A Nova Batalha de Buenos Aires
by CMI Argentina 29/12
Informe escrito às pressas, enquanto
continuamos respirando gás lacrimogêneo.
- Que horas são?
- São duas e quinze.
Sim, nos olhamos e nós dois concordamos
que tínhamos que gravar essa hora para o resto de nossas vidas.
Estávamos parados na porta, colados na porta da Casa Rosada,
símbolo do poder na Argentina. Nunca nenhuma manifestação
havia chegado até alí. E dessa forma.
E por onde começar se não por
alí? Como colocar em ordem tantas emoções misturadas,
tantas imagens, tantos acontecimentos? Pedimos desculpas por esta
reportagem, escrito ainda com o gosto ácido dos gases no nariz,
com o sono e a excitação à flor da pele.
Esperamos poder colocar em ordem tudo o que
vivemos neste dia.
Quando ainda eram onze da noite, e caminhávamos
pela Av. San Juan na altura da Boedo, se escutavam algumas panelas
a bater nos parapeitos. Atrás havíamos deixado um edifício
que estava todo agitado fazendo barulho.
Os carros passavam tocando a buzina mais à
frente, a umas duas quadras, e se viam umas famílias que tomavam
só um pedacinho da avenida.
Continuamos caminhando até que um carro
amigo nos levou a o Congresso, lugar onde as pessoas estavam autoconvocando-se.
Autoconvocando, digamos claramente, significa
que ninguém havia chamado essa manifestação.
Grupos de vizinhos haviam organizado um panelasso em Almagro, e talvez
em outros bairros, mas ninguém havia chamado uma marcha ao
Congresso.
Agora estávamos lá, e éramos
milhares. Outra vez as panelas, a escadaria ocupada pelas pessoas,
famílias inteiras protestando e fazendo barulho. O que pediam?
Que Grosso deixe o governo, que a suprema corte renuncie, que devolvam
os depósitos. Mas também mais que isso. O lema "Queremos
todos fora, que não fique nenhum" segue sendo o favorito;
e foi o mais cantado hoje também, contra o novo governo.
Não se trata simplesmente de uma ou
outra personagem obscura que se move nos bastidores do poder; se trata
de estalo de algo que muito profundamente se quebrou e que não
vai se curar com uma ou duas renúncias, nem com uma eleição.
O boato começou a correr e logo virou
um clamor: "o povo está indo para a Plaza, ninguém
vai nos tirar dalí". Uma espontânea coluna de milhares,
que se perde na Av. de Mayo, avança decidida. Adiante vai uma
bandeira da Argentina, e a cada passo que damos parecemos sermos mais.
E as pessoas continuam a chegar, e as Mães
chegam (Mães da Praça de Maio, que perderam seus filhos
na ditadura militar de 1976-82), e os motoqueiros abraçados
pelo povo e recebidos com ovação em memória ao
último protesto onde eles desempenharam um papél heróico
e alguns morreram - os que caíram tiveram o seu tributo, o
melhor que alguém poderia ter.
Primeiro um fotógrafo pulou. Depois
um senhor idoso disse que iria entrar à força para falar
com o presidente. Em seguida os jovens. Em cinco minutos, às
duas e quinze exatamente, entramos todos. As grades cederam em seguida,
a polícia ficou de lado, e ali estávamos nós;
em frente às portas da Casa Rosada, que de agora em diante
não tem mais nada de sagrado.
Entramos nos portões, no saguão
antes da entrada, cantando o que todo mundo queria, queremos todos
fora, que não fique nenhum. Vimos as caras de emoção,
caras de surpresa, curiosos que olhavam lá de trás e
que avançavam para darem-se o gosto de tocá-la, de senti-la
sua. Alguns dançavam de emoção.
As pessoas estavam enfurecidas; a notícia
da renúncia de Grosso correu como um raio, mas só serviu
para levantar o ânimo; muitos queriam repetir o mesmo que a
semana passada, queremos todos fora, que não fique nenhum.
Desde Moyano, até os Radicais, passando
por Menem e Rodriguez Saà, todos eram lembrados pelo povo;
"Sem Peronistas, sem Radicais, vamos viver melhor" foi um
dos coros que soavam.
Estávamos todos alí…
E agora? A perguntou foi respondida novamente
pela polícia. Fizeram de tal forma que depois serviu para alegarem
um ato de auto defesa: eviaram dois políciais para "dissuadir"
a multidão. Obviamente as pessoas não os receberam muito
bem, e ao não serem dissuadidas, começaram os gases
e as balas de borracha.
Os dois policiais, gordos e grandes, foram
o sacrifício das forças da ordem para começar
a repressão.
Com os primeiros gases a massa de gente começou
a correr, pela diagonal Norte e pela Av. de Mayo. Uma parte considerável
permaneceu na Praça, e alguns milhares na Av. de Mayo. A maior
parte das pessoas foi para o Congresso. (Paramos aqui para enfatizar
o seguinte; a manifestação se dividiu em três,
quatro pedaços talvez, e sem dúvida contiava sendo impotente).
Na Praça, um grupo grande de jovens
resistia combatendo na porta da própria Casa Rosada. A resistência
e a repressão foram duras, e por mais de meia hora a praça
foi disputada. Barricadas, pedras e até panelas serviam de
defesa para os manifestantes que, se notava, não estavam preparados
para a repressão.
Pela Av. de Mayo se levantaram barricadas.
Alguns descarregaram sua ira nos bancos, placas, pontos de ônibus.
De uma sacada de um hotel muito caro, homens de smoking assistiam
à cena fazendo gestos. Um jovem começa a gritar "burgueses
filhos da puta" e os gestos se multiplicam. Pequenas anedotas
da revolta: uma garrafa de cidra atirada com boa pontaria acertou
a boca de um deles oportunamente.
Na Praça a situação vai
se tornando mais tensa. A maioria das pessoas está indo para
o Congresso, e todos decidimos ir para lá. Um grupo permanece
resistindo, e logo se une a uma massa cantando que são os filhos
do "Cordobazo".
No Congresso, um espetáculo de fogueiras
está acontecendo ali, nas escadarias.
Agora já não nos lembramos de
ver que horas são.
Os mais decididos entram e começam a
pegar coisas para alimentar a fogueira, até que a própria
entrada do Congresso se converte numa fogueira. Pegam um busto, e
alguém grita para que o deixem alí. As pessoas discutem
por isso até que um manifestante o leva cerimoniosamente e
o atira ao fogo.
A tropa de choque, minutos antes, havia retrocedido
atordoada. No exato momento que o busto caiu, os gases recomeçaram.
São mais, e agora parece que vem o canhão de água.
As pessoas recuam, enquanto um bom número de jovens permance
aguentando. Se vão pela Callao, alguns metros correndo mas
em seguida caminhando; correr é o que os policiais querem ver,
faz eles se sentirem maiores, nos desorganiza. O grito de não
correr se espalha no mesmo instante.
Agora todos recuamos, e alguns gritam "aos
tribunais, aos tribunais!". Querem ir até a Suprema Corte,
a mesma que anos atrás propôs em acordo aos Peronistas
e Radicais.
Ninguém corre agora, fazemos fogueiras
e pequenas barricadas. Outros atacam os bancos, ensandecidos.
A polícia avança em nossa direção.
O ar volta a se tornar irrespirável, e em um segundo aparecem
em todos as esquinas. Damos meia volta, não há outra
opção. Vamos por ruas transversais e em cada esquina
aparecem vans da polícia, gás e carros da civil com
balas de borracha. É uma emboscada.
Saímos como podemos. Não há
possibilidade de refugiar-se e a resistência é difícil
de se organizar. Todos, cada um de nós, atira tudo que pode
atrasar o avanço da polícia. Viramos uma esquina e outra
emboscada. Acabamos, um grupo reduzido, cercados e, um quarteirão.
Parece que vamos perder. Além da tropa de choque, carros da
civil atiram balas de borracha na gente.
Os carros das pessoas que passam abrem as portas
e nos tiram dalí.
Pelas ruas por onde passamos as perseguições
continuam. Carregamos aqueles que podemos. Há policiais até
uns seis ou sete quarteirões depois da Praça, parece
que não acabam mais. Escapamos, finalmente escapamos. Até
agora a notícia é de 3 presos, mas meia hora depois
que tudo terminou é difícil ter certeza.
Parece que a história não nos
dá tempo para respirar, não vamos dar tempo a ela.
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