Ásia
Central: O Olhar da Coruja na Noite dos Poderosos.
Emílio
Gennari
É
noite. A televisão acaba de divulgar as últimas informações
sobre o desenrolar da guerra no Afeganistão. Imagens e acontecimentos
revelam contradições que apontam a verdade como mais
uma vítima desta guerra. Na tentativa de localizar as cidades
que são objeto dos noticiários, abro o Atlas nas páginas
da Ásia Central. Estou com os olhos no mapa quando de um canto
escuro da noite uma voz desconhecida me diz: «O que você
está procurando é logo abaixo da fronteira com o Uzbequistão».
Assustado e surpreso pela dica certeira, levanto o olhar e, entre
as sombras, começo a distinguir a silhueta de uma coruja. «Como
é que você sabe disso?», pergunto sem cerimônias.
A ave se aproxima e, apontando para o Atlas, responde: «Voei
semanas inteiras sobre os países que estão na fronteira
com o Afeganistão. Fiquei espreitando as tramas que os poderosos
daquela região preparavam na calada da noite. E como a escuridão
não é um obstáculo para os meus olhos, consegui
ver os interesses que eles escondem nas sombras desta guerra que planta
cemitérios onde os povos precisam semear justiça».
As palavras da coruja me conquistam. O seu jeito simples e sincero
é um convite a ouvir e a anotar tudo o que ela viu durante
a viagem. Percebendo a razão dos meus gestos, a ave espera
silenciosa, pisca os olhos e, ao me ver pronto, diz: «Acho que
posso começar contando porque um amigo se tornou inimigo. Sim,
estou falando dele mesmo, do...
1. Paquistão: de parceiro do Talebã a aliado
dos EUA.
Como todos sabem, durante a permanência das tropas soviéticas
no Afeganistão, os serviços secretos paquistaneses desempenhavam
um papel de intermediários. Seus agentes faziam chegar aos
guerrilheiros afegãos, Bin Laden entre eles, as armas e o dinheiro
que recebiam dos Estados Unidos e de outros países árabes.
Alguns estudiosos calculam que esta relação foi se desenvolvendo
ao longo de 11 anos (1979-1989) e, de quebra, ajudou o Paquistão
a fortalecer sua posição numa velha briga com a Índia
pela disputa do território da Caxemira. Graças ao dinheiro
estadunidense e aos recursos oriundos do tráfico de heroína,
produzida em território afegão sob a vista grossa dos
americanos, o país ampliava os gastos em armamentos, desenvolvia
um programa secreto de produção de armas nucleares e
sustentava os grupos guerrilheiros muçulmanos que agiam na
linha de fronteira da Caxemira. As coisas estavam indo de vento em
popa quando, em 1990, o Congresso dos EUA optou por cortar toda ajuda
militar ao país. A partir deste momento, a relação
de forças entre os antigos rivais começava a ser mais
favorável para a Índia. Esta desenvolvia uma capacidade
militar muito superior a do Paquistão aplicando "somente"
2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em armas contra um investimento
de 6% do PIB no país vizinho.
Se você levar em consideração o fato de que estamos
falando de nações pobres, endividadas, superpopuladas
e com gravíssimos problemas sociais, não vai ser difícil
perceber que ao aumento dos gastos em armamentos correspondia um orçamento
menor para os demais programas do Estado. Pouco a pouco, esta situação
ia alimentando o descontentamento interno, as disputas étnicas
e religiosas, criando momentos de instabilidade política nos
dois países. Neste contexto, Índia e Paquistão
usavam o acirrar-se dos conflitos na Caxemira como um elemento de
coesão nacional. Ou seja, a tensão nesta região,
que, nas últimas décadas, conheceu três guerras
entre as duas nações, ajudava a garantir o apoio popular
aos respectivos setores da elite no poder e colocava em segundo plano
as acusações de corrupção e os graves
problemas sociais que assolavam os dois países. A importância
da questão da Caxemira no equilíbrio interno do Paquistão
é apontada também por outro fato curioso e intrigante.
No dia 12 de outubro de 1999, o general Pervez Musharraf, que até
então dirigia as operações militares na região,
dá um golpe de estado logo após o primeiro ministro
paquistanês Nawaz Sharif ordenar a sua destituição.
Contando com o apoio da maior parte do exército, Musharraf
comanda até hoje o Paquistão com mão de ferro.
A repressão e o controle das forças sociais que vêm
questionando o seu poder são os instrumentos com os quais enfrenta
o descontentamento pela situação do país, agravada
pela seca, pela presença dos refugiados afegãos em seu
território e pelas sanções econômicas impostas
em 1998 após a realização dos testes nucleares
em resposta aos que haviam sido promovidos pela Índia. Consciente
de sua fragilidade, o governo do Paquistão via pelo menos três
boas razões para abandonar o regime talebã e se aliar
aos Estados Unidos. A primeira era de tirar vantagens em relação
à disputa com a Índia pela posse da Caxemira. A necessidade
de superar a inferioridade do exército paquistanês e
de contar com um poderoso apoio diplomático era cada vez mais
premente também em função do estreitar-se das
relações entre o governo indiano e as milícias
da Aliança do Norte. Esta força de oposição
ao talebã, tinha suas bases localizadas nos territórios
da região noroeste do Afeganistão e em nenhum momento
havia recebido algum tipo de ajuda por parte do Paquistão,
empenhado que estava em sustentar o regime talebã contra ela.
Se você olhar o mapa, vai perceber que ao conquistar a região
norte e ao estender o seu controle às demais áreas,
as forças da Aliança deixam boa parte do Paquistão
preso entre dois inimigos: de um lado a Índia e, de outro,
a própria Aliança, ambas com velhas contas pendentes.
Ao ficar no meio deste sanduíche, o apoio do Paquistão
aos Estados Unidos serviria, pelo menos, como elemento de equilíbrio
e dissuasão, ao mesmo tempo em que poderia render novos e importantes
fornecimentos de suprimentos bélicos. A segunda razão
deita raízes na grave situação econômica
em que se encontra o país. A postura do Paquistão em
relação à coalizão internacional já
obteve a renegociação e o perdão de parte das
dívidas com o FMI, a retirada das sanções econômicas,
a concessão de créditos de exportação
e um bilhão de dólares pagos pelo governo Bush em troca
dos serviços prestados às forças armadas anglo-americanas.
Com um pouco mais de pressão, em nome da ajuda aos refugiados
afegãos e da necessidade de conter os problemas internos, o
Paquistão quer fazer cair da mesa dos poderosos algumas migalhas
mais gordas a serem usadas em projetos de interesse dos setores dominantes.
Não bastasse isso, em caso de derrota do talebã, a construção
do oleoduto e do gasoduto que ligariam as cidades paquistanesas de
Quetta e Karachi com as jazidas do Mar Cáspio beneficiaria
ainda mais estes setores graças aos investimentos e às
relações comerciais que se estabeleceriam com o primeiro
mundo. Um último motivo para apoiar as forças internacionais
é dado pela possibilidade de reduzir o peso dos grupos fundamentalistas
islâmicos na política interna do país. Apesar
de terem uma expressão eleitoral não superior a 4%,
estes grupos mantêm uma presença ativa no interior da
máquina do Estado e nas manifestações de massa.
A elite liberal das zonas urbanas vê a luta contra o terrorismo
como uma boa oportunidade para livrar-se deles. Medidas repressivas
mais rigorosas seriam justificadas a nível internacional como
uma necessidade da luta contra o terror. É bom lembrar que
os extremistas islâmicos paquistaneses representam o efeito
colateral indesejado da política anticomunista do governo militar
do general Zia Ul-Haq, apoiada pelos EUA, no final da década
de 70. O combate à presença soviética no Afeganistão
levou à criação de centenas de escolas islâmicas
responsáveis, inclusive, pela formação do talebã
e dos demais grupos fundamentalistas cujas ações vêm
colocando em risco a estabilidade política do próprio
Paquistão. Enquanto os poderosos usam a bússola do dinheiro
para orientar suas escolhas, a grande maioria da população
paquistanesa vê com desconfiança a chamada guerra contra
o terror e seus objetivos. Além das manifestações
e enfrentamentos que já ocorreram, esta situação
ajuda a desgastar o equilíbrio de poder no Paquistão
que vai se enfraquecendo na medida em que as coisas não estão
saindo conforme o planejado. Algumas semanas atrás, o Secretário
de Estado dos EUA, Colin Powell, teve um encontro com o governo indiano
na tentativa de pôr fim aos ataques que a Índia estava
promovendo na Caxemira logo após o início dos bombardeios
no Afeganistão. Num recado destinado ao presidente Musharraf,
Powell disse que "Estados Unidos e Índia estão
unidos contra o terrorismo, e isso inclui também o terrorismo
que tem sido dirigido contra a Índia". Ou seja, não
só os americanos não irão desequilibrar as relações
diplomáticas e a correlação de forças
na Caxemira, como condenam os grupos guerrilheiros que atuam nesta
região e são financiados pelo Paquistão. Não
bastasse isso, os bombardeios fizeram emergir a questão étnica
no próprio Paquistão. De fato, a etnia pashtu (majoritária
no Afeganistão e base de apoio do regime talebã) tem
um número considerável de pessoas tanto no território,
como no exército paquistanês. No início de novembro
de 2001, o presidente Pervez Musharraf era obrigado a afastar dois
generais que simpatizavam com a causa talebã e estavam sendo
apontados como integrantes de grupos fundamentalistas. Diante do prolongar-se
da guerra, Musharraf teme que haja um perigoso crescimento dos grupos
de oposição ao seu governo, inclusive no interior do
próprio exército. Na tentativa de restabelecer a confiança
destes setores das forças armadas, o presidente do Paquistão
solicitou que os EUA liberassem a entrega dos 28 aviões F 16
comprados e pagos pelo país no final da década de 80
e cuja entrega foi bloqueada pelo Congresso dos Estados Unidos como
punição pelo programa de desenvolvimento de armas nucleares.
A chegada dos novos caças ajudaria a manter a coesão
do exército, garantindo o atual governo e o apoio aos EUA.
Mas, ao fazer esta concessão, os americanos têm consciência
de que ela pode alterar o equilíbrio militar na região
e ser interpretada pela Índia como uma ameaça à
sua segurança. Sabendo disso, o governo Bush trocou a entrega
das aeronaves por uma polpuda ajuda financeira que pretende ser uma
espécie de cala-boca diante do crescente descontentamento dos
grupos que pressionam o governo Musharraf. Resta saber se ela será
suficiente para acalmar as tensões no interior dos setores
nacionalistas das forças armadas e dar ao atual governo a margem
de manobra de que precisa para garantir a sua permanência no
poder».
A coruja faz uma pausa, respira fundo e com o rosto carregado de preocupação
me diz: «se você acha que isso já é suficiente
para dizer que o "bem" não tem representantes nesta
guerra, pois ainda não viu nada. Preste atenção
porque chegou a hora de falar de duas repúblicas da antiga
União Soviética que vêm sacudindo os trocados
que estão em seus chapéus na esperança de que
o primeiro mundo deixe cair a esmola generosa dos dias de festa. São
elas...
2. Uzbequistão e Tadjiquistão: de desconhecidos
a estratégicos.
Até os atentados do dia 11 de setembro, poucas pessoas sabiam
indicar com precisão a localização exata destes
países. Bastou os Estados Unidos declararem guerra ao Afeganistão
para que o Uzbequistão e o Tadjiquistão adquirissem
uma importância estratégica devido à sua proximidade
com a linha de frente das forças do talebã. Aproveitando-se
de sua posição privilegiada, os dois países aderiram
à guerra pelas razões que agora vamos analisar. Considerada
a mais pobre das repúblicas da antiga União Soviética,
o Tadjiquistão tem a maior parte de seu território coberto
por montanhas e desertos e só 5,9% de suas terras podem ser
usadas para a agricultura. Com quase seis milhões e meio de
habitantes, o país está à beira de um colapso
econômico. Arrasado pela guerra civil, que se estendeu de 1991
a 1997, o Tadjiquistão não conseguiu atrair nenhum tipo
de investimento e de ajuda internacional. A seca dos últimos
três anos levou cerca de um milhão de pessoas a sofrerem
a ameaça direta da fome e reduziu a renda média anual
per capita a 280 dólares. Mas você não deve pensar
que esta realidade se aplica a todos os habitantes sem distinção.
Entre os elementos que ajudaram a mergulhar o Tadjiquistão
numa situação de penúria comparável a
dos países africanos está a opção das
elites pela agricultura de exportação. Os únicos
sistemas de irrigação do país são usados
para o cultivo do algodão, deixando o grosso da população
rural à espera das chuvas cada vez menos freqüentes. À
situação de catástrofe social alimentada pelas
escolhas das classes dominantes, deve-se acrescentar a corrupção
e o envolvimento destes setores no tráfico de heroína,
procedente do Afeganistão rumo à Europa, que pioram
ainda mais a vida do povo simples. Apesar de ser um país onde
a religião muçulmana é professada pela maior
parte da população, bastou menos de uma hora de conversa
entre Colin Powell e o presidente do Tadjiquistão para que
os dois acertassem a concessão de uso de três bases militares
em troca de algumas dezenas de milhões de dólares. Não,
não pense que este dinheiro será utilizado para aliviar
os problemas da fome, mesmo porque não há sinais de
que o descontentamento popular possa ameaçar a ordem estabelecida.
Os trocados que caem da bolsa dos americanos vão amenizar a
sede dos corruptos grupos de poder locais para os quais o povo e a
religião podem esperar. A situação do Uzbequistão
é diferente. O país tem cerca de 25 milhões de
habitantes e, além de produzir algodão, arroz e trigo,
conta com reservas de petróleo, gás natural e ouro que
ainda não foram exploradas. A rapidez com a qual o presidente
Islam Karimov se dispôs a colaborar com os EUA na guerra contra
o talebã está alicerçada em três questões
fundamentais. A primeira delas tem origem nas perspectivas de ampliar
a extração e o escoamento das reservas de combustíveis
fósseis do país. Com seus poços e sistemas de
distribuição em plena atividade, os vizinhos Turcomenistão
e Cazaquistão negam ao Uzbequistão a possibilidade de
utilizar seus gasodutos e oleodutos deixando o país com poucos
investimentos no campo da perfuração e extração
de petróleo e gás. Diante desta situação,
a esperança de Karimov é que a vitória das forças
aliadas torne possível a construção do oleoduto
que sairia da bacia do Mar Cáspio e chegaria no Paquistão
passando pelo norte do Afeganistão. Isso iria atrair o capital
externo e daria ao Uzbequistão novas possibilidades de desenvolvimento
e crescimento econômico. Um primeiro sinal de que o apoio aos
americanos aponta nesta direção é o fechamento
de três acordos num valor total de 360 milhões de dólares
que o país assinou com empresas do setor de mineração
entre o final de setembro e a metade de outubro de 2001. Além
disso, o apoio à guerra abriu boas possibilidades do Uzbequistão
renegociar sua dívida externa com o Fundo Monetário
Internacional e receber um novo pacote de ajuda financeira do Banco
Mundial. As respostas já obtidas estão levando um bom
número de empreendedores a pedir que o país crie condições
favoráveis para a remessa de lucros ao exterior e para a conversão
do dinheiro local em moedas fortes. Para alguns economistas, seriam
estes os sinais de que os investimentos estrangeiros em território
uzbeque representam algo bem mais concreto do que uma esperança
futura. O apoio às forças aliadas visa também
proporcionar ao país uma posição mais confortável
nas relações com o Cazaquistão e o Quirguistão
no que diz respeito à utilização da água
da região. Se você observar a linha de fronteira entre
o Cazaquistão e o Uzbequistão, vai perceber que o Lago
Aral pertence aos dois países. Nos últimos dez anos,
o nível do lago tem caído pela metade em função
da utilização irresponsável de suas águas
para a irrigação das culturas de arroz, no Cazaquistão,
e de algodão, no Uzbequistão. Os dois países
se acusam reciprocamente pelos estragos que já foram provocados
e as tensões entre ambos vêm criando uma situação
desgastante na qual, até agora, o Cazaquistão tem se
saído melhor. Na região oriental do Uzbequistão,
o cultivo do algodão depende do fornecimento de água
do vizinho Quirguistão. A bem da verdade, é preciso
dizer que um depende do outro, na medida em que o próprio Quirguistão
precisa do gás uzbeque para atender suas necessidades de calefação
durante o rigoroso inverno. Até o início do ano 2000,
havia um acordo de troca: o Uzbequistão forneceria gás
ao Quirguistão em troca de um volume de água de 2 bilhões
e 300 milhões de metros cúbicos anuais. Sabendo da fragilidade
do país vizinho, no mesmo ano o Uzbequistão começou
a exercer pressões territoriais para ter livre acesso à
água da qual tanto precisa. Em resposta, o Quirguistão
reduziu o fornecimento para 750 milhões de metros cúbicos,
o que causou perdas nas lavouras uzbeques estimadas em cerca de um
bilhão de dólares. O Uzbequistão não deixou
pra menos e suspendeu o abastecimento de gás natural, dando
origem a uma grave crise energética no país vizinho.
As tensões entre as duas ex-repúblicas da União
Soviética foram se prolongando ao longo de 2001. No final de
outubro, o Uzbequistão se aproveitou da posição
de força dada pela aliança com os Estados Unidos para
ocupar militarmente a área de fronteira com o Quirguistão
que considera como sua. Esta medida colocou as relações
entre os dois países à beira da ruptura. Como um novo
conflito na região não interessa aos EUA, alguns enviados
do exército estadunidense estão viabilizando a utilização
de uma base militar do Quirguistão como forma de dissuadir
o Uzbequistão de sua tentativa expansionista. Ainda que este
conflito seja colocado em banho-maria, o problema do acesso à
água promete novas tensões entre os dois países,
sobretudo se o permanecer da situação de instabilidade
do Afeganistão vier a atrasar os investimentos no novo oleoduto.
Uma última boa razão para Karimov apoiar os Estados
Unidos, deita raízes em sua preocupação com o
Movimento Islâmico Radical do Uzbequistão que nos anos
90 declarou a guerra santa contra os governos da região. Até
pouco antes do início dos bombardeios no Afeganistão,
suas forças, que agem no vale de Ferganá na fronteira
com o Tadjiquistão e o Quirguistão, recebiam apoio material
e militar do talebã. O Movimento encontrava aqui um terreno
fértil para as suas ações. De fato, o povo desta
região é muito pobre e mal consegue sobreviver com o
trabalho agrícola e a criação de cabras e ovelhas.
É aqui que se encontra a maior concentração de
pessoas por quilômetro quadrado de todas as repúblicas
da antiga União Soviética e também o progressivo
agravar-se do desemprego, da falta de terras e da escassez de água.
A soma destes problemas com a ação dos fundamentalistas
islâmicos forma o caldo de cultura dos sentimentos antigovernamentais
que já levaram a enfrentamentos armados com as forças
regulares do Uzbequistão. Em nome da segurança do Estado,
a resposta de Karimov tem sido implacável. Qualquer cidadão
que venha a ser surpreendido com um simples panfleto de qualquer um
dos grupos proscritos pode ser condenado a vários anos de prisão
sob a acusação de atentar contra o regime constitucional
do país. De acordo com dados de organizações
internacionais de direitos humanos, no Uzbequistão há
cerca de 7 mil e 500 pessoas cumprindo penas de até 20 anos
de prisão por serem suspeitas de pertencer a grupos islâmicos
radicais. Não se sabe até quando a política de
mão de ferro de Karimov vai conseguir conter a ação
dos setores fundamentalistas que agem na clandestinidade. No entanto,
a guerra contra o talebã significa a interrupção
dos suprimentos de armas e dinheiro vindos do Afeganistão e
uma preciosa justificativa para a repressão violenta que o
governo leva adiante nesta região.
Como você pode ver, para a elite, o sofrimento do povo é
um mero detalhe. Sua principal preocupação é
que o amanhã tenha o verde-dólar como cor predominante.
Pouco lhe importa que de uma injustiça nasça outra e
que os resultados de uma guerra possam dar origem a novos conflitos
nos quais milhares de inocentes pagarão com a vida a busca
incessante do lucro alimentada pelos poderosos». O meu olhar
não consegue esconder a preocupação que sinto.
Tem horas em que gostaria de não saber destas coisas, pois
o fato de ter consciência dos acontecimentos exige respostas
feitas de palavras e ações. Percebendo a minha aflição,
a coruja se aproxima, põe a sua asa no meu ombro e em voz baixa
me diz: «Você pode não gostar, mas os fatos caminham
nesta direção. Diante da realidade podemos até
fazer de conta que não temos nada a ver com ela. Afinal, é
assim que muitos se comportam frente a esta nova era de dominação
mundial que a guerra pinta no horizonte da humanidade. Acreditam que
tudo se resolve enterrando a cabeça num buraco, como faz a
avestruz. Mas, ao fazer isso, o maior problema não é
a falta de visão, coisa normal para quem se fecha na rotina
do dia-a-dia, e sim o fato de que o traseiro se torna um enorme alvo
imóvel, pronto para ser atingido por quem quer que seja, sem
ter direito sequer a conhecer o rosto do agressor. Como as injustiças
só podem ser sanadas pelo esforço coletivo de nós
de baixo, é bom você conhecer mais e ouvir atentamente
o meu relato sobre...
3. China, Irã e Turcomenistão: quietos só
do lado de fora.
Você já deve ter percebido que a fronteira da China com
o Afeganistão é muito pequena, algo em torno de 65 quilômetros.
Apesar disso, as montanhas tem dificultado o controle do fluxo de
armas que, através delas, chega nas mãos dos separatistas
muçulmanos da província de Sinkiang (Turquestão
Oriental), cujas atividades foram se intensificando com a chegada
do talebã ao poder. Além dos protestos pacíficos,
seus militantes têm se envolvido em ataques armados a postos
policiais e do exército. Diante destas investidas, a China
respondeu com a mais dura repressão. Dados recolhidos por observadores
internacionais apontam que, só entre 1997 e 1999, foram emitidas
210 sentenças de morte por atividades separatistas. Esta postura
tem sido objeto de duras críticas por parte dos governos das
nações desenvolvidas. Mas você não deve
se deixar enganar pelas aparências, pois, os apelos e as denúncias
de violação dos direitos humanos não tinham objetivos
humanitários. Se assim fosse, um dos primeiros passos deveria
ser um duro puxão de orelhas a ser distribuído entre
as empresas americanas, japonesas, alemãs, etc. Elas estão
entre as que exploram jovens e adultos chineses em jornadas de trabalho
que superam as 12 horas diárias em troca de salários
que não ultrapassam os 60 dólares mensais. O barulho
em defesa dos direitos humanos visava forçar a China a fazer
novas concessões no âmbito das relações
econômicas internacionais como condição para viabilizar
o seu ingresso na Organização Mundial do Comércio.
Neste contexto, a guerra no Afeganistão não só
abre caminhos para as futuras disputas que a China deve empreender
para garantir a exploração das jazidas de petróleo
e gás presentes nos mares que a banham, como aponta saídas
para velhas questões que estavam pendentes. Ainda que o país
não envie tropas para integrar a coalizão contra o terror,
o seu apoio silencioso está sendo usado para justificar o direito
da própria China agir com todo rigor contra os extremistas
e separatistas muçulmanos no oeste do país. O discurso
do seu representante na Assembléia Geral das Nações
Unidas, no dia 11 de novembro de 2001, é de uma clareza que
dispensa comentários: "O combate contra o grupo do Turquestão
Oriental é parte da luta internacional contra o terrorismo".
Em português claro, se a coalizão está realmente
preocupada em acabar com os terroristas então não pode
esquecer dos muçulmanos radicais que estão na minha
casa e ocupam uma região com reservas de petróleo. Agora,
se americanos e ingleses podem jogar bombas e executar soldados da
milícia talebã... porque eu, China, não posso
fuzilar os meus extremistas? Você pode achar que isso é
absurdo, mas a história mostra que as coisas estão caminhando
nesta direção. Durante a visita do chanceler alemão,
Gerhard Schröder, à China, no início de novembro
de 2001, não houve a menor referência à questão
dos direitos humanos das minorias étnicas e religiosas do Sinkiang
e do Tibet que, no passado, era objeto de discursos e de críticas
oficiais. No lugar destes, Schröder abriu as portas para a Bayer
realizar um investimento de 3 bilhões e 100 milhões
de dólares num pólo petroquímico em Xangai que
vai se somar aos mais de 7 bilhões de dólares que as
empresas alemãs já investiram na China. De volta ao
seu país, o chanceler foi objeto de duros comentários
por parte de Dilxat Rexit, porta-voz na Europa da organização
dos turcômanos do leste: "Ele silenciou em consideração
aos negócios das empresas alemãs na China". Para
bom entendedor, meia palavra basta. Apesar da importância dos
investimentos europeus, eles não são suficientes para
que a economia chinesa mantenha o ritmo de crescimento atual e aumente
a sua participação no comércio mundial. Para
isso, a China precisa de boas relações com os Estados
Unidos. A benção dada à coalizão internacional,
o fato de ser um bom aliado do Paquistão e ganhar o respeito
das nações da região por causa do seu arsenal
nuclear, são as cartas com as quais o governo chinês
vai sentar à mesa de negociação com os EUA. Com
elas a China vai discutir o fim das restrições às
suas exportações, a redefinição do controle
geopolítico na Ásia e fazer valer suas razões
no âmbito da questão do escudo de defesa contra mísseis
balísticos que os norte-americanos pretendem desenvolver. O
atual silêncio dos jogadores não é sinônimo
de fim de jogo e sim de um lento e cuidadoso estudo do adversário,
de suas reais possibilidades e projetos de dominação
mundial. Indo de leste para oeste, o Irã é o segundo
país a partilhar com o Afeganistão uma longa região
de fronteira que abriga cerca de 3 milhões de refugiados. A
sua posição em relação ao conflito pode
ser resumida em três eixos fundamentais: não intervir
ao lado do talebã, negar qualquer apoio militar às forças
da coalizão e apostar nas milícias da Aliança
do Norte como pivô do futuro governo afegão. A razão
desta atitude deita profundas raízes na história dos
conflitos e das relações comerciais com os países
da região. Durante a década de 80, apesar do esforço
de guerra contra o Iraque (que contava com o apoio dos EUA), o Irã
dava a sua contribuição para financiar os guerrilheiros
que lutavam contra a ocupação soviética do Afeganistão.
Sua aposta era de poder contar com a vitória dos grupos xiitas
que integravam a guerrilha e acabaram sendo derrotados pelo talebã
(que pertence ao ramo sunita da religião islâmica) e
obrigados a se refugiarem ao norte de Cabul. O embargo comercial imposto
pelos Estados Unidos e por várias nações desenvolvidas,
levou o Irã a aceitar o capital russo para garantir a produção,
o escoamento e a comercialização de parte do seu petróleo
e gás natural que constituem uma fonte de renda fundamental
para o país. Apesar de não simpatizar totalmente com
os comandantes da Aliança do Norte, o Irã teme os planos
imperialistas que os EUA querem implantar na região, sobretudo,
porque estes podem incluir ataques a outros países muçulmanos.
Se a chamada luta contra o terror continuar depois da derrota do talebã,
uma das vítimas poderia ser o Iraque e até mesmo a guerrilha
do Hezbollah que o país apóia abertamente. Isso criaria
uma situação incômoda para o Irã na medida
em que o seu território seria cada vez mais pressionado pela
presença das forças armadas estadunidenses. É
por isso que, receoso quanto aos possíveis desdobramentos desta
guerra, o país vem procurando manter boas relações
com a Rússia através da qual tenta influenciar a composição
do futuro governo do Afeganistão e a correlação
de forças que se estabelecerá na Ásia Central
após o fim do conflito. Peça importante do tabuleiro
da região, o Irã estuda os movimentos dos parceiros,
dos adversários e de quantos podem contribuir para o resultado
final da seqüência de acontecimentos desencadeada em resposta
aos atentados terroristas do dia 11 de setembro. Outro vizinho do
Afeganistão a não fazer barulho e o Turcomenistão.
Desde o começo das hostilidades o país declarou a sua
neutralidade em relação ao conflito e, no momento, não
vê nenhuma boa razão para mudar de posição.
Consciente das grandes reservas de petróleo que estão
em seu território e da cobiça dos países do primeiro
mundo, o Turcomenistão tenta desenvolver a sua economia baseando-se
em recursos próprios e se mantém a igual distância
da Rússia (com a qual assinou uma série de acordos comerciais)
e dos Estados Unidos (que lhe concederam o tratamento de "nação
mais favorecida"). Em 1995, com a Turquia, o Irã, o Cazaquistão
e a Rússia, o país participava da construção
do gasoduto que permite exportar seu gás natural para a Europa
Ocidental através do Irã e da Turquia. Dois anos mais
tarde inaugurava o primeiro oleoduto entre as suas jazidas e as linhas
de escoamento do Irã que levam o petróleo do Turcomenistão
ao Golfo Pérsico e ao Mediterrâneo. Antes do ataque norte-americano,
o país estava entre as nações que mantinham boas
relações comerciais com o Afeganistão e, apesar
de 90% da sua população ser muçulmana, o fundamentalismo
religioso não dá sinais de querer entrar em seu território.
Neste contexto, a opção pela neutralidade não
se deve a uma postura crítica em relação à
guerra e sim a uma questão de conveniência. O Turcomenistão
é, ao mesmo tempo, amigo do Afeganistão, da Rússia,
dos EUA e do Irã e sabe que cada um deles tem contas pendentes
com o outro. Optar pelo apoio a qualquer um dos lados significaria
criar sentimentos de desconfiança e receio nas relações
comerciais com os demais. Além disso, a posição
geográfica e as relações com os países
da região dão ao Turcomenistão a certeza de que
não lhe faltarão convites e investimentos quando da
construção do oleoduto e do gasoduto que vai ligar a
bacia do Mar Cáspio ao Paquistão».
Ao
terminar a descrição deste último país
que tem fronteiras comuns com o Afeganistão, a coruja emite
um longo suspiro e fecha os olhos. O adiantado da hora me leva a crer
que ela já terminou o relato e eu posso ir arrumando os papéis
em cima da mesa. A ave permanece imóvel. Mas, bem na hora em
que empurro a cadeira pra levantar, me surpreende com um «Onde
você pensa que vai?» que joga por terra as minhas esperanças
de dar por encerrado o trabalho de relatar as suas palavras. Olho
no olho, a coruja aponta a asa esquerda para os papéis que
aguardam o carinho da caneta e sem titubear me diz: «Preciso
falar de mais um país cujos poderosos ficaram alvoroçados
por causa desta guerra. Voando na noite da Ásia Central rumo
ao Brasil pude sentir que há sinais de...
4. Turbulência nos céus da Arábia Saudita.
A situação da Arábia Saudita é bem parecida
com a daquela pessoa que, para se garantir, acendeu uma vela a deus
e outra ao diabo e, agora, teme as reações de ambos.
Desde o fim da segunda guerra mundial, a relação do
país com os Estados Unidos está alicerçada numa
troca: o império protege a monarquia absolutista que governa
a Arábia e, em troca, recebe a garantia de um acesso privilegiado
ao petróleo saudita. O envolvimento entre os dois países
foi crescendo até atingir um novo estágio em 1979. Neste
ano ocorreram três fatos relevantes: a ocupação
soviética do Afeganistão, a revolução
iraniana (que levou ao poder o aiatollah Khomeine) e uma revolta de
militantes islâmicos durante a peregrinação à
Meca. Diante desta alteração do equilíbrio de
forças no Oriente Médio e na Ásia Central, o
presidente Jimmy Carter lançou uma nova formulação
da política estadunidense: qualquer tentativa de um poder hostil
controlar o Golfo Pérsico seria considerada "um ataque
aos interesses vitais dos Estados Unidos da América" e
seria repelida "com todos os meios necessários, incluindo
a ação militar". Razões para isso não
faltavam e se baseavam, sobretudo no fato dos EUA importarem da Arábia
Saudita 82% do petróleo comprado no exterior. Ao longo da década
de 80, a relação entre os dois países ia se estreitando
cada vez mais. Na guerra entre o Irã e o Iraque, Arábia
e Estados Unidos apoiavam as forças de Saddam Hussein. Para
se proteger das ameaças de Khomeine e agradar os ambiciosos
comandantes de seu exército, a nação saudita
comprava da indústria bélica norte-americana armamentos
sofisticados e aviões de combate que só podiam ser usados
por soldados estadunidenses e construía as bases militares
de Jubail e Jiddah com a supervisão do corpo de engenheiros
do exército dos EUA. Os constrangimentos criados ao apoio estadunidense
pelos casos de corrupção que envolviam a família
real eram perdoados e minimizados em função do volume
de armamentos que eram comprados de suas indústrias e dos investimentos
do país na economia norte-americana. Calcula-se que dois terços
da fabulosa quantidade de dinheiro obtida com a venda do petróleo
saudita era investida em ações, papéis do governo
e depósitos a prazo dos bancos dos Estados Unidos. O restante
era usado para financiar a implantação de empresas produtivas
na Arábia, as mordomias e os desmandos da corte, os grupos
guerrilheiros islâmicos no Oriente Médio e na Ásia
Central, entre eles o de Osama Bin Laden que, até pouco tempo
atrás, era cidadão saudita. A acumulação
de riquezas às custas do povo simples e o despotismo da casa
real contribuíam para alimentar o descontentamento popular.
Diante dos primeiros sinais de instabilidade social, o regime declarava
ilegais todas as formas de debate político no interior do reino
(na Arábia não há parlamento, mas só um
conselho consultivo da casa reinante, não há liberdade
de expressão e nem partidos políticos) e não
hesitava em usar a repressão através de suas forças
de segurança treinadas pelos EUA para descobrir e esmagar qualquer
grupo dissidente. Uma pequena amostra desta realidade é dada
por um relatório da Anistia Internacional que, no início
de 1990, denunciava a existência de um verdadeiro padrão
de violação de direitos humanos contra opositores políticos
e líderes sindicais. Se isso não bastasse, em 1992,
o rei Fahd Bin Abdul Aziz, emitia um decreto que criava uma espécie
de "polícia religiosa", cujo papel era de "assegurar
a observância dos costumes islâmicos". Nele, o lar
era definido como lugar sagrado e, portanto, o Estado (ou seja, a
tal polícia religiosa) podia entrar nas casas das pessoas sem
autorização legal para deter os suspeitos de violarem
a lei islâmica. Em nome da religião, nascia mais um instrumento
de controle e repressão dos possíveis focos de contestação
ao regime. Sim, eu sei que deve ser difícil para você
entender como os Estados Unidos, que se vangloriam de defenderem a
democracia e a liberdade, podem apoiar o governo absolutista e corrupto
da Arábia. Isso sempre acontece quando as pessoas não
percebem que estão olhando para a história através
das lentes dos poderosos. Em geral, elas esquecem de analisar detidamente
os acontecimentos, as relações entre os países
e o jogo de interesses que transforma o lucro em deus supremo e o
azul dos balancetes na cor paradisíaca em nome da qual milhões
de seres humanos são condenados a um verdadeiro inferno aqui
na terra. Mas, vamos adiante. No início dos anos 90, quando
o Iraque invadiu o Kuwait, os EUA convenceram a família real
a permitir a presença de tropas estadunidenses em território
saudita e a utilização de suas bases militares como
ponto de partida para os ataques das forças aliadas. Terminada
a guerra, a Arábia gastava cerca de 14 bilhões de dólares
em armamentos americanos com o pretexto de proteger o país
contra eventuais retaliações iraquianas e admitia a
presença de cerca de 6 mil soldados americanos em seu território.
A manutenção deste contingente do exército estadunidense
era interpretada por vários líderes radicais como uma
profanação do território saudita, sede das cidades
sagradas do islamismo (Meca e Medina). É interessante perceber
que a presença americana na Arábia, que não era
uma novidade, passava a ser condenada em nome do sentimento religioso.
Este era o único elemento que possibilitava aos grupos radicais
tentarem organizar e dirigir o crescente descontentamento popular
contra o setor dominante para o qual a Arábia era o berço
da ortodoxia islâmica. O sentimento de revolta, porém,
não se destinava à destruição dos mecanismos
de exploração presentes na realidade do país.
Ele visava apenas fortalecer e dar sustentação a um
outro grupo no interior da elite que almejava chegar ao poder nos
braços do povo para, a partir daí, inverter as relações
de dependência estabelecidas com os demais países através
da compra do petróleo saudita. Ou seja, o preço do barril
e a quantidade produzida deixariam de ser umbilicalmente ligados às
necessidades e à orientação dos Estados Unidos.
Eles iriam flutuar de acordo com as necessidades dos países
produtores reduzirem o ritmo de extração e esgotamento
de suas reservas levando seus compradores a se tornarem reféns
do fornecimento desta matéria-prima, tão importante
para o bom funcionamento de suas economias. Hoje, entre os elementos
que fazem tremer o regime, está a constatação
de que a hipótese da atual monarquia viabilizar uma saída
política para o crescente descontentamento popular é
algo que parece materialmente impossível. De fato, uma das
razões pelas quais o rei Fahd, que sofreu um derrame em 1995,
é mantido no trono é a antipatia e a desconfiança
da qual é objeto o príncipe Abdullah Bin Abdel Aziz,
seu meio irmão e sucessor já nomeado, em função
dos casos de corrupção nos quais estaria envolvido.
Sabendo da progressiva instabilidade rumo à qual caminha o
seu reino, a monarquia saudita tem se esforçado para tornar
pública a imagem de um certo distanciamento em relação
ao ocidente. É neste contexto que deve ser lida a postura do
país de apoiar a coalizão contra o terrorismo, sem permitir
que os bombardeios decolem de seu território rumo ao Afeganistão.
Em sua busca do difícil equilíbrio entre a fidelidade
aos EUA e o respeito à sensibilidade popular, cuja revolta
é alimentada pelos grupos fundamentalistas, a Arábia
se nega a colaborar com o FBI e a CIA na completa identificação
de 15 dos 19 supostos terroristas que realizaram os atentados do dia
11 de setembro e eram cidadãos sauditas. O problema é
que estes fatos não parecem suficientes para fazer o povo esquecer
de um passado e um presente que continuam falando mais alto. Caso
não haja um desfecho rápido para a guerra no Afeganistão
e para as contradições que irão se avolumar naquele
país, é bem provável que os céus da monarquia
saudita sejam sacudidos por fortes turbulências».
A coruja pára de falar. Seus pequenos olhos fitam a expressão
do meu rosto incapaz de esconder o receio de que novos e mais duros
enfrentamentos se aproximam do horizonte da humanidade movidos pelos
mecanismos de dominação que os sustentam. A ave abre
um sorriso inesperado e com voz confiante me diz: «Ela já
tem um pequeno broto!». «Ela,... quem?», pergunto
impaciente. «Estou falando da flor da esperança»,
me diz a coruja com um brilho diferente nos seus olhos. E continua:
«As cartas, os abaixo-assinados, os desenhos, as vinhetas, os
poemas, as músicas, os panfletos, as passeatas, as palavras
de ordem, enfim os mais diferentes gestos de centenas de milhares
de pessoas fizeram sair das entranhas da terra seus primeiros sinais
de vida. Ao levantar suas vozes contra o terror e contra a guerra,
homens, mulheres, crianças e anciãos de todos os povos
protegem e alimentam seu pequeno broto. Ainda falta muito para que
o maravilhoso arco-íris de cores que pinta suas pétalas
possa desabrochar saudando um novo amanhecer de justiça e de
paz. Mas cada novo passo que desafia a escuridão do medo, da
resignação, do conformismo e da apatia faz caminhar
esta longa marcha na qual a humanidade disputa o seu futuro com as
forças da morte». A coruja se aproxima da janela e se
despede com um gesto de saudação. O bater de suas asas
na escuridão me faz perceber que o novo dia precisa ser construído
em meio ao sofrimento e às dificuldades impostas pela noite
da injustiça que ainda cobre o mundo. É nela que os
pequenos de todos os povos precisam se encontrar e caminhar para afugentar
as sombras e dar vida a novas luzes. Os primeiros passos já
estão sendo dados. Outros serão necessários.
Tomara que o relato da coruja ajude a multiplicá-los, a unir
os pés, as mãos, as cabeças e os corações
das grandes maiorias que precisam começar a preencher as páginas
da história.
Emilio Gennari
Brasil, 22 de novembro de 2001.
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Serviço
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