aquilo a que habitualmente chamamos dominação na natureza é uma projeção humana dos sistemas altamente organizados de comando e obediência «social» para altamente idiossincráticas, individuais e assimétricas formas de comportamento, freqüentemente subtis, de coerção em comunidades animais. Simplificando, os animais não «dominam» outros animais do mesmo modo que a elite humana domina e explora um grupo social oprimido. Nem «governam» através de formas sistemáticas de violência, como o fazem as elites sociais. Entre os macacos, por exemplo, existe pouca ou nenhuma coerção, mas tão só esporádicas formas de comportamento dominante. Os gibões e os orangotangos são notáveis pelo seu comportamento pacífico para os membros da sua própria espécie. Os gorilas são freqüentemente também pacíficos, apesar de poderem assumir um «alto status», como o dos machos maduros e fisicamente mais fortes em relação ao «baixo status» dos mais jovens e fracos. Os «machos dominantes» entre os chimpanzés não ocupam posições de «status» muito definidas naquilo que são os seus grupos flutuantes; o «status» que adquirem acaba por dever-se a uma variedade de causas.

Pode-se saltar de uma espécie animal para outra, acabando por encontrar várias situações de diferenciação e assimetria que levam a procurar «altos» e «baixos status» individuais. Esta pesquisa vai-se tornando sem sentido, no entanto, quando termos como «status» são usados tão flexivelmente que permitem a inclusão de meras diferenças de comportamento e de funções dentro do grupo, em vez de cações coercivas.

O mesmo se pode dizer em relação ao termo «hierarquia». Seja na sua origem seja no seu sentido estrito, este termo é fortemente social, não zoológico. Termo grego, originalmente usado para designar diferentes níveis de divindades e, mais tarde, do próprio clero (caracteristicamente, Hierapolis era uma antiga cidade frígia, na Ásia Menor, que foi o centro do culto da deusa-mãe), a palavra foi-se expandindo para recobrir tudo, desde as colmeias até ao efeito da erosão de uma corrente de água sobre o leito de pedras, entendido como um esgotamento e um «domínio» desse leito. As cuidadosas mães elefantes foram consideradas «matriarcas» e os atentos macacos machos, que mostram uma grande dose de coragem na defesa da sua comunidade, adquirindo com isso alguns «privilégios», são geralmente designados como «patriarcas». A ausência de um sistema organizado de governação nestas comunidades animais — tão comum nas comunidades humanas hierarquizadas e sujeito a mudanças institucionais radicais, incluindo revoluções populares — é largamente ignorado.

Mais uma vez, as diferentes funções que as presumíveis hierarquias animais desempenhariam, isto é, as causas assimétricas que colocam um indivíduo num «estatuto alfa» e os outros em estatutos inferiores, são entendidas onde, simplesmente, as notamos. Poder-se-ia, pelo mesmo princípio, colocar as maiores sequóias gigantes num «status» superior em relação às mais pequenas, ou então encará-las como a elite da floresta, hierarquicamente dominantes em relação aos «submissos» carvalhos, os quais, só para complicar, até são mais avançados nas escalas evolutivas. A tendência para mecanicamente projetarmos categorias sociais no mundo natural é tão irracional como a tentativa de projetarmos conceitos biológicos na geologia. Os minerais não se «reproduzem» como o fazem os seres vivos. As estalactites e as estalagmites, nas cavernas, vão crescendo ao longo dos tempos mas nenhum sentido do seu crescimento pode mesmo remotamente corresponder ao crescimento dos seres vivos. Considerar algumas semelhanças superficiais, por vezes obtidas por estranhas maneiras, e agrupá-las em identidades partilhadas, é como falar no «metabolismo» das rochas ou na «moralidade» dos genes.

Isto põe a questão das repetidas tentativas de encontrar traços éticos e sociais no mundo natural, que será apenas potencialmente ético tanto quanto pode constituir uma base para uma ética social objetiva. Sim, certamente que a coerção existe na natureza, mas nesta também existem a dor e o sofrimento. No entanto, a crueldade não existe. As intenções e as vontades dos animais são demasiado limitadas para produzir uma ética de bem e de mal, de bondade e crueldade. A evidência de pensamento conceptual e inferente é muito limitada entre os animais, exceto nos primatas, nos cetáceos, nos elefantes e talvez nuns quantos outros mamíferos. Mesmo entre os mais inteligentes animais os limites do seu pensamento são imensos comparativamente às extraordinárias capacidades dos seres humanos socializados. Podemos mesmo admitir que somos ainda pouco humanos atualmente, em função do nosso ainda desconhecido potencial para sermos mais criativos, atenciosos e racionais. A nossa sociedade dominante serve mais para inibir do que para realizar o nosso potencial humano. Ainda nos falta imaginação para saber até onde as nossas melhores características se podem expandir, com uma administração dos nossos assuntos mais ética, ecológica e racional.

Em contraste, o mundo não-humano conhecido parece ter atingido limites visíveis para a sua capacidade de sobrevivência às mudanças ambientais. Se a mera adaptação às alterações no ambiente é entendida como o critério para o êxito evolutivo (como muitos biólogos entendem), então os insetos devem ser colocados num lugar mais elevado de desenvolvimento do que qualquer mamífero. No entanto, eles não seriam capazes de produzir uma avaliação intelectual de si próprios tão imponente como a «abelha rainha» poderia ter-se, mesmo remotamente, tivesse consciência do seu «real» estatuto — devo acrescentar, um estatuto que apenas os humanos (que sofreram a dominação social de estúpidos, cruéis e ineptos reis e rainhas) seriam capazes de atribuir a um inseto inconsciente.

Nenhuma destas questões pretendem metafisicamente opor a natureza à sociedade, ou a sociedade à natureza. Pelo contrário, a sua intenção é defender que o que une a sociedade à natureza numa contínua e gradativa evolução é a notável extensão pela qual os seres humanos, vivendo numa sociedade racional e ecologicamente orientada, poderiam envolver a criatividade da natureza — distinguindo-se isto de um critério de êxito evolutivo puramente adaptativo. As grandes realizações do pensamento humano, a arte, a ciência e tecnologia, não servem apenas para monumentalizar a cultura, servem igualmente para monumentalizar a própria evolução natural. Fornecem-nos provas heróicas de que a espécie humana é uma forma de vida de sangue quente, excitantemente versátil e agudamente inteligente — e não um inseto de sangue frio, geneticamente programado e destituído de mente —, o que demonstra os grandes poderes da criatividade natural.

As formas de vida que criam e conscientemente alteram o seu meio ambiente, desejavelmente no sentido de o tornar mais racional e ecológico, representam uma vasta e indefinida extensão da natureza para um fascinante, e talvez ilimitado, campo de evolução, no qual nenhuma espécie de insetos alguma vez terá lugar — a evolução de uma natureza totalmente autoconsciente. Se isto é humanismo, ou mais precisamente humanismo ecológico, a corrente produção de antihumanistas e de misantropos é bem-vinda para fazer parte dele.

A natureza, por sua vez, não é apenas um cenário que admiremos através duma janela — uma vista congelada numa paisagem ou num panorama estáticos. Tal paisagem de imagens da natureza poderá ser espiritualmente estimulante, mas é ecologicamente enganadora. Parada no tempo e no espaço, esta imagem faz com que nos seja mais fácil esquecer que a natureza não é uma visão estática do mundo natural mas uma longa e cumulativa história do desenvolvimento natural. Esta história envolve a evolução inorgânica tanto quanto a evolução orgânica. Onde quer que estejamos, num campo, numa floresta ou no topo de uma montanha, os nossos pés assentam em eras de desenvolvimento, sejam os estratos geológicos, fósseis de vidas há muito extintas, a decomposição das recentemente mortas ou a calma excitação de novas vidas a emergir. A natureza não é uma «pessoa», uma «mãe carinhosa» nem, na crua linguagem materialista do século passado, «matéria e movimento». Nem sequer é um mero processo, que envolve ciclos repetitivos como a mudança das estações ou as subidas e descidas das atividades metabólicas. Melhor, a história natural é uma evolução cumulativa em direção a sempre mais variadas, diferenciadas e complexas formas e relações.

Este desenvolvimento evolucionário de crescente variedade de seres é também um desenvolvimento que contém possibilidades latentes excitantes. Através da variedade, diferenciação e complexidade, a natureza, no decurso do seu próprio desenvolvimento, abre novas direções para ainda mais ousadas e alternativas linhas de evolução natural. No grau em que os animais se tornam complexos, autoconscientes e crescentemente inteligentes, começam a fazer escolhas elementares que influenciam a sua própria evolução. São cada vez menos passivos objetos de seleção natural e cada vez mais ativos sujeitos do seu próprio desenvolvimento.

A lebre castanha que muda para branca e que vê um terreno coberto onde se pode camuflar está ativa na procura da sua sobrevivência, não apenas a adaptar-se para sobreviver. Não se limita apenas de se ser selecionado pelo ambiente: é selecionando o seu próprio ambiente e fazendo escolhas que expressam, em alguma medida, subjetividade e arbítrio.

Quanto maior for a variedade dos habitats que forem surgindo ao longo do processo evolucionário, mais serão as formas de vida. Particularizando com o complexo neurológico, é como desempenhar um papel ativo e arbitral na sua própria preservação. Entendendo que a evolução natural segue este caminho do desenvolvimento neurológico, origina vidas que exercem uma ampla latitude de escolha e uma nascente forma de liberdade no seu autodesenvolvimento.

Considerando este conceito de natureza enquanto história cumulativa de níveis cada vez mais diferenciados de organização de materiais (especialmente formas de vida) e de crescente subjetividade, a ecologia social estabelece a base para uma total compreensão do lugar da humanidade e da sociedade na evolução natural. A história natural não é uma história de vale-tudo e de salve-se quem puder. É assinalada por tendências, direções e, pelo menos no que aos humanos diz respeito, propósitos conscientes. Os seres humanos e os mundos sociais que criaram, podem abrir um notável horizonte ao desenvolvimento do mundo natural — um horizonte marcado pela consciência, pela reflexão e por uma liberdade de escolha e de capacidade criativa sem precedentes. Os fatores que têm reduzido muitas formas de vida a papéis fundamentalmente adaptativos na mudança ambiental estão a ser substituídos por uma capacidade de adaptação consciente dos ambientes às formas de vida existentes e emergentes.

A adaptação, na verdade, aumenta os caminhos para a criatividade, e a aparentemente cruel ação das leis naturais, os de uma maior liberdade. Aquilo a que anteriores gerações chamavam «natureza cega», para significar a ausência de qualquer sentido moral na natureza, transformou-se numa «natureza livre», uma natureza que lentamente vai encontrando uma voz e um sentido para aliviar as inúteis atribulações da vida, em todas as espécies, numa humanidade altamente consciente e numa sociedade ecológica. O «princípio de Noé» de preservação de todas as formas de vida existentes, como um objetivo em si mesmo, um princípio avançado pelo autor antihumanista D. Ehrenfeld, pouco significa sem o pressuposto, em última instância, da existência de um «Noé» — ou seja, de uma vida consciente chamada humanidade que possa salvar outras vidas que a própria natureza extinguiria, nas glaciações, secagem da terra, ou em colisões cósmicas com asteróides. Os grandes ursos, os lobos, os pumas e tantos outros não estão a salvo da extinção apenas porque se encontram ao cuidado de uma putativa «Mãe Natureza». Se for verdadeira a teoria de que os grandes répteis do Mesozóico se extinguiram por causa das mudanças climáticas originadas pela colisão de um asteróide com a Terra, a sobrevivência dos mamíferos atuais pode bem não ser mais do que precária, face a uma outra qualquer catástrofe natural desprovida de sentido, a menos que exista uma consciência, ecologicamente orientada, que desenvolva os meios tecnológicos que os salvem.

A questão, portanto, não é a de que de qualquer modo a evolução social se firma por oposição à evolução natural. É como é que a evolução social pode situar-se na evolução natural e porque é que tem sido arremessada — escusadamente, como argumentei — contra a evolução natural, em detrimento da vida como um todo. A capacidade de ser racional e livre não basta para assegurar que essa capacidade se concretize. Se a evolução social é vista como a potencialidade para a expansão dos horizontes da evolução natural até linhas criativas sem precedentes, e os seres humanos como a potencialidade de a natureza se tornar autoconsciente e livre, então a questão é porque é que estas potencialidades têm sido desviadas e como é que podem vir a concretizar-se.

As rupturas entre a evolução natural e a evolução social, a vida humana e a não humana, uma natureza parcimoniosa e uma humanidade devoradora, são sempre perversas e mal intencionadas quando são vistas como inevitabilidades. Não o é menos a tentativa reducionista de dissolver o social no natural, caindo a cultura dentro da natureza numa orgia de irracionalidade, teísmo, misticismo, para equiparar o humano a qualquer mera animalidade, ou para impor uma constrangedora «lei natural» a uma obediente sociedade humana.

Por muito que tenham tornado o homem um estranho na natureza, as mudanças sociais fizeram muito mais o homem um estranho dentro do seu próprio mundo social, com a dominação dos jovens pelos mais velhos, das mulheres pelos homens, dos homens por outros homens. Hoje, como durante tantos séculos, continua a existir opressão, existem opressores que literalmente possuem a sociedade e outros que são por eles possuídos. Até que a sociedade possa ser reivindicada por uma humanidade unida, que queira usar a sua sabedoria coletiva, as suas realizações culturais, as inovações tecnológicas, o conhecimento científico e a sua inata criatividade em seu próprio benefício e para o do mundo natural, todos os problemas ecológicos continuarão a ter as suas raízes nos problemas sociais.