Os pica-paus na guerra do Afeganistão

Você deve estar se perguntando o que é que os pica-paus têm a ver com a guerra do Afeganistão. Fique tranqüilo, não se trata de nenhum tipo de avião espião norte-americano e, muito menos, de uma arma secreta de Osama Bin Laden. Como você sabe, os pica-paus são pássaros que usam o próprio bico para retirar os parasitas escondidos atrás das cascas das árvores. Entre eles, há alguns que são jornalistas, professores, assessores e pessoas simples que, em sua luta quotidiana contra a exploração, tentam furar o muro das aparências para desvendar os fatos e as relações que atrás dele se escondem.

O trabalho corajoso e persistente destes pássaros já conseguiu fazer alguns pequenos furos na muralha das declarações oficiais do presidente Bush e de Osama Bin Laden que disputam o papel de representantes do "bem" contra as forças do "mal". Dizem os pica-paus que os buracos são ainda muito pequenos para que o bico possa passar, mas já dá pra espreitar através deles a realidade que se oculta à sombra deste muro.

Ao contarem o que viram, alguns deles me convenceram a colocar no papel o relato de suas primeiras observações e a levá-las até você. Foi assim que me apressei em pegar a caneta e organizar as informações de acordo com aquilo que foi possível enxergar através de cada um dos pequenos furos. É pouco, mas já permite ver com outros olhos o dia-a-dia da guerra no Afeganistão.


1. A história e suas revelações surpreendentes.

O Afeganistão vem sendo considerado como uma das nações mais pobres e atrasadas do mundo. Até o início da década de 70, o país é governado por uma monarquia que tem pouco poder. Quem manda mesmo é um punhado de proprietários de terras que não hesita em usar a religião muçulmana para legitimar a sua dominação.

Esta realidade faz o descontentamento crescer não só entre o povo como nos setores progressistas e em parte do exército. É contando com o apoio deles que, em 1973, o rei Mohamed Zahir Shah é derrubado por seu primo Mohamed Daud que instaura um regime republicano. A reviravolta permite as atividades do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), de inspiração comunista, que tem como base os poucos intelectuais afegãos que residem nas cidades, os estudantes e alguns oficiais das forças armadas. Os pontos principais do seu programa são: a reforma agrária, a libertação da mulher e a alfabetização em massa da população. Cedendo às pressões dos conservadores, Daud assume posições cada vez mais moderadas e, em 1978, tenta suprimir as atividades do PDPA numa época em que a situação econômica e social do Afeganistão piora a olhos vistos.

Neste contexto, duas lideranças de esquerda são assassinadas e as manifestações de protesto se espalham pelo país. A polícia reage com a repressão e a prisão de vários representantes dos setores progressistas. Mas, longe de acabar com os tumultos, estes acontecimentos abrem caminhos para a revolta de um setor das forças armadas. Nos enfrentamentos que se desenvolvem em abril de 1978, Daud e boa parte do seu gabinete são mortos. O PDPA assume o poder e proclama o Afeganistão "república democrática" sob o comando de Mohamed Taraki.

No mesmo ano, Taraki realiza uma reforma agrária radical. Cerca de 250 mil camponeses são beneficiados com uma ampla distribuição de terras e são canceladas todas as dívidas com os antigos proprietários. O novo regime liberta 8 mil prisioneiros políticos e declara que a educação é um direito universal tanto para os homens como para as mulheres.

As reações dos setores conservadores são violentas e levam Taraki a buscar apoio na antiga União Soviética. Esta escolha provoca duros embates no interior do PDPA que acabam fortalecendo a oposição.

Em setembro de 1979, Taraki é assassinado e substituído por Hafizullah Amin, homem forte do regime anterior. Incapaz de controlar a situação do país, Amin é morto em dezembro do mesmo ano durante a rebelião que leva ao poder Babrak Karmal, apoiado pelo exército da União Soviética que, no final de dezembro de 1979, ocupa a capital e, em seguida, estende o seu controle ao resto do país. As mudanças iniciadas com Taraki continuam e os resultados começam a aparecer. Se em 1977 só 15% dos meninos e 2% das meninas tinham acesso à escola, durante o governo do PDPA esta porcentagem cresce até atingir 63 % das crianças em 1987. No mesmo período, o investimento nos serviços de saúde eleva a esperança de vida de 33 para 42 anos. As mulheres dão passos importantes para começar a sair da situação de marginalização em que se encontram. Durante os governos comunistas, o analfabetismo feminino cai de 98% para 75%, milhares de mulheres se integram à vida política do país e abandonam progressivamente as restrições religiosas que as marginalizavam.

Nunca é demais registrar que é a posição estratégica em relação aos demais países da Ásia Central e do Oriente Médio a levar Estados Unidos e União Soviética a uma acirrada disputa pelo controle do Afeganistão. Diante da ocupação do Exército Vermelho, a CIA norte-americana estimula a criação de grupos guerrilheiros que contam com o apoio dos proprietários de terras atingidos pela reforma agrária, dos serviços secretos do Paquistão, da OTAN, de Israel e da Arábia Saudita.

Em março de 1985, o presidente dos EUA, Ronald Reagan, autoriza oficialmente o aumento da ajuda que, desde 1979, a CIA destinava aos guerrilheiros afegãos. Através do Paquistão, os Estados Unidos fazem chegar a eles armas e dinheiro num montante de um bilhão de dólares anuais. A idéia com a qual a CIA procura arregimentar adeptos em todos os países árabes é a de que as sagradas leis islâmicas estariam sendo violadas pelas tropas soviéticas que professam o ateísmo, razão pela qual os seguidores de Maomé deveriam se unir para reivindicar a independência do Afeganistão e derrubar o regime esquerdista sustentado por Moscou.

Movidos pelo nacionalismo e pelo fervor religioso, mais de 100 mil muçulmanos são envolvidos nesta "guerra santa" que combate o exército soviético a serviço dos interesses dos EUA. É neste contexto que um dos filhos da elite da Arábia Saudita, Osama Bin Laden, se torna um estreito colaborador da CIA e passa a integrar as fileiras do Partido Islâmico de Gulbudin Hekmatiar.

Em dez anos de ataques, os guerrilheiros armados pelos Estados Unidos destroem quase duas mil escolas, 31 hospitais, dezenas de empresas, várias centrais elétricas, 41 mil quilômetros de vias de comunicação, 906 cooperativas de agricultores, explodem bombas em cinemas e praças cheias de gente. Os que Reagan chama de "lutadores da liberdade", Bin Laden entre eles, se dedicam a matar sem piedade mulheres, crianças, anciãos, líderes religiosos partidários do governo e professores. Apesar do requinte de crueldade com o qual costumam agir, os guerrilheiros nunca são chamados de "terroristas" nem pelos EUA e nem pelos países europeus, chegando, no máximo, a receber o apelido de "rebeldes" após utilizarem mísseis ingleses e estadunidenses para derrubar dois aviões civis das linhas aéreas do Afeganistão.

Em setembro de 1987, Babrak Karmal se demite do cargo e o general Najibullah assume o seu lugar. Pressionado pela nova política de Gorbatchev o novo presidente tenta dar início a um processo de pacificação que é recusado pelos guerrilheiros. Entre agosto de 1988 e fevereiro de 1989, o exército soviético sai do Afeganistão. A situação do país se torna ainda mais tensa não só pelos enfrentamentos entre os guerrilheiros e as forças de Najibullah, como pelas divisões que se manifestam entre os 15 grupos armados que lutam para derrubar o governo afegão, 8 dos quais são muçulmanos xiitas enquanto os outros 7 são sunitas.

Em maio de 1992, o exército de general Najibullah é derrotado, os guerrilheiros ocupam a capital do país e, em junho do mesmo ano, nomeiam Burhanudin Rabani como presidente interino. A sua tentativa de fazer conviver a ala moderada com o setor fundamentalista do Partido Islâmico de Hekmatiar não vinga e as duas facções se enfrentam numa sangrenta guerra civil.

Em 1996, os integralistas islâmicos (Talibãs) tomam o poder. O seu exército continua contando com a estrutura guerrilheira dos anos anteriores. Nos campos de treinamento do Afeganistão e do Paquistão são preparadas, agora, as forças que vão se opor aos grupos muçulmanos moderados (que formam a "Aliança do Norte") e as que ajudarão a sustentar a guerra separatista na Chechenia, apoiada pela CIA. A presença dos EUA em mais este conflito não é explicada por motivos nobres. Chechenos e norte-americanos estão interessados em afastar a Rússia das abundantes jazidas de petróleo do Mar Cáspio. A independência da Chechenia tiraria das mãos de Moscou o controle do principal oleoduto que sai da região e abriria caminhos para a exploração dos poços por parte das empresas inglesas e norte-americanas.

Neste contexto, o Afeganistão seria uma espécie de ponto de passagem obrigatória de um oleoduto e de um gasoduto que transportariam os combustíveis a serem embarcados rumo aos Estados Unidos e ao Extremo Oriente. Mas há um imprevisto. O Talibã se opõe a este brilhante plano da CIA e os aliados de ontem se tornam inimigos dos interesses estadunidenses que hoje aguardam ansiosos a sua concretização. Vamos entender porque isso acontece.

Contrariando as aparências, em nenhum momento Osama Bin Laden é um defensor dos fracos e oprimidos contra os interesses das empresas multinacionais. E também ele nunca traiu o setor da elite árabe interessado em ampliar seu domínio no Oriente Médio e na Ásia Central. Ciente dos limites das reservas de combustíveis fósseis, este setor busca o pleno controle das fontes de energia e a progressiva redução da influência americana sobre a região. Mas, para isso, o primeiro passo é o de desestabilizar as atuais monarquias da Arábia Saudita e dos países próximos que, hoje, têm uma posição subserviente em relação aos Estados Unidos. A motivação religiosa do seu grupo é um elemento importante para fazer com que as massas muçulmanas empobrecidas se levantem contra seus governantes e abram caminhos rumo a um estado islâmico fundamentalista e capitalista. O apoio popular, o controle das jazidas e a ação terrorista dos membros de sua organização (Al-Qaida) seriam elementos chaves para começar a reverter a situação de dependência em relação aos interesses norte-americanos e ingleses.

Tenha sido ou não Osama Bin Laden a planejar os atentados, a guerra declarada pelos EUA parece ser uma mão na roda tanto para os fundamentalistas afegãos como para os interesses ingleses e norte-americanos. De um lado, os ataques ao Afeganistão obrigam os países árabes e muçulmanos a escolherem entre Bin Laden (e a suposta defesa da religião islâmica) e George W. Bush. Ao optarem pelo apoio ou pela neutralidade em relação aos EUA estes regimes tendem a acirrar as ações dos grupos que se opõem a seus governos. Ao escolherem Bin Laden, não só perdem um importante aliado militar como este se transforma, automaticamente, em seu inimigo. As manifestações que já foram registradas nas ruas do Paquistão e da Indonésia são apenas uma pequena amostra do que pode vir a acontecer em níveis bem mais amplos.

No que diz respeito aos Estados Unidos, a guerra é um meio necessário para reafirmar o seu poder no mundo e tentar estabelecer em bases mais favoráveis e duradouras o seu controle sobre as reservas de petróleo e gás natural. Não é por acaso que EUA e Inglaterra se apressam em manter contatos com a família e o ex-rei do Afeganistão, Mohamed Zahir Shah, deposto em 1973, para que possam assumir o governo provisório da nação após a eventual vitória das tropas aliadas. Ciente de sua fragilidade política e da realidade do país, devastado por anos de conflito, o novo governo não passaria de uma marionete cujos movimentos, em última análise, seriam ditados pelos interesses do capital inglês e norte-americano. É claro que isso demandaria ações adicionais para neutralizar a atuação dos guerrilheiros da Aliança do Norte que hoje recebem armas e dinheiro da Rússia (que também quer garantir o seu controle sobre a região do Mar Cáspio), mas esta já é outra questão a ser delineada pelo desenrolar do conflito.

Imagino que depois desta chuva de dados históricos, contradições e surpresas, você já deve estar meio cansado. Eu sei que não foi fácil segurar o tranco, mas, confesse, depois do relato deste pica-pau as coisas começam a ficar mais claras. Sabendo que as próximas páginas vão apresentar elementos intrigantes, o segundo representante da espécie sugere que você tome um café e dê uma boa espreguiçada porque vem aí ...


2. O problema das fontes de energia.

Com certeza, você deve ter percebido que o pica-pau anterior nos alertou sobre uma disputa que vem acontecendo há mais de uma década: a guerra pelo controle das reservas de petróleo e de gás natural. Sabendo da importância deste assunto, ouvi com atenção o que outro pássaro destemido tinha a dizer após a olhada que ele conseguiu dar através do segundo pequeno furo que já foi feito na muralha.

Antes de começar o seu relato, ele me aconselhou a pegar um Atlas e a abri-lo nas páginas que contém os mapas do Oriente Médio e da Ásia Central. Dessa forma, é bem mais fácil acompanhar e entender os seus argumentos. Dada a dica, aí vai a narração que ele me fez com uma paciência e precisão surpreendentes.

Diz o pica-pau que se o consumo mundial de petróleo continuar aumentando do jeito que está, até 2020 estarão esgotadas cerca de dois terços das reservas de combustíveis fósseis do planeta. Um prazo de 19 anos parece algo distante no tempo, mas, como se trata de uma matéria-prima estratégica para a economia mundial, a corrida para garantir o acesso a estes recursos vai se acirrar cada vez mais.

Neste contexto, a posição dos Estados Unidos é bastante vulnerável por, pelo menos, três razões. A primeira vem de uma constatação inquietante. Se os EUA tivessem que contar somente com as reservas que estão em seu território teriam petróleo suficiente para não mais do que quatro anos. Isso sem contar que, por exemplo, a exploração das jazidas do Alaska demandaria investimentos mínimos da ordem de 20 bilhões de dólares só na construção de um oleoduto e enfrentaria fortes oposições dos grupos ecologistas.

A segunda está no fato de que 82 em cada 100 barris do petróleo importado pelos Estados Unidos vem da Arábia Saudita. A monarquia que governa este país, principal aliado dos EUA no mundo árabe, enfrenta uma oposição crescente contida através de uma dura repressão a toda expressão de sentimento antigovernamental. Apesar dos sucessos obtidos até agora, a freqüência dos ataques terroristas na Arábia e o descontentamento em relação ao seu governo são suficientes para vislumbrar que esta dominação não vai durar para sempre.

O último motivo de preocupação não repousa somente na constatação de que países como o Irã e o Iraque estão longe de ter um relacionamento amigável com os Estados Unidos, mas, sobretudo, no fato de que as empresas de capital francês (Total e Elf) fizeram pesados investimentos no Irã e se associaram à Rússia na exploração das jazidas do Mar Cáspio. Esta aliança permite à Rússia controlar, direta ou indiretamente, um território que inclui as regiões produtoras do Cáucaso (entre elas a Chechenia) e de boa parte da Ásia Central.

Uma saída para a situação desconfortável em que se encontram os interesses norte-americanos já havia sido revelada no início de 1998 pelo Tenente Coronel da Reserva Lester W. Grau que, entre outras coisas, foi assessor político e econômico no quartel geral das Forças Aliadas da Europa Central em Brunssum, Holanda. Na matéria publicada pela revistas Foreign Affairs, Lester reconhece a fragilidade das condições de abastecimento dos Estados Unidos, avalia as alternativas para melhorar esta situação e aponta como caminho mais viável a construção de um oleoduto que sairia das jazidas do Cazaquistão ou do Turcomenistão, próximas ao Mar Cáspio, passaria pelas cidades de Herat e Kandahar, no Afeganistão, entraria no Paquistão por Quetta e terminaria no porto de Karachi. Daí petróleo e gás seriam facilmente embarcados rumo aos EUA, China e Japão evitando assim as águas conturbadas do Golfo Pérsico que já foram palco de violentos enfrentamentos. O custo da obra giraria em torno dos 2 bilhões de dólares e daria acesso a reservas de petróleo 33 maiores que as da Alaska e a uma quantidade de gás natural estimada em 50% do total já descoberto a nível mundial. O único problema técnico é a presença em território afegão de um tal de Osama Bin Laden cujas forças se recusam em atender às expectativas de seus antigos aliados.

Eu já estava fechando o Atlas quando o pica-pau enfiou o bico entre as páginas e o abriu no mapa do Extremo Oriente. De início não entendi, mas ele me disse que eu estava esquecendo de dois países importantes nesta disputa pelo acesso aos combustíveis fósseis: a China e o Japão. Aquele pássaro sabido me contou que, nos dois últimos anos, a China mudou a configuração de sua Força Aérea de defensiva para ofensiva e produziu novos mísseis estratégicos de longo alcance. Além disso, vem deslocando boa parte de seus efetivos militares que estavam na fronteira norte com a Rússia para seu lado oeste (de onde espera aumentar o fornecimento de petróleo e gás natural) e para os mares do Leste e do Sul da China. Aparentemente, isso poderia ser explicado em função das conturbadas relações políticas deste país com a ilha de Taiwan que já sofreu sérias ameaças militares. Mas uma análise mais atenta revela que é justamente nestes mares que se encontram jazidas promissoras de petróleo e gás natural.

Na corrida às reservas de combustíveis fósseis, a China já declarou o Mar do Sul como parte do seu território marítimo nacional e reafirmou o seu direito de usar a força para protegê-lo. Esta postura agressiva estimulou a Indonésia, a Malásia, a Tailândia, o Vietnam e as Filipinas a reforçar seus efetivos aéreos e navais nesta região cujo controle é objeto de disputa.

O Japão não ficou pra trás e aumentou a sua capacidade de operação com novos navios de guerra e aviões de combate armados com mísseis. No Mar do Leste os japoneses estão disputando diretamente o controle das futuras jazidas e no do Sul procuram garantir não só a manutenção de suas rotas comerciais com o sudeste asiático como o próprio abastecimento de petróleo. De fato, 80% dos petroleiros que levam o produto para o país atravessam as águas do Mar do Sul da China e uma guerra nesta região representaria um alto custo para o Japão.

Ciente de todas as implicações e do jogo de interesses que estariam envolvidos num possível conflito neste canto do globo, há três anos os Estados Unidos vêm pressionando o Japão para que assuma um papel mais ativo no equilíbrio militar daquela área. Isso implicaria em pesados investimentos que superariam as necessidades de autodefesa permitidas pela constituição nipônica. Além dos limites legais, o horror e a rejeição diante de um ataque armado a outro país são sentimentos ainda presentes entre o povo que não consegue esquecer os efeitos devastadores das bombas atômicas. Ao mesmo tempo, porém, não faltam especialistas que vêm apontando os gastos em armamentos, a serem realizados pelo estado japonês, como um caminho para enveredar numa nova fase de crescimento econômico, além, claro, de poder enfrentar melhor as tensões com as nações vizinhas.

Diz o pica-pau que ele ficou preocupado com a decisão do Japão de enviar navios de guerra em apoio à esquadra norte-americana. Ele sabe que a ajuda se dará nas áreas de transporte, reabastecimento, serviços médicos, proteção às instalações militares dos EUA no Japão, apoio aos serviços de inteligência e ajuda humanitária aos refugiados. Mas, após o fim da segunda guerra mundial, esta é a primeira vez que o país envia parte de suas forças armadas para uma zona de guerra longe de seu território e a utiliza para tarefas que nada têm a ver com a sua autodefesa.

Ao que parece, em nome da necessidade de responder aos ataques terroristas do dia 11 de setembro como "renovado desafio à liberdade", o Japão ensaia os primeiros passos para justificar um aumento dos gastos militares e levar as pessoas a reduzir suas resistências em relação à idéia de uma guerra ofensiva. É como se os senhores do poder estivessem tirando os sapatos para entrar na consciência do povo sem serem ouvidos e plantar aí as sementes das atitudes que gostariam de ver brotar no futuro.

O pica-pau me garante que as nuvens no horizonte dos Mares da China não estão ainda tão escuras a ponto de ameaçarem uma tempestade iminente. A chuva ainda pode demorar, mas a depender do desfecho dos enfrentamentos no Afeganistão, o aumento da tensão nesta região do mundo tende a ser inevitável. Na dúvida, é melhor ficarmos de olhos e ouvidos bem abertos já que, por um bom tempo, as notícias que virão do Extremo Oriente serão cobertas pelo show de imagens da parafernália de guerra norte-americana.


3. A "guerra nas estrelas" como caminho para a dominação mundial.

Assim como uma conversa puxa outra, o relato do pica-pau anterior foi seguido pela narração de outro que se atreveu a espreitar pelo buraco que chamou de "guerra nas estrelas". Confesso que, de início, fiquei meio desconfiado, como quem acha que o pássaro, desta vez, está exagerando nas cores, mas ele me mostrou como cada peça da política armamentista estadunidense encaixa nesta idéia geral.

Não é uma novidade pra ninguém o fato de que, nos últimos anos, as fábricas de armas dos Estados Unidos andavam mal das pernas. O governo havia reduzido a compra de suprimentos das forças armadas e as restrições comerciais impostas a vários países impediam o aumento das exportações das mais caras e eficientes máquinas mortíferas. A situação era tão gritante que, em maio do ano 2000, um grupo de especialistas reunidos pelo Pentágono chegava à conclusão de que era necessário e urgente fazer com que este setor da indústria "ganhasse mais dinheiro". Respondendo a este apelo, o então presidente, Bill Clinton, reduzia as restrições às exportações de artefatos bélicos dos EUA com o claro propósito de aumentar os lucros das empresas e, de conseqüência, suas atividades produtivas e de pesquisa.

Por importante que fosse, esta ajuda não substituía os gastos que o estado teria caso fosse viabilizado em grande escala o escudo de Defesa contra Mísseis Balísticos (DMB), conhecido também pelo nome de "guerra nas estrelas". O problema aqui não era tanto a disponibilidade de recursos ou a falta de vontade política do Congresso, mas sim a oposição internacional a este projeto apontado como um instrumento de dominação mundial.

Por submissas que sejam as nações de planeta, nenhuma delas engole a idéia que o DMB é apenas uma arma de caráter defensivo para proteger os Estados Unidos dos ataques com foguetes nucleares que, possivelmente, seriam lançados por países que se opõem à sua política internacional. Sabendo do poder de destruição destas armas, do arsenal e dos sistemas de defesa já existentes, disparar um míssil nuclear contra os Estados Unidos seria uma ação suicida para qualquer governo. Estas simples constatações, acompanhadas das ameaças de uma nova corrida armamentista envolvendo os países do Oriente Médio, a China, a Índia, o Paquistão e a própria Rússia, estavam esvaziando o esforço da diplomacia norte-americana. Esta fazia realmente o impossível para mostrar que a segurança dos EUA estava em perigo e que o DMB era uma necessidade para a paz mundial.

É neste contexto que, em maio do ano 2000, a conferência da ONU sobre o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares se pronunciou por uma ampla condenação do DMB com o argumento de que deitaria por terra décadas de acordos internacionais para a redução e o controle das armas nucleares e promoveria uma nova corrida armamentista.

A bem da verdade, estas reações "oficiais" escondiam a realidade que havia sido expressa pelo representante da China ao discutir na ONU o projeto "guerra nas estrelas" do então presidente Ronald Reagan: "quando os Estados Unidos se convencerem de que possuem tanto uma longa lança, como um forte escudo, poderão ser levados a concluir que podem destroçar qualquer país, em qualquer lugar do mundo, sem perigo de retaliações". Em português claro, se é possível dar porrada sem se atingido, ninguém vai ter coragem e ousadia suficientes para se opor aos desmandos norte-americanos e, de conseqüência, os interesses econômicos que carregam a bandeira estadunidense estarão protegidos em qualquer lugar do planeta.

Você entende que, diante do poder de fogo deste sistema de "defesa", não é preciso efetuar nenhum disparo para que todos se disponham a obedecer. Por si só, a sua existência já constituiria uma ameaça assustadora. Seria só o Tio Sam bater o pé para pôr todos pra correr. E isso, longe de representar um futuro de liberdade, igualdade e paz, seria sinônimo de dominação, de aprofundamento da desigualdade e da exploração, de um estado de terror e de guerra permanentes.

O pica-pau me confessou que ele adoraria reconhecer que suas conclusões estão erradas, mas as matérias publicadas pelo New York Times, Financial Times e Foreign Affairs em maio e junho de 2001 dizem que, infelizmente, suas impressões podem estar corretas. O verdadeiro objetivo do escudo de Defesa contra Mísseis Balísticos é o controle do espaço, o que, nas palavras do atual Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, implica em "colocar armas ofensivas no espaço". Em outras palavras, não bastasse o perigo constituído pelos arsenais terrestres, a opção norte-americana aponta para a militarização efetiva do espaço exterior. Isso seria realizado com armas capazes de atingir não só os mísseis (que poderiam ser disparados da terra) e outros alvos civis ou militares, como os satélites que orientam os sistemas de defesa e garantem as comunicações entre as demais nações.

Levando em consideração que o desenvolvimento e a produção das armas anti-satélite é bem mais simples do que a operacionalização do DMB, haveria um aumento da corrida aos armamentos espaciais por parte de um bom número de países. A vantagem competitiva das empresas estadunidenses garantiria seus lucros e o poderio dos Estados Unidos sobre o mundo.

Aliás, foi por estas razões que, recentemente, os EUA se recusaram a reafirmar o Tratado do Espaço Exterior de 1967 (que proíbe a colocação de armas no espaço) e, desde janeiro de 2001, vêm bloqueando todas as seções da conferência da ONU sobre desarmamento. Isso apesar das pressões da Rússia e da China que, cientes do seu atraso tecnológico e dos custos proibitivos deste projeto para suas economias, apelavam para a completa desmilitarização do espaço, a redução do número de ogivas e a criação de zonas livres de armas nucleares.

Os atentados terroristas do dia 11 de setembro mostraram que a América é, de fato, vulnerável e que há vários países querendo prejudicá-la. Somando esta constatação às pressões internacionais articuladas pela dupla Bush-Blair ao redor da necessidade de apoio das demais nações à luta contra o terrorismo, o resultado pode ser explosivo. A médio prazo, a perspectiva é a de que o peso dos argumentos americanos a favor do DMB venha aumentando tanto no interior da ONU como na relação com as principais potências do planeta. Isso não significa que a indústria armamentista vai ter que esperar para engordar seus lucros. O ritmo de suas máquinas já foi aumentado após a decisão de declarar guerra ao Afeganistão e as ações de indústrias como a Honeywell International, Locked Martin, Rayteon, Northrop Grumman e a Boeing (que, além de aviões, fabrica também mísseis e satélites) são as únicas que se valorizaram mesmo nos dias em que a Bolsa de Valores de Nova Iorque registrava seguidas quedas em seus indicadores. Para elas, esta guerra (à qual já foi destinada a quantia de 344 bilhões de dólares) é apenas uma espécie de tira-gosto quando comparada às possíveis encomendas do projeto de militarização do espaço. Pelo visto, os urubus já estão se posicionando com o olhar atento e o bico afiado. O desfecho do conflito no Afeganistão é que vai dizer quanta carniça continuará sendo oferecida à apreciação de seus paladares.

Antes de ir embora, o pica-pau me fez reparar que nenhum escudo antimíssil pode deter o que ele chamou de "terrorismo atômico". De acordo com seus conhecimentos, a carga de "uma bomba nuclear que pudesse facilmente varrer Manhattan e matar 100 mil pessoas é uma bola de plutônio que pesa 15 libras (em torno de 7 quilos). Ela é pouco maior do que uma bola de futebol e pode ser transportada para o interior dos Estados Unidos numa mala de viagem".

Não, infelizmente isso não é ficção científica. O míssil que carrega a ogiva é grande por causa dos motores, dos tanques de combustível, do sistema de navegação e dos demais etceteras que o fazem funcionar, mas a parte que vai fazer o estrago é pequena. Sabendo que com a confusão causada pelo fim da União Soviética houve contrabando de peças e material nuclear, nada impede que tais cargas tenham caído nas mãos de grupos terroristas que contam com as polpudas quantias de dinheiro necessárias para realizar este tipo de compra. É claro que as coisas não são tão fáceis assim, mas esta possibilidade é bem menos remota do que parece.

Não bastasse este perigo, os recentes casos de contaminação pela bactéria antraz revelam que as armas químicas e biológicas são, provavelmente, uma ameaça ainda maior para os países ricos. Ainda que a sua disseminação seja razoavelmente simples, a transformação deste micro-organismo numa arma mortal é bastante complexa e não pode ser realizada em laboratórios de "fundo de quintal". O pica-pau me disse que, provavelmente, os EUA correm o risco de provar o seu próprio veneno. De fato, além da atual oposição da administração Bush ao controle das armas químicas e biológicas, o próprio governo Clinton se encarregou de sabotar os acordos internacionais sobre esta matéria. Por anos a fio, ele não financiou e deixou de realizar as inspeções internacionais e as demais ações que poderiam garantir a eliminação deste perigo para a vida da humanidade porque estava preocupado em "proteger as companhias farmacêuticas e de biotecnologia americanas". O resultado já está debaixo dos nossos olhos: qualquer pó branco "suspeito" é motivo de pânico e de correrias que só favorecem as indústrias de antibióticos e de máscaras antigás. Quando o lucro vem antes da vida, o resultado final não pode ser diferente do que já cansamos de constatar.

Dito isso, o terceiro pássaro bateu asas e saiu apressado de volta à muralha. Já estava achando que o meu trabalho de relator havia terminado quando vi chegar um pica-pau com as penas meio chamuscadas pelo fogo. Cansado e ferido, me conta que um míssil das "forças aliadas" o pegou de raspão na hora em que estava tirando o olho do último buraquinho. Ainda não sabe se esta foi uma retaliação contra a espécie ou uma ameaça, mas, apesar dos pica-paus não terem um "FBI" e nem uma "CIA", são suficientemente inteligentes para entender que não se trata de um erro ou daquilo que numa guerra engorda a lista dos "danos colaterais". Preocupado em divulgar suas informações, me pede para não ficar enrolando e chamar o seu relato com o título...


4. Matando quatro coelhos com uma paulada só.

Além dos problemas da indústria armamentista e de abastecimento de petróleo e gás natural, a economia norte-americana estava patinando naquela que os especialistas chamam de "crise de superprodução". Sim, você entendeu bem, não se trata de uma situação de falta, mas de sobra de capitais e de mercadorias. É uma realidade que, de tempos em tempos, se instala em qualquer país capitalista após uma fase de crescimento econômico.

A causa do seu aparecimento não está no desemprego, mas no mecanismo que faz girar as engrenagens da exploração: a produção da riqueza é coletiva, mas, na hora de dividir o bolo, são os patrões que se apropriam da fatia maior. Eles a usam não só para ter condições de vida muito melhores do que as nossas, como para realizar novos investimentos aumentando assim o número de bolos e o tamanho de suas fatias. Como os trabalhadores e as trabalhadoras ficam só com as migalhas, não é difícil você entender que, mais dias menos dias, a sociedade vai viver o absurdo de uma situação de pobreza em meio à abundância.

Aparentemente, a saída poderia ser a de promover o encontro entre os famintos e a comida, os descamisados e a roupa elevando os salários e distribuindo melhor a renda. Mas isso é impossível de acontecer no sistema capitalista, pois o aumento dos vencimentos faz a exploração diminuir e reduz o retorno sobre as quantias que foram investidas. Como o objetivo central é o lucro, e não a vida do ser humano, os ganhos não seriam compensatórios e os patrões não teriam razões para aplicar seu dinheiro na produção. É por isso que, diante da crise, eles optam por fechar as empresas, reduzir drasticamente o ritmo das máquinas ou até mesmo destruir a abundância. O aumento do desemprego assim provocado vai elevar o arrocho dos salários e a exploração da força de trabalho proporcionando o retorno de margens de lucro satisfatórias que apontam para uma nova fase de crescimento da economia.

Entre os problemas que esta situação propõe, está o de justificar perante os olhos da sociedade os sacrifícios que os capitalistas preparam para a população trabalhadora. No passado, já tivemos a desculpa do aumento dos preços do petróleo, mas, desta vez, nem isso podia ser usado para explicar a crise do sistema, controlar o descontentamento e garantir a confiança popular nas leis de mercado.

Os atentados terroristas do dia 11 fizeram as coisas precipitarem. A economia dos Estados Unidos, que já estava mal das pernas, dá sinais claros de que vai entrar em recessão, de que o desemprego vai aumentar e de que várias empresas caminham para a redução de suas atividades. Surpreendentemente, não se registram protestos e manifestações de revolta por parte das pessoas que acabam de perder seus empregos. No momento, há um aumento "tranqüilo" dos que se alistam nas fileiras do salário-desemprego e do exército, ao mesmo tempo em que os árabes se tornam saco de pancada no qual muita gente já desabafou sua raiva e seu próprio sentimento de impotência.

O patriotismo, alimentado pela guerra, faz com que o orgulho de "ser americano" oculte as contradições gritantes que fizeram crescer o fogo da crise e que, agora, serão esquecidas. O senso comum não tem a menor dúvida: Osama Bin Laden é o verdadeiro responsável pelo agravamento da situação econômica do país. Mais uma vez, os capitalistas agradecem e, como já fizeram ao longo da história, se preparam para transformar o esforço de guerra na razão que justifica todo e qualquer aumento da exploração. Em nome do combate ao terrorismo, os lucros das empresas vão voltar a ter um futuro promissor.

Além de dar um sentido palpável à crise econômica, os atentados devem destravar as negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), ao mesmo tempo em que colocam obstáculos à rodada de negociações no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC). Bom, vamos pegar um bicho de cada vez e mostrar a relação entre estes elementos e a crise da qual falávamos antes.

No que diz respeito à ALCA, a recusa de países como o Brasil em apressar a formação de um mercado comum das Américas se baseia numa constatação muito simples: o baixo preço das mercadorias produzidas nos Estados Unidos (às vezes, a custos subsidiados) acabaria levando à falência um número significativo de empresas que não têm a menor condição de entrar nesta competição em pé de igualdade. Para que isso não aconteça, os países da América do Sul vêm taxando uma longa lista de produtos importados das nações do norte com a finalidade de elevar seus preços e proteger suas economias até que sejam eliminados os efeitos devastadores da competição internacional.

Inicialmente, se previa que as coisas ficariam como estão até janeiro de 2005, data a partir da qual seria iniciado o processo de redução dos impostos e seriam removidas as barreiras para a livre comercialização dos produtos entre as duas Américas. Sentindo a chegada da crise, em 1999, os EUA começaram a ampliar as pressões para reduzir significativamente os tempos que antecediam a integração das economias do continente. A razão era muito simples: o aumento de suas exportações ajudaria a apressar a saída da crise de superprodução. Na medida em que a sobra fosse exportada para a América do Sul, os lucros nos Estados Unidos parariam de cair, várias empresas seriam abertas para dar conta das novas encomendas ao mesmo tempo em que muitas outras estariam sendo fechadas em países como Brasil e Argentina.

Sim, você entendeu bem. Uma das saídas para a crise dos EUA era justamente a de exportá-la para outros países apressando a implantação da ALCA. Acontece que o Brasil não comprou esta idéia e isso colocou em ponto-morto a discussão do mercado comum das Américas. As negociações pararam e tudo parecia indicar que Bush teria mesmo que esperar janeiro de 2005. Com o clima de chantagem criado pelas declarações de que "quem não está do lado dos Estados Unidos está do lado dos terroristas" é de se esperar que as pressões para acelerar o ritmo da ALCA se ampliem nos próximos meses. Isso ocorreria porque para reativar a economia e para arcar com os custos da guerra os EUA precisam de recursos, entre os quais figuram os do aumento de suas exportações.

No que diz respeito à Organização Mundial do Comércio (OMC), os norte-americanos vêm sendo acusados de lançar mão de práticas protecionistas (como a imposição de taxas aos produtos de outros países ou a definição de quotas rígidas de importação de certas mercadorias) e de aumentar os subsídios concedidos aos agricultores. Estas medidas, que visam proteger a economia estadunidense da concorrência internacional, ferem várias normas da OMC e, antes dos atentados, os países europeus estavam se organizando para que as negociações dos próximos meses fossem favoráveis aos interesses de suas economias. Pelas últimas informações, o calendário de reuniões preparatórias acaba sendo esvaziado pelo desenrolar dos acontecimentos. Enquanto isso, as incertas e sombrias perspectivas de futuro para a economia mundial e para as relações internacionais estão se encarregando de questionar a conveniência da rodada de negociações da OMC começar em 2002 e abrem caminhos para a implantação de exigências que não são favoráveis aos países pobres.

Como você já deve ter entendido, os atentados do dia 11 de setembro ajudaram a matar mais três coelhos: culpam os terroristas pela crise econômica, pressionam para acelerar os tempos da ALCA ao mesmo tempo em que tendem a reduzir as exigências de mudança na política econômica norte-americana no interior da OMC.

O quarto coelho é tão importante quanto os anteriores. A reação dos Estados Unidos aos ataques terroristas apaga as diferenças entre os movimentos de resistência (que assumem a forma de uma guerrilha armada) e aqueles que podem realmente ser definidos como terroristas. Esta confusão abre o caminho da repressão violenta contra aqueles grupos cuja luta vem ganhando o apoio da opinião pública internacional.

Aproveitando o sentimento de indignação que se espalhou pelo mundo, a Agência Estadunidense de Combate às Drogas, por exemplo, se apressou em incluir o Exército Zapatista de Libertação Nacional do México (EZLN) na sua lista de movimentos terroristas a serem combatidos. Apesar dos zapatistas não ter realizado nenhum atentado e não estarem envolvidos com o tráfico, as acusações norte-americanas vão no sentido de pressionar o governo mexicano a adotar uma saída militar para o conflito que vem se desenrolando desde 1º de janeiro de 1994. Entre as principais razões que explicam esta postura, está o fato de que o EZLN e as comunidades indígenas que o apóiam ocupam uma região muito rica em petróleo e urânio.

A coisa foi tão descarada que, temendo o pior, tanto o governador do Estado de Chiapas como o encarregado do governo pelas negociações com os zapatistas, Luis H. Alvarez, se apressaram em declarar aos jornais que o EZLN não pode ser confundido com um grupo terrorista por ter objetivos sociais bem definidos e também não há envolvimento de seus integrantes no tráfico de entorpecentes.

Como você pode ver, os Estados Unidos não perdem tempo. A lista destes grupos parece ser longa e, se as intenções norte-americanas não forem desmascaradas, pouco a pouco, qualquer manifestação contra os interesses dos poderosos pode vir a ser considerada uma forma de terrorismo por representar um atentado contra a ordem. Os mais diversos grupos de resistência que organizaram os protestos de Genova, Praga, Washington e Seattle seriam colocados sob suspeita pelo simples fato de existirem.

Apesar do cansaço e das feridas, o quarto pica-pau decide voltar para ajudar os demais que se esfolam na árdua tarefa de furar a muralha. Um profundo silêncio de reflexão se apodera do quarto onde estou escrevendo estas últimas linhas. Revolta e esperança formam um turbilhão que empurra à ação, a levantar a cabeça e começar a caminhar. Sozinho com todos estes pensamentos olho pela janela de onde vejo entrar um pombo-correio. Os seus movimentos inquietos me fazem entender que se trata de algo urgente e me apresso a abrir a mensagem que ele traz. Nela está escrito: "A humanidade está em perigo. Os que dizem estar do lado do bem são lobos disfarçados de cordeiros. Não há tempo a perder. Convide os pica-paus e os demais pássaros de todas as cores, tamanhos, raças e religiões a correrem para a muralha. Precisamos abrir novos buracos para que nas escolas, nas fábricas, nos campos, nos bairros e em todos os cantos da terra mais pessoas possam enxergar o mundo que atrás dela se esconde. Urge organizar as forças para enfrentar a onda de exploração e morte que ameaça se abater sobre o planeta".

Bom, o recado está dado. Vou entregar ao pombo-correio uma mensagem avisando que o relato está pronto e vai ser divulgado. Tomara que isso ajude a fazer com que uma revoada de pássaros levante vôo e use seu canto de múltiplas línguas para deter a guerra e construir um mundo onde a paz seja o fruto de uma árvore chamada justiça.

Emilio Gennari.
Brasil 18 de outubro de 2001.


Bibliografia:

Além das inúmeras matérias publicadas no jornal Gazeta Mercantil, foram consultados os textos que seguem:
· Ahmed Rashid, El Taliban: exportando extremismo, em Foreign Affairs em espanhol, novembro-dezembro 1999.
· Antonio Negri, El terrorismo, enfermedad del sistema, em La Jornada, México, 15 de outubro de 2001
· Delip Hiro, Las conseqüências de la jahad afgana, Inter Press Service, 21 de novembro de 1995.
· Iván Valdés, EE. UU. necesita controlar la region petrolifera en torno a Afganistán . La guerra del petrolero George W. Bush, em El Siglo, Nº 137, ano 2001. Obtido através da página eletrônica da revista.
· José Antonio Egido, Afganistán: cuando los comunistas protegian los derechos de las mujeres, em Rebelión, 26 de setembro de 2001. Obtido através da página eletrônica da revista.
· Lester W. Grau, La política Del Oleoducto e el surgimiento de uma nueva región estratégica: Petróleo e Gas natural del Mar Caspio y Asia Central, em Foreign Affairs em espanhol, janeiro-fevereiro de 1998.
· Michael T Klare, La nueva geografia de los conflictos internacionales, em Foreign Affairs em espanhol.
· Michel Chossudovsky, Osama Bin Laden: um guerrero da CIA, em La ornada, México, 23 de setembro de 2001.
· Noam Chomsky, Hegemonia ou sobrevivência, divulgado através da página eletrônica da revista Z-net em 3 e 4 de julho de 2001.
· Noam Chomsky, A política dos Estados Unidos – Estados rebeldes, estudo divulgado através da página eletrônica do Centro de mídia independente em 17 de setembro de 2001.

 

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