Wlliam Morris e o "novo" espírito utópico

Um pensamento harmônico com o seu tempo e em diálogo constante com as questões concretas produzidas a partir de sensações e ansiedades únicas de uma época.

A relação entre o pensamento libertário e a obra literária e filosófica de William Morris, inscreve-se na encruzilhada que liga o ideário racional do século XIX às tradições utópicas que vinham se desenvolvendo desde o crepúsculo do século XVI com Thomas Morus. O livro de Morris, "News from Nowhere", não é a visão de um epígono, tentando, através da re-edição de uma idéia, preservar a essência do pensamento dos que o precederam. Mas sim, um pensamento harmônico com o seu tempo e em diálogo constante com as questões concretas produzidas a partir de sensações e ansiedades únicas de uma época. O ideal morrisiano, embora aparentemente avesso a "modernidade", é sintoma desta. Reação de um espírito inquieto e voltado para o projeto utópico legítimo aos homens que, embora pertençam a um determinado tempo, colocam sua sensibilidade ao serviço abnegado de uma sociedade melhor, mais justa e igualitária.

Embora Morris nunca tenha claramente identificado-se como anarquista, este foi dono de uma narrativa eminentemente libertária e vista pelos anarquistas de seu tempo, e mesmo depois dele, como uma das obras que mais poeticamente definia o pensamento acrata, nas suas linhas mais gerais. George Woodcock, eminente historiador do anarquismo, assim define a obra de Morris: "Todavia, a única visão de utopia que encontrou - não em alguns elementos isolados, mas na sua totalidade - acolhimento plenamente favoravel por parte dos anarquistas foi News from Nowhere ("A Terra Prometida"), de William Morris. Neste livro, Morris, cujas idéias estavam muito próximas das de Kropotkine, descreveu o tipo do mundo que poderia nascer, se os sonhos anarquistas de edificar sobre as minas da autoridade uma nova sociedade harmoniosamente equilibrada, tivessem possibilidade de se concretizar."1 É interessante observar, no entanto, que a obra de Morris sendo uma reflexão das suas experiências como militante e ao mesmo tempo marca do seu talento literário, encarna em muito estas duas experiências complementares, mas ao mesmo tempo conflitantes: Se, por um lado, sua atuação política o aproximou muito dos anarquistas, tornando-se amigo íntimo de Kropotkin ,2 Morris não era refém desta proximidade, chegando inclusive a posicionar-se como marxista. O mesmo acontecendo com sua obra que, segundo Miguel Abensour,3 foi muitas vezes identificada como, uma "parábola marxista," pelos elementos engajados nesta causa, ou como um gênero semelhante anarquista, pelos entusiastas desta outra.

Esta disputa da alma morrisiana, traduz, na verdade, o entendimento da obra de Morris enquanto alegoria no sentido da representação, ou metáfora no sentido da substituição de uma imagem por outra.

É claro que, o aprisionamento da imagem desta obra, quer em um campo ideológico ou em outro congênere, roubaria da mesma sua amplitude ou universalidade que é justamente a sua qualidade libertária.

A vida de Morris é bastante elucidativa em relação aos significados de sua obra. As posições que assumiu dentro da Liga Socialista na Inglaterra e sua visão de mundo, o colocavam em distinta oposição às teses do socialismo mais vulgar. A sua perspectiva do trabalho, que deveria ser atraente e não enfadonho e desagradável como o era no sistema capitalista, o aproximava de Kropotkin e Fourier. Preocupava-se com a industrialização e as conseqüências nefastas desta na constituição do tecido social de sua época, e a este respeito nos esclarece G. Woodcock: "No universo tolstoiano dominado pela razão e pela Natureza o tempo escoa-se, lentamente, tal como naquela longa tarde estival de liberdade, sonhada por William Morris."4 Também a relação com a obra de Tolstoi é bastante grande, principalmente no seu teor hostil à sociedade industrial.

Toda uma gama de influências e discordâncias nortearam o desenvolvimento da produção intelectual de Morris.

Na sua vida política, Morris testemunhou eventos importantes; o Congresso Anarquista Internacional de 1881 e pouco depois a criação da "Labour Emancipation League" na Grã-Bretanha pelos anarquistas. Em um momento em que as disputas entre socialistas e libertários não eram tão claras, a recém criada Liga filia-se a Segunda Internacional através da Federação Social-Democrata. Entretanto, a direção marxista da Federação e a postura autoritária de seu dirigente H. M. Hyndman provocaram, logo, uma cisão e estimularam a criação posterior da Liga Socialista. Para onde iram migrar, além dos anarquistas, o próprio, Morris, Belfort Bax e Eleonor Marx Aveling.

Nesta nova organização William Morris, fica responsável pela publicação do "Commonweal",5 o periódico da mais representativa Liga dissidente na Inglaterra.

Dentro da Liga Socialista, que rapidamente assumiu diretrizes anarquistas, Morris teve experiências de convergência com as representações de Lane, Kitz e C. W. Mowbray, principalmente na questão da liberdade. "Para Morris, tal como para os anarquistas, era imperioso descobrir um meio pelo qual o povo 'pudesse destruir, por si próprio, a sua escravidão'"6 Por outro lado, as divergências com estes não eram poucas e giravam em torno, principalmente, das manifestações extremistas de violência de alguns militantes anarquistas. Morris, como Tolstoi, Godwin e Proudhon, considerava a importância de um longo processo de educação para posterior transformação da sociedade.

A posterior saída de Morris da Liga Socialista, se deu, em parte, por um profundo desgaste e constantes alterações e divergências de opinião no seio da entidade. E sua insistência em afirmar "categoricamente" que não era um anarquista, segundo George Woodcock, esbarrava em uma argumentação claramente depreciativa de um tipo de anarquismo: o individualista. "Nenhum anarquista, excepto um stirneriano fanático, poderia estar em desacordo com o ideal de Morris, de que os homens devem agir para o bem de seus semelhantes; com efeito, um dos dogmas fundamentais do anarquismo é o de que a liberdade permite a expansão harmoniosa da natural solidariedade humana."7

Para Woodcock, as querelas entre Morris e os anarquistas eram muito mais de caráter pessoal, do que propriamente por divergências no campo teórico, já que, na sua utopia, "News from Nowhere", este pinta um quadro radicalmente anárquico. Onde, o ambiente é apresentado sem o menor traço de autoridade ou mesmo de governo. Morris e os anarquistas estiveram de acordo ao imprimirem a Liga Socialista um caráter antiparlamentar, ocasionando a saída de marxistas e socialistas moderados,8 em 1887. E só em 1889 é que as divergências tornam-se insuportáveis para Morris e este desligou-se da organização.

Mas estas divergências, o que reforça a teoria de Woodcock de incompatibilidades pessoais, em 1896 estavam aparentemente superadas, pois, nesta ocasião os anarquistas foram expulsos do Congresso da Segunda Internacional em Londres e ganharam, ao contrário do que os marxistas da social-democracia esperavam, a simpatia dos socialistas menos ortodoxos. "William Morris, já quase moribundo, enviou uma mensagem em que juntava a sua voz ao coro dos protestos, alegando que só a doença o impedia de comparecer em pessoa." 9

 É claro que este apoio dado aos anarquistas, neste episódio histórico para o movimento operário, em nada caracterizava uma possível conversão. Mas é um sinal da sintonia de pressupostos teóricos entre o pensamento social libertário anarquista e a proposta morrisiana.

 

O novo espírito utópico e o marxismo

A passagem do século XVIII para o XIX, encheu o pensamento social de contribuições bastante profícuas, sob a forma de representações literárias e mesmo teóricas. O socialismo utópico, nome este, forjado a partir de uma crítica posterior ao mesmo, derramou pela Europa uma densa camada que longe de cristalizar-se concebeu variações que, com maior ou menor vigor, animaram as manifestações revolucionárias do primeiro quartel do XIX. Segundo Miguel Abensour, ao período da "aurora socialista" segue-se o neo-utopismo, que trata de confrontar o primeiro pensamento utópico de Owen, Fourier e Saint-Simon; submetendo-o a "conciliação" com o seu tempo. Esta contraposição promove a adequação da utopia a linguagem de seu tempo. É o redimensionamento da vontade utópica ao novo momento histórico, possibilitando a permanência do vigor e potência utópica às novas condições, ou mesmo, formas de organização do socialismo.

O novo espírito utópico não é romântico, embora possamos encontrar suas raízes neste movimento. Ele é a leitura do movimento social de forma mais ampla à feita pelos seus predecessores. O novo espírito utópico nasce da necessidade de entendimento dos processos sociais, atrelados a uma perspectiva onde "a ruptura com a crença na autarquia e na supremacia de uma só consciência (...)"10 evite a cristalização do movimento em ciência única. A inserção do conceito de emancipação do proletariado por ele mesmo e do fim dos modelos produzidos e impostos de cima para baixo, são também características do novo espírito que surge a partir de 1848.11

Para Abensour a utopia naquele momento, não serve apenas de exemplo ou demonstração; "(...) tem como tarefa pôr em marcha o desejo das massas, fazer ver; melhor: fazer desejar. A utopia se torna uma maiêutica passional."12

A utopia, naquele momento, aponta para a crítica de uma sociedade que é incompetente em vivê-la. A utopia não representa modelo, ela é sinergia, que provoca a reflexão e estimula a "vontade de poder" e os projetos dos homens. O novo espírito utópico não é episteme, é trajetória crítica; ele percebe e trabalha com os desvios e não com o retilíneo. Utilizar o retilíneo, seria negar a seu próprio caráter desviante e reivindicador de uma sociedade radicalmente diferente. O novo espírito utópico representa, também, a resistência à um mundo linear, e ser puramente "racional" seria tornar-se o que de fato se combate.

O "Manifesto do Partido Comunista" publicado por Karl Marx e Freidrich Engels pode ser apontado como sintoma de um movimento anti-utópico que, a partir de 1848, passa a definir cada vez mais claramente seus pressupostos teóricos. Condenando e classificando as utopias em suas diversas manifestações a uma etapa separada, e por conseqüência a caracterização desta como anacronismo reacionário. Assim Marx e Engels referem-se aos primeiros utopistas: "A literatura revolucionária, que acompanhou estes primeiros movimentos proletários é, pelo conteúdo, necessariamente reacionária."13

Embora, Marx e Engels, atribuíssem, em um primeiro momento, às utopias um caráter revolucionário, logo em seguida, justificam que, estas o foram em um momento pré-maturo ao desenvolvimento das contradições entre as classes, "(...) surgem no primeiro período, ainda não desenvolvido, da luta entre o proletariado e a burguesia (...)" 14

O entendimento do conceito: utopia, para os pais do "socialismo científico", era por demais datado historicamente e cristalizado em um passado de tênue consciência social da classe operária. Era impossível diante dos cânones do materialismo, esboçados no "Manifesto Comunista", a percepção da utopia como desdobramento independente da teia científica apriorística, montada pelo pensamento marxista.

Mas o novo espírito utópico, que teve em William Morris um de seus mais destacados representantes, nutriu-se também desta racionalidade canônica oitocentista. Na busca de uma atualização, a utopia assimilou, obviamente, o espírito de seu tempo e deste pensamento eclético, longe de empobrecer, encontrou suas virtudes.

Como nos assevera Abensour, uma das "figuras" ou representação deste novo espírito utópico é parte integrante do marxismo, "(...) mais precisamente, nas correntes oposicionistas ou marginais do marxismo."15 E continua: "Para os partidários do novo espírito utópico, a crítica de Marx, em si mesma problemática, não significa o fim da utopia mas outro tipo de relação que resta definir e elaborar."16 E é nesta definição em elaboração, que encontramos a obra de Morris. Não podendo identifica-la totalmente ou mesmo taxonomiza-la para não agirmos como redutores de uma contribuição, em si, complexa para o pensamento do novo espírito utópico.

As críticas que chegavam, através dos marxistas, até às fileiras dos utópicos do novo espírito, eram interpretadas como uma estratégia social-democrata, no claro intuito de desqualificar a ação revolucionária do grupo ao qual pertencia Morris. A Liga Socialista, que promovia constantes diálogos entre Morris e os anarquistas, era concretamente um problema para a direção marxista mais tradicional do movimento operário inglês. E os debates encaminhados após 1883, com a morte de Marx, eram, não raro, protagonizados por elementos ligados a Engels ou signatários, nem sempre rigorosamente féis, às propostas do mesmo.

O pensamento utópico sofria sistemáticas críticas e depreciações por parte dos socialistas científicos, principalmente quando estes insistiam em ampliar a lógica mecânica de seus pressupostos revolucionários. A idéia de um movimento não ajustado a princípios rígidos de conduta histórica, remetia a conduta utópica ao campo da inconseqüência ou mesmo da inocência típica dos espíritos pueris.

Engels ia mais longe, e chegava mesmo a associar as práticas divergentes às de seus correligionários, como pertencendo à infância das atitudes políticas. "(...) Engels forjou a associação esquerdismo = infantilismo, destinada a fazer sucesso sob a pena de Lenin."17 Em cartas datadas de 1886, Engels escreveu a Paul Lafargue e W. Liebknecht,18 utilizando termos como: "doenças infantis", ao referir-se a Morris e ao grupo de anarquistas da Liga Socialista.

Estas associações são claras e surgiram, com maior incidência, no período posterior a morte de Marx. Mas a idéia de utopia como ingenuidade já existia, em essência, nos escritos da brochura de 1848 e continua no livro de Engels sobre o socialismo científico e o utópico de 1880, que pretendia, em parte, ser uma homenagem a seu companheiro Karl Marx. O livro de Engels reforça a perspectiva do socialismo científico como "expressão teórica do movimento operário", desqualificando as demais propostas de caráter revolucionário.

Nos debates dos anos 80 do século XIX, apareceram muitas variações do pensamento socialista e muitas destas apresentam aspectos, onde a reflexão de David Hume ao afirmar que: "a razão é escrava das paixões", pode ser verificada.

Devemos questionar até que ponto as críticas dos marxistas a Morris, e a Liga Socialista, eram fruto de uma disputa emocional de vaidades. E em que medida as associações são feitas a partir de exercícios teóricos ou mesmo contorcionismos da razão, em nome das necessidades de ocupar espaços no movimento operário europeu. Abensour nos diz: "O novo espírito utópico de William Morris é compreendido assim como uma luta travada em duas frentes ao mesmo tempo. O ponto nodal é a posição escolhida em face dessa situação histórica particular que pode se chamar 'o após-Marx'."19

Morris foi marxista pelo que esta teoria representava de fundamental em proposta teórica. Resgatou também, em seu pensamento, a matriz romântica do iluminismo, mas buscando no cientificismo oitocentista a consistência para sua perspectiva utópica de mundo. Foi, em muitas passagens de sua obra, a negação do marxismo em vigor no seu tempo. Viu no anarquismo, em alguns momentos, a prática democrática necessária e solidarizou-se com ele. Tentou resgatar nas linhas de Marx, algo que o próprio Marx, tentou purgar: "o seu espírito utópico". Em outras palavras: amou Marx, por seus "defeitos" e não pelas suas qualidades materialistas (ciência). Foi criticados pelos marxistas por ser um ingênuo e infantil socialista, ou seja, foi diminuído pela lógica da cientificidade, justamente pelas suas qualidades.

Morris teve que somar forças com os anarquistas, por perceber, provavelmente, nestes o vigor utópico tomado dos marxistas por uma práxis materialista aprisionadora das liberdades do homem.

 

Literatura e engajamento

William Morris experimentou por vezes a sensação de estar órfão, para poder manter-se coerente com suas convicções no novo espírito utópico. As idiossincrasias entre a obra e a prática política, podem ser explicadas pela própria natureza dialógica do pensamento morrisiano. Misturando às suas inquietações e qualidades literárias, de rara sensibilidade, o desejo de contribuir efetivamente com as mudanças sociais de sua época.

Fruto de seu tempo e não prisioneiro deste, Morris singrou com sua obra utópica os tempestuosos debates e as perplexidades de um tempo carente de identidade. Foi testemunha da difusa estética socialista, polimorfa e fugaz, algumas vezes, e extremamente dogmática por outras. Encarnou de forma emblemática a necessidade do indivíduo no projeto coletivo, reafirmando o papel da paixão do homem na dinâmica das massas.

O homem, em Morris, não era apenas o ator da superestrutura de Marx, mas, sim, o elemento poderoso sequioso de vontade de mudança, premido pelas questões sociais infra-estruturais, mas, guiado pela "vontade de poder"e pelos sonhos gestados na observação, que este fazia, de sua realidade concreta.

A utopia de Morris, não era a descrição de um mecanismo que prefigurava um fatalismo histórico ditado pelas forças produtivas ou por desígnios supra-humanos. Ela reabilitava o ato de desejar, para além das formalidades teóricas do materialismo, embora não venha a romper totalmente com pressupostos marxistas básicos. Inaugurou a conjunção entre as possibilidades de uma concepção estética do desejo e as teorias sistematizadoras do movimento socialista.

Abensour refere-se a este fenômeno da seguinte maneira: "Assim, observávamos, a utopia já não tem a função de convencer ou de fazer compreender o valor de um modelo ou de uma solução para a questão social; ela tem como tarefa por em marcha o desejo das massas, fazer ver; melhor: fazer desejar" 20 Acreditando na viabilidade dos projetos humanos, com claras influências do pensamento socrático; Abensour, acredita em um Morris guiado pela emoção, pela crença na dinâmica positiva das massas e seus desdobramentos revolucionários. E nos afirma que: "A utopia torna-se uma maiêutica passional"21

A idéia de que o ergástulo da pobreza ou das injustiças só pode ser superado por uma ação coletiva, não prescinde dos desejos individuais que devem conspirar para tanto.

E o entendimento, na obra de Morris, de uma libertação dos trabalhadores por eles mesmos, adquire nesta perspectiva uma tonalidade símbolo da passionalidade apontada por Abensour. Passionalidade esta que, não se esgota em um frenesi despropositado ou mesmo sem objetivo. Antes, representa a tentativa do equilíbrio ou eqüidistância entre o mundo apolíneo e o dionisíaco, não justificada ou reafirmada pela finalização em si; mas pela tentativa de viver este paradoxo constitutivo da própria vida.

 

Utopia como sintoma de uma época

A busca de William Morris não pode ser entendida como uma procura solitária e melancólica de uma quimera inatingível como a alguns pode parecer. Ele inscreve-se na mais profunda angustia reflexiva de sua época. Uma época, que, como já vimos, permanecia a deriva em seu perfil estético e que ao mesmo tempo beirava o messianismo típico de um fim de século. Este panorama suscitava, em alguns de seus contemporâneos, a preocupação em definir minimamente os paradigmas deste, aparentemente, incognoscível perfil oitocentista.

O termo "Modernidade", objeto de Charles Baudelaire, é um exemplo claro deste pensamento, que representava a necessidade do entendimento daquele momento histórico distinto. E que, ao mesmo tempo, revelava a impossibilidade de dar conta do mesmo.

Baudelaire nos guia, através de frases sutis, ao seu pensamento ou mesmo às impressões que possuía de seu tempo: "A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável."22 Para o autor de "Flores do Mal", a estética verdadeira só poderia ser a atual ( do momento ao qual nos referimos), pois a cópia de realidades passadas são impossíveis de reedição pelos homens do presente, sob pena de aparecerem desprovidas de verdadeiro significado. E, continua: "Sem dúvida é excelente estudar os antigos mestres para aprender a pintar, mas isso pode ser tão-somente um exercício supérfluo se o nosso objetivo é compreender o caráter da beleza atual."23 A idéia de copiar o passado é tão desprezível para o artista, quanto for o seu espírito rebelde no tempo em que vive. A angústia de muitos estetas do século XIX é ter que conviver com a contingência de um tempo cumulativo dos períodos anteriores, figuras sobrepostas em uma superfície unitemporal ou seja sem espírito.

Desta mesma forma podemos encarar a obra de Morris, que, como já vimos, inscreveu-se na tradição utópica, sem no entanto, servir de uma espécie de epigonismo estético. Morris a elaborou de forma original e encaminhou-a na direção do pensamento libertário. A produção de William Morris foi sintonizada com o seu tempo, unica e com claras distinções, se comparada às de seus antecessores; Godwin, Saint-Simon e Owen.

Desta mesma forma encontramos, neste período, outros intelectuais preocupados com a caracterização estética do fim do século XIX, que demonstram, por assim dizer, zêlo em registrar minimamente as reflexões de sua época, de forma original e autêntica.

Entre outros artistas contemporâneos implicados no objetivo de definir alguns princípios estéticos, encontramos Oscar Wilde; para quem: "(...) a arte é o fim supremo, contém em si própria iluminação e regeneração, e todo o resto lhe deverá estar subordinado."24 A obra de Wilde, inscreve-se historicamente em uma tradição bastante próxima a de Morris, como libelo anti-burguês, e com o mesmo objetivo de Baudelaire: denunciar as implicações sociais da civilização burguesa e sua decadência. Devemos, entretanto, lembrar que estes pensadores tinham em comum o ódio pelo tipo de mundo criado pela burguesia, mas que, chegaram a mesma conclusão por estímulos distintos.

Baudelaire, desprezava a burguesia e da mesma forma a auto- comiseração dos pobres, e neste particular aproximava-se de Wilde, quando este afirma: "Frequentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre eles."25 As opiniões em relação às atitudes do pobre ou miserável destes "dândis"26 , aproximavam-se e posteriormente distanciavam-se valendo-se de lógicas semelhantes.

Oscar Wilde, que admirava o pensamento político de Kropotkin, possuía uma concepção estética bastante distinta da maioria dos anarquistas e no que tange às propostas puramente organizativas da esquerda a distância era ainda maior. Podemos tomar como exemplo a opinião de Kropotkin sobre a arte que, para este, apresentava valores morais e não era por si mesma um fim. Guiado pelo evolucionismo, filho de seu tempo, o príncipe russo talhava com as cinzeladas da razão oitocentista as estruturas de uma vertente do ideário acrata. A admiração pelas idéias não determinava a adesão incondicional às mesmas, e como já vimos no caso de William Morris e Kropotkin isto também se verificava. As utopias, em que pese a consonância de propósitos, apresentaram singularidades na forma mas em muitos aspectos demonstraram complementariedade no sentido.

O que se apreende de toda essa malha ideológica, em seus matizes distintos; é que havia no fim do século passado uma cultura libertária, partindo de várias concepções de mundo e/ou mesmo de formas singulares de interpretar a realidade. O chamado decadentismo, anunciado pelos dândis, surgia como uma profecia apocalíptica e misturava-se de forma simbiótica ao pensamento social, tornando ainda mais complexa a análise do período, ou mesmo, imprimindo-lhe um aspecto multifacetado ampliando ainda mais a sua complexidade.

É neste sentido que o novo espírito utópico morrisiano identificou-se, por um lado, pelo seu forte caráter romântico e iluminista e, por outro, pela procura de um caminho original. Esse espírito envolveu muito mais que uma simples estratégia ou mesmo ideal de sociedade futura; ele foi o avesso da crítica, um apelo visceral da linguagem, ou seja, a necessidade de elaboração de um discurso inaugural de sua época. Discurso montado sob forma de mosaico e como fragmento deve ser entendido.

Um destes fragmentos, que aliás, somava-se a outros, era o de uma crítica a civilização e retorno a uma época de ouro. Temática na qual podemos circunscrever o próprio Morris visto, por alguns críticos do período, como um homem amante da Idade Média juntamente com Edward Carpenter, Tolstoi e outros. Que afinavam-se em concepções ou idéias sobre os males sociais.

A trajetória de Edward Carpenter, é lapidar nesse sentido; nascido em Brighton em 1844, formou-se em Cambridge e tornou-se "fellow" desta instituição. Ordenou-se cura em 1869 e abandonou a carreira eclesiástica em 1873. Figura de rara inteligência, foi morar no campo e construiu sua casa com as próprias mãos, atitude bastante elucidativa de suas convicções. Posteriormente desaparece do mundo acadêmico da época.

A defesa de uma vida simples e a convicção da relação dos males sociais com o tipo de organização da própria sociedade, eram a tônica do pensamento deste anglo-saxão. Carpenter criticava a sociedade moderna e atribuía muitos dos problemas desta à industrialização: fonte de perturbações e desequilíbrios. Na sua obra "Prisões, Policia e Castigos"27 , ele cita, logo após seu prefácio, um poema de Oscar Wilde entitulado "Ballada do Carcere"28 , e mesmo dentro de sua obra, o nome de William Morris surge para reafirmar sua consonância cognitiva com o autor de "New from Nowhere". Em uma passagem onde o tema central é o trabalho, Carpenter assim nos assevera: "Em terceiro lugar segue-se - como afirmou com tanta perseverança William Morris - que o trabalho com esta orientação seria um prazer, um dos maiores prazeres, sem dúvida da vida e este unico facto transformaria por completo o seu caracter."29

Este fragmento versa sobre o trabalho livremente escolhido, e é mais uma demonstração do grau de cumplicidade de que gozavam alguns grupos; em especial a fração libertária aqui analisada. A sociabilidade dos grupos provavelmente contribuiu para a oxigenação das perspectivas teóricas dos mesmos, ou até para o confronto entre o pensamento e a ação.

Carpenter em seus trabalhos enfocava, não raro, a necessidade do prazer estar associado à atividade produtiva. O trabalho era tratado, por este ex-clérigo, como uma atividade importante, mas que deveria respeitar as inclinações pessoais dos homens, para que não se tornasse um martírio, fardo ou estorvo a vida. São dele estas indagações: "Quantos há que sentem um verdadeiro prazer, uma real satisfação no seu trabalho diário? Podem, em cada communa contar-se pelos dedos. Mas onde está a felicidade de se viver, se o seu elemento principal, aquelle que deveria estar sempre na frente de todos, é odioso?"30

As questões levantadas por Carpenter são elucidativas , menos pelo seu teor ingênuo e mais pela distinção que apresenta em relação aos discursos marxistas, que pouco tratavam das sutilezas da essência humana na busca do prazer. Carpenter opera, em seu opúsculo, uma distinção radical que encontra eco em outras obras de seu tempo: Ele exige do trabalho uma vocação, até então impensável, voltada para a transformação do esforço em vontade de produzir.O apelo por substituir o suor da necessidade pela transpiração do êxtase é que possibilitaria, segundo ele, ao homem, a felicidade radical sem as agruras do dia-a-dia ou a medíocre condenação a um cotidiano enfadonho. Assim Carpenter nos apresenta sua solução: "Não; o único systema econômico verdadeiro, é preparar as coisas de modo que o trabalho constitua alegria. Então, e somente então, começará a estabelecer-se solidamente na margem firme da vida. Com tal trabalho fica-se de ter bellos productos; esta desgraçada distinção do bello e do util acabará e todo o produto será uma obra d'arte, a arte alia-se á vida."31

Carpenter propunha a subversão do conceito de trabalho, e oferecia como alternativa uma vida integral de beleza ao definir uma nova estética para a produção. Ele sacralizou, dentro de seu discurso profano, a produção e conferiu o status de artista à todos os produtores.Neste momento promoveu-se a ruptura com uma visão de mundo do trabalho, oferecendo-se outra muito mais alegre e libertadora. O autor coerente com seus princípios "naturalistas", pensa com a mente de um artesão e nega assim o seu tempo de industrialização. A perspectiva desenhada por Edward Carpenter, guardadas as proporções, é emblema de um meta-hedonismo, assimilado e reelaborado a partir das realidades de um dado período. Tempo este que, não aprisionou e nem condicionou de forma vertical as formas de pensar que o constituíram.

Carpenter, embora sujeito histórico, forjou uma corrente que insistia em combater a noção de progresso em vigor naquele fim de século na Europa.

Para William Morris, o ideal de mundo não estava muito afastado do disposto acima, e para Miguel Abensour; em seus escritos sobre Morris: "Aí está a diferença em relação a Marx: para este último, o verdadeiro reino da liberdade só pode florescer se fundado no reino da necessidade, que forma como que o fecho da previsão marxiana. Morris se orienta de outra forma, explora o reino da liberdade que se desenvolveria sobre suas próprias bases, um 'positivo concreto'."32

Essa fissura é o grande salto do "marxista" Morris em direção ao pensamento libertário, que representa no século XIX, aquela encruzilhada da radicalidade teórica ou mesmo do sonhar utópico. A profusão dos desejos de libertários como Carpenter e Morris, não permitia a camisa-de-força enrigecedora do pensamento materialista de Marx e Engels. A sujeição ao "rigor acadêmico" das teses dos socialistas marxistas era por demais emasculadora das virilidades ou vitalidades utópicas. Talvez encontremos aí as razões que levaram Morris a ingressar na Liga Socialista e, até mesmo, sua posterior indisposição com os anarquistas mais violentos e dogmáticos.

Utopia como valor filosófico

O chamado novo espírito utópico, aparentemente não identificado por sua época, incompatibilizou-se com a dinâmica do capital e também com muitas das soluções apresentadas pela esquerda hegeliana. O materialismo histórico e dialético pareciam conspirar em favor da exclusão dos novos utopistas e, neste ponto, estavam em consonância com a proposta "inexorável" de industrialização do mundo. A evolução ditava os desígnios da história e subordinava os caminhos desta à uma dinâmica revelada. O fatalismo, por vezes, escamoteado em exercícios teóricos bem montados, inspirava as estratégias da esquerda promovendo uma comoção que era vaticinada pelo cientificismo.

Nestas circunstâncias a única chance da inserção de uma proposta utópica, era a produção de um hiato histórico. Um lapso de continuidade na dinâmica histórica, que desse ensejo a uma forma de ver o mundo original e ao mesmo tempo libertária. A preocupação de homens como Edward Carpenter, Oscar Wilde e o próprio Morris somavam-se a de alguns outros que falavam de coisas semelhantes utilizando, entretanto, linguagens distintas. Friedrich Wilhelm Nietzsche, que viveu até o limiar do século XX, é um representante claro deste espírito inconformista e até iconoclasta de seu tempo.

Como Morris, Nietzsche rompe com o linear e o rigidamente "histórico". O filósofo alemão falava na necessidade da "transvaloração" dos valores de sua época, e na ruptura com uma cultura de filisteus adoradores e crentes em verdades supra-sensíveis. A vida para este, é a marcha dos desejos do homem, da sua "vontade de potência", e esta não incorpora as maquinações metafísicas de mundo. Nietzsche, contrário às formas pré-concebidas de dinâmica social, rejeitava a dialética marxista e/ou qualquer outro sistema que não fosse promovido a partir dos projetos do próprio homem e de sua vontade.

A construção teórica de um mecanismo explicativo do processo histórico e até mesmo a idéia de processo eram duramente criticadas por Nietzche. A lógica do materialismo, para o pensamento nietzschiano, era uma excrescência e uma falácia. Posteriormente Hannah Arendet irá sugerir que a visão marxista de mundo, poderia ser interpretada como "(...) se a sociedade sem classes de Marx representa uma secularização da Era Messiânica." 33 A crítica a cultura de sua época e a tradição cristã do ocidente, incompatibilizaram Nietzsche com quase toda a produção intelectual do seu tempo, e este procurou abrir seus espaços com golpes precisos nos cernes do pensamento daquele período.

Entre as vítimas da ácida crítica de Nietzsche encontramos a própria história e os historiadores, a quem ele atribui a "qualidade"de eunucos: "A cultura histórica também é, efetivamente, uma espécie de encanecimento inato, e aqueles que trazem em si seus sinais desde a infância têm de chegar à crença instintiva na velhice da humanidade: à velhice, porém, convém agora uma ocupação senil, ou seja, olhar para trás, fazer as contas, concluir, procurar consolo no que foi por meio de recordações, em suma, cultura histórica."34

E para Abensour, encarnando a perspectiva morrisiana: "Para conduzir essa exploração, William Morris interpõe a era do repouso, uma grande suspensão do tempo histórico, as férias da humanidade, um entre parênteses de onde poderá emergir uma nova maneira de existir que, de modo poético, reencontra o que anunciava Nietzsche." 35

As semelhanças da obra de Morris com as propostas de Nietzsche, entretanto, apresentam limitações. Pois a própria militância política do primeiro, sutilmente impunha-lhe compromissos nunca assumidos pelo segundo. A máxima nietzschiana: "a paixão pela verdade é o ódio pela vida", não era o fio condutor de Morris e nem podia sê-lo... pela própria natureza de seu envolvimento com a questão operária.

Mas mesmo assim as semelhanças entre os dois pensadores, surgem em vários momentos da obra "News from Nowhere" e, o que os marxistas interpretam como fragilidade: falta de um projeto pedagógico concreto; aos olhos da filosofia nietzschiana pode aparecer como virtude. "O abandono da utopia-modelo acarreta um efeito bem antipedagógico uma vez que o modelo contém necessariamente a pedagogia e vice-versa."36 O entendimento das possíveis conjunções entre os pensamentos de um determinado período, como vimos, sofre das descontinuidades e do polimorfismo das influências às quais seus respectivos proponentes estiveram expostos. Não estamos aqui apontando um todo coerente nas obras ou atores citados, mas percebemos que a exposição destas idéias possibilitaram, mesmo que subjetivamente, um esgarçamento da lineariedade iluminista e introduziram, na virada deste século, uma tradição cisionista que rompeu com a harmonia da visão bipolar de uma luta de classes carente de espírito humano.

A rejeição da racionalidade científica ou mesmo o retorno à simplicidade social podem ser entendidos como uma reação ao "espírito" dominante. E desta razão iluminista nos fala Nietzsche através da história: "Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mais é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me ainda mais simplesmente sobre meu tema: há um grau de insônia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruina, seja ele um homem ou um povo ou uma civilização."37 O esquecimento para Nietzsche tem valor terapêutico para a sociedade, até pela relativização dos valores e como o próprio filósofo alemão pensava; a história deveria ser arte e não ciência.'

É no sono e na anti-história que encontramos o "novo espírito utópico" identificado por Abensour. E é nele também onde encontramos a força utópica renovada e profundamente iconoclasta. Quando E. P. Thompson, segundo Abensour, resgata a obra literária de Morris; "(...) para entregá-la à história do socialismo."38 Com todo o seu rigor dialógico, esta obra permite, de forma distinta às suas congêneres utópicas anteriores: "(...) comunicar por sua vez sua (a das várias interpretações) própria visão de comunismo."39

A leitura dos utópicos do final do século XIX, longe de serem apenas ensaios de lirismo e poesia, é a constatação de um saber único e sintoma da criatividade do homem a despeito das verdades científicas ditadas pelo cartesianismo.

Ciência como simulacro

A ciência do século XIX, serviu à constituição de escaramuças para várias intervenções e elaborações retóricas no seio do socialismo. A razão foi, em muitos momentos, o antídoto à "simplicidade" das teses utópicas e até mesmo à "simploriedade" de seus formuladores. Como já vimos, a pecha de utópico, a partir de Engels, era desqualificação total de uma proposta com aspirações revolucionárias. Este demérito construído por um saber específico que se queria universal, alijou do panorama político um número significativo de entusiastas e militantes. Quer por sujeição aos pressupostos científicos, ou por esvaziamento de seus ideários. Os revolucionários não-marxistas eram constantemente criticados, ou a eles se referia de forma jocosa e irônica. Para Miguel Abensour: "Sensíveis (Morris e os anarquistas) à tradição plebéia dos oprimidos, exprimindo-se na longa cadeia das utopias sociais, denunciaram, como Tcherkesoff, em Os Precursores da Internacional (1899), a hegemonia da "ciência" como vontade de hegemonia política dos partidos sociais-democratas." E continua : "Sob a máscara do socialismo científico eles desvelaram a ameaça da revolução externa ao proletariado." 40

A revolução anunciada e vinda do alto, certamente era incompatível com as idéias utópicas de Morris, e o projeto social-democrata que disputava espaço na segunda internacional valia-se, como se viu, do discurso da eminência científica. "Mas, à diferença dos sociais-democratas clássicos e de outros marxistas, tão respeitosos da 'ciência' quanto um burguês vitoriano, William Morris optou por uma posição crítica original e extremamente fecunda."41 A crítica, a qual se refere Abensour, é dirigida à antiga leitura utópica executada de forma monológica e, de certa forma, segundo este autor, mais limitada que a anunciada por Morris em seus escritos.
A posição de Morris é delicada na medida em que nutrindo-se de muitas idéias de Marx, é obrigado a divergir categoricamente da maioria dos seguidores deste. Para as concepções etapistas de uma grande parte dos marxistas o gradualismo era muito claro e sintoma comprovável de progresso social; a superação da utopia como forma de manifestação revolucionária era, nada mais, nada menos, que a confirmação de um sentido histórico ao qual a humanidade estava atada.

Contra esta visão fatalista não se levantou apenas Morris mas, com muito mais veemência, o fez Nietzsche ao referir-se, mais uma vez, a história: "A história, na medida em que está a serviço da vida, está a serviço de uma potência a-histórica e por isso nunca, nessa subordinação, poderá e deverá tornar-se ciência pura, como digamos, a matemática. Mas a questão: até que grau a vida precisa em geral do serviço da história, é uma das questões e cuidados mais altos no tocante à saúde de um homem, de um povo, de uma civilização. Pois, no caso de uma certa desmedida de história, a vida desmorona e degenera, e por fim, com essa degeneração, degenera também a própria história."42

A vida para Nietzsche,como já vimos, é a vontade de potência ou de poder, que não permite predestinações de qualquer sentido, e em particular a uma infra-estrutura econômica. Não é tão diferente assim o mundo pensado por Morris e a sua visão de um homem revolucionário e realmente livre. Da mesma forma encontramos nas obras de Carpenter e Wilde, aspirações semelhantes: na preocupação estética e na vocação que o homem têm para o prazer.

Contra as sentenças monolíticas da ciência do século XIX, surgiram as vozes dissonantes que soavam como heresias anacrônicas a uma inexorável realidade. Aos socialistas científicos restava acusar os novos utopistas de símbolos da manifestação da perfídia pequeno-burguesa, e anunciadores de uma heterodoxia cisionista. Diante da caustica crítica produzida pelo novo espírito utópico ao monolitismo e ao pensamento linear, este só podia responder com a elaboração de categorias depreciativas aos grupos desviantes.

O novo espírito utópico de Morris, gravitou em torno da proposta de Marx e foi logo deserdado pelos filhos desta. A linha de pensamento morrisiana, necessitou expor-se ao parricídio para encontrar sua plena liberdade e produzir o signo da sua própria estética; aproximou-se de vários movimentos de sua época, unindo forças com os anarquistas, que por sua vez passavam por um processo semelhante. Morris encarnou a perplexidade e a "vontade de poder" dos homens impenitentes de um período marcado pela fé na razão.

O projeto utópico não configurava-se em panacéia ou cura de uma enfermidade social, como nos mostra a tradição messiânica, embora tangenciasse essa tradição. Ele apontava para a produção de uma ação social, pelo desejo de mudar. Estimulou o resgate de um homem com vocação para a felicidade.

A heterodoxia desta vertente utópica estava, como já vimos, na natureza estética dos questionamentos que a constituíam. E foi justamente isso que a sustentou como elemento força e revelou seu "ato puro"; a capacidade de desejar.



Notas:
1 Woodcock, George.
O Anarquismo. Lisboa, Ed. Meridiano, 1971. p.23
2 idem. ibidem. p.220
3 Abensour, Miguel. O Novo Espírito Utópico. São Paulo, UNICAMP, 1990.
4 Woodcock, George. op. cit. p.240
5 idem. ibidem. p.460
6 idem. ibidem. p.460
7 idem. ibidem. p.461
8 idem. ibidem. p.462
9 idem. ibidem. p.273
10Abensour, Miguel. op. cit. p.119
11 idem. ibidem. p.119
12 idem. ibidem. p.120
13 Marx, Karl. Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. URSS, Edições Progresso, 1987. p.64
14 idem. ibidem. p.64
15 Abensour, Miguel. op. cit. p.20
16 idem. ibidem. p.121
17 idem. ibidem. p.128
18 idem. ibidem. p.129
19 idem. ibidem. p.129
20 idem. ibidem. p.120
21 idem. ibidem. p.120
22 Baudelaire, Charles. Sobre a Modernidade. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1996. p.25
23 idem. ibidem. p.26
24 Woodcock, George. op. cit. p.467
25 Wilde, Oscar. alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre, Ed. LPM, 1983. p.13
26 Segundo o próprio Baudelaire, o dândi é o homem de posses que leva uma vida ociosa e elege um objetivo último a busca da felicidade.
27 Carpenter, Eduardo. Prisões, Policia e Castigos. Lisboa, Ed. da Typographia de Francisco Luiz Gonçalves, 1910
28 idem. ibidem. p.15
29 idem. ibidem. p.112
30 idem. ibidem. p.112
31 idem. ibidem. p.112
32 Abensour, Miguel. op. cit. p.141
33 Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed.
Perspectiva, 1988. p.103
34 Nietzsche, Friedrich Wilhelm.
Considerações Extemporâneas. In: Os Pensadores. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1978. p.66
35 Abensour, Miguel. op. cit. p.58
36 idem. ibidem. p.136
37 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.58
38 Abensour, Miguel. op. cit. p.134
39 idem. ibidem. p.135
40 idem. ibidem. p.12
41 idem. ibidem. p.126
42 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.60
Bibliografia:
ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. São Paulo, Ed.
UNICAMP, 1990.
ARENDT, Hannah.
Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1988.
BAUDELAIRE, Charles.
Sobre a Modernidade. São Paulo, Paz e Terra,
1996.
CARPENTER, Eduardo. Prisões, Policia e Castigos. Lisboa, Ed. Da Thypographia de Francisco Luiz Gonçalves, 1910.
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. URSS, Edições Progresso, 1987.
MORRIS, William. Noticias de ninguna parte. Barcelona, Ed. Hacer. s.d.
NIETZSCHE, Freidrich Wilhelm. Considerações Extemporâneas. In: Os Pensadores. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1978.
WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre, Ed.
LPM, 1983.
WOODCOCK, George.
O Anarquismo. Lisboa. Ed. Meridiano, 1971.

 

www.rizoma.net