Erradiquem a Coca-Cola!

 

Por Sebastian Hacher 12/02/2003
Sem dúvida, o slogan "Erradiquem a Coca-Cola", pintado em um muro em Cochabamba, revela, de uma forma ingênua, os desafios, aspirações e problemas que os mais pobres da sociedade boliviana terão que enfrentar.

A Bolívia é um país que fala a língua dos povos indígenas. Quase sete milhões de pessoas, mais de 80% da população, falam Quechua e Aymara como línguas principais. O resto, um pequeno milhão de habitantes, fala espanhol - uma língua imposta por uma colonização de 500 anos atrás, uma colonização que ainda não acabou. Na verdade, hoje as decisões mais importantes sobre o destino do país são tomadas em inglês. Como no resto da América Latina, durante este século os EUA organizaram diversos golpes de estado, ditando esquemas econômicos e tomando parte em todos os setores estratégicos da vida no país.

Um dos atrativos da Bolívia sempre foi a sua riqueza de recursos. Um lugar que já teve a terceira maior reserva mineral do mundo, e que atualmente produz hidrocarbonetos em escala internacional - sem mencionar suas incríveis reservas de água doce, ou sua riqueza geográfica e natural.

Esta riqueza natural também tem sido uma de suas piores tragédias. Durante séculos, alguns poucos colonizadores sugaram o sangue da Bolívia - primeiro Espanha, e agora multinacionais vindas dos Estados Unidos e Europa.

Parece um paradoxo histórico, que tem se repetido desde a queda do Império Inca pelas mãos dos colonizadores espanhóis. Primeiro foi o ouro de Potos, roubado e passado a multinacionais como Pati?o, que exploraram, durante todo o século XX, minas de ouro, prata e estanho. Atualmente, a exploração de seu petróleo e gasolina por companhias como Repsol-YPF, Pan American, Shell, Enron e Pacific LNG, entre outras.

Os aspectos mais dramáticos destes problemas estão expressos na criação da ALCA, um projeto que tenta obscurecer as intenções de companhias multinacionais de controlar os recursos mais ricos do país. A ALCA rebaixaria a Bolívia em nada mais que uma reserva barata de recursos naturais, e um consumidor de gasolina importada do Chile.

A última onda de protestos que abalou o país, tem muito a ver com essas questões. Das 14 exigências dos camponeses, muitas dizem respeito à soberania nacional, controle das reservas de hidrocarbonetos, privatização de companhias e oposição à ALCA.

- A Guerra da Coca

De todos os pontos em conflito, a política de "Coca Zero" imposta pelos Estados Unidos desde 1997 pode ser a mais delicada, mas é a chave para entender a situação na Bolívia.

Diz a lenda que a folha de coca foi entregue pelo deus Sol aos Quechuas e Aymaras, que a perderam para os conquistadores espanhóis. Cientificamente nós sabemos que ela existe desde tempos remotos, e continua a ser um dos produtos mais consumidos pelos pobres que têm apenas poucos recursos.

A folha de coca representa, para os produtores e para os consumidores, uma flor nacional de muitos usos - médico, nutricional e ritualístico. Ela é consumida como um chá ou simplesmente mascada durante o "pijceo". A folha é usada como um estimulante natural, para ajudar nas longas horas de trabalho, fornecer energia em climas extremos e para curar problemas no estômago, ossos e sistema circulatório. Nos setores mais pobres, a folha de coca é misturada com cinzas e muitas vezes serve como única alimentação regular que garanta as calorias e proteínas necessárias à sobrevivência.

Dentre as dúzias de aplicações da folha de coca, a cocaína é apenas um derivado, e não ao qual os camponeses bolivianos se dedicam. A vida dos fazendeiros de coca é atolada em tamanha miséria e pobreza que sua identificação como supostos traficantes de drogas é absurda.

Nos últimos dez anos, os Estados Unidos vêm tentando acabar com a produção da folha de coca, igualando de alguma forma a planta e a droga. Desde 1998 iniciaram a estratégia da "Coca Zero", pretendendo erradicar completamente a planta e substituindo seu cultivo por outra cultura.

A erradicação total da coca, anunciada como o objetivo nos anos passados, foi sistematicamente interrompida pela resistência dos camponeses - que atrasaram os planos americanos através de organização e protestos.

A principal ferramenta para a erradicação da folha de coca é o exército boliviano. A região de Chapare é fortemente militarizada, e é tão comum ver mulheres em trajes tradicionais quanto soldados com rifles e metralhadoras. "Às vezes eles chegam à noite", conta uma camponesa, "e tiram nossos companheiros da cama. 'Saia daí!', eles dizem, e batendo e apontando armas eles nos forçam a cortar as plantas nós mesmos. Eles usam nossas ferramentas, eles nos tomam tudo e às vezes ainda queimam nossas casas. Há companheiros de quem eles roubaram tudo, suas crianças foram espancadas e eles levaram seus animais e suas colheitas."

Nos últimos anos os EUA anunciaram uma suposta alternativa ao plantio de coca, convertendo para bananas, palmitos e outros produtos que poderiam teoricamente dar acesso ao mercado internacional àqueles que decidissem abandonar a produção de folha de coca.

O resultado foi mais que patético. como disse um produtor que mudou para estes plantios: "Eu tenho bananas por toda a área, e tem um novo inseto que não conseguimos dedetizar! E pior, eles prometeram nos pagar 3 pesos por quilo (US$ 0,33), mas acabaram pagando apenas 50 centavos por quilo."

A verdade é que a maioria dos "produtos alternativos" não têm mercado, e o subsídio do governo, como explica um camponês, "está perdido nas mãos de uns poucos políticos, que o utilizam para comprar armas e continuar a matança." 60% destes créditos são usados em supostos gastos administrativos para sustentar a modificação das plantações.

Como as vítimas destas políticas perceberam, a guerra contra os camponeses e seu produto tradicional tem vários objetivos. Em primeiro lugar, os EUA são o maior consumidor de cocaína, e como a coca não pode ser produzida lá, eles querem obter o monopólio sobre a planta, aumentando seus custos e produzindo-a nas suas próprias "áreas liberadas".

O segundo objetivo é obter uma área de terra valiosa, em particular o Chapare, cuja fertilidade tem atraído gente de todo o país.

O objetivo final é destruir o movimento camponês, cujas demandas e capacidade de mobilizar gente se converteu em uma coligação que uniu trabalhadores e indígenas da cidade e do campo.

- O Movimento "Campesino"

Já faz 18 anos desde que o movimento camponês se organizou para resistir à erradicação da coca, e nos últimos anos começaram a desempenhar um importante papel na vida política do país. Para eles, explica Evo Morales, "Coca Zero é igual a vida zero, e nós nunca deixaremos isto acontecer."

Apenas na região de Cochabamba, a zona de floresta tropical do Chapare, vivem cerca de 35.000 camponeses, a maioria deles organizados através de seis federações que todos os dias discutem problemas, ajudam uns aos outros nos campos enquanto oferecem uma impressionando educação política através de oficinas e seminários em um nível local.

O história da crise dos mineiros também teve parte nisto. Ela criou um movimento oposto à clássica urbanização da economia, neste caso, trazendo nos últimos anos trabalhadores da cidade para o campo. Com esta migração, os camponeses adotaram algumas das tradições de um dos movimentos mais combativos da classe trabalhadora na América Latina, um movimento que em algumas ocasiões formou milícias armadas e em 1952 venceu a batalha pela nacionalização das minas bolivianas. Esta tradição, trazida destes movimentos maiores, pode ser sentida hoje. Na assembléias de base, os camponeses freqüentemente falam sobre a sua história, para encontrar inspiração e explicação para o que está acontecendo.

Além disto, uma contribuição fundamental para a criação do movimento foi a restauração do sentimento indígena, como uma forma de resistência cultural e política contra a opressão nacional e o imperialismo estrangeiro. Como disse um dos militantes ativistas do movimento de Quechua, "os movimentos mais bem sucedidos são aqueles que alcançam uma síntese entre o despertar do sentimento indígena e a forma ocidental de fazer política."

Então nós temos, por exemplo, o MIP, liderado por Felipe Quispe, falando sobre a "Nação Aymara" e revivendo as formas pré-coloniais de organização social. Nas últimas eleições presidenciais, Quispe recebeu 8% dos votos.

Em 2000 o movimento camponês alcançou nível nacional, com influência na cidade, através da Guerra da Água. Uma mobilização rural e urbana contra a privatização dos serviços de distribuição de água, irrigação e água potável, que resultou no colapso de uma das últimas tentativas de privatização. A história do movimento camponês, agora com uma nova onda de bloqueios e guardas, parece estar se consolidando em uma oposição nacional, ocupando o palco principal através de suas demandas e enorme capacidade de mobilização.

- O MAS: um novo movimento político.

Nada sobre a atual situação da Bolívia pode ser entendido sem prestar atenção na forma como o movimento camponês deu vida do movimento político chamado de Movimento al Socialismo (MAS).

Sob a liderança de Evo Morales, um jovem fazendeiro de coca que apareceu em frente às câmeras alguns anos atrás durante um bloqueio de estrada, o MAS se tornou a maior força política no país. O MAS varreu do ativismo diário e do cenário eleitoral, partidos esquerdistas e neoliberais que por décadas dominaram a perspectiva política do país.

Um dos seus próprios líderes diz, "o MAS rejeita a idéia de ser um partido político tradicional... ele é a ferramenta das organizações sociais e deve ser responsável por elas e delas receber críticas e orientações sempre."

Nas últimas eleições, este novo partido produziu um terremoto político, obtendo a maioria dos votos, mas perdendo a eleição presidencial. Os 6 partidos tradicionais se juntaram e escolheram um candidato, sob o patrocínio e apoio da embaixada americana, que declarou: "nós não somos malucos o suficiente para permitir que Evo Morales assuma a presidência."

Finalmente, graças a um fraudulento sistema eleitoral, Sanches de Lozada, o candidato do MNR (Movimiento Nacional Revolucionario), se torna o presidente com apenas 22% dos votos - governando sobre uma fraca aliança parlamentar.

Ainda que o MAS tenha perdido a presidência, acabaram elegendo dois senadores e 35 deputados ao congresso, todos indígenas. Assim, os camponeses forçaram pela primeira vez na história o emprego de tradutores no parlamento para as línguas Quechua e Aymara.

Um dos líderes de base da região de Shinaota explica a dualidade entre a participação eleitoral e a conexão com o movimento camponês: "Nós queríamos passar dos protestos para as propostas, mas quando eles nos bloquearam no parlamento, nós retornamos às ruas e bloqueamos as estradas. De uma forma ou de outra, eles terão que nos ouvir."

Através desta dualidade nós podemos ver a situação hoje: de um lado o MAS se apresenta como um projeto político capaz de construir alianças com o setor do comércio e propõe para si mesmo o Partido dos Trabalhadores de Lula como um modelo. De outro, sua plataforma se apóia em um movimento militante de base. A realidade aponta para uma adaptação de posições ainda mais radicais pelo movimento em um futuro próximo.

"Responder fogo com fogo?"

"Apenas nos entenderão quando bloquearmos todo o país."

Estas eram duas das idéias discutidas na última assembléia geral de Chapare. O movimento responde à feroz ganância dos monopólios corporativos na Bolívia e às ações da embaixada dos EUA. Duas forças que estão gerando confrontos cada vez mais decisivos. As últimas semanas de ações, bloqueios de rodovias e protestos, certamente não serão as últimas.

Sem dúvida, o slogan "Erradiquem a Coca-Cola", pintado em um muro em Cochabamba, revela, de uma forma ingênua, os desafios, aspirações e problemas que os mais pobres na sociedade boliviana terão que enfrentar.

Sebastian Hacher

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