Um
pensamento harmônico com o seu tempo e em diálogo constante com
as questões concretas produzidas a partir de sensações e ansiedades
únicas de uma época.
A
relação entre o pensamento libertário e a obra literária e filosófica
de William Morris, inscreve-se na encruzilhada que liga o ideário
racional do século XIX às tradições utópicas que vinham se desenvolvendo
desde o crepúsculo do século XVI com Thomas Morus. O livro de Morris,
"News from Nowhere", não é a visão de um epígono,
tentando, através da re-edição de uma idéia, preservar a essência
do pensamento dos que o precederam. Mas sim, um pensamento harmônico
com o seu tempo e em diálogo constante com as questões concretas
produzidas a partir de sensações e ansiedades únicas de uma época.
O ideal morrisiano, embora aparentemente avesso a "modernidade",
é sintoma desta. Reação de um espírito inquieto e voltado para o
projeto utópico legítimo aos homens que, embora pertençam a um determinado
tempo, colocam sua sensibilidade ao serviço abnegado de uma sociedade
melhor, mais justa e igualitária.
Embora
Morris nunca tenha claramente identificado-se como anarquista, este
foi dono de uma narrativa eminentemente libertária e vista pelos
anarquistas de seu tempo, e mesmo depois dele, como uma das obras
que mais poeticamente definia o pensamento acrata, nas suas linhas
mais gerais. George Woodcock, eminente historiador do anarquismo,
assim define a obra de Morris: "Todavia, a única visão de
utopia que encontrou - não em alguns elementos isolados, mas na
sua totalidade - acolhimento plenamente favoravel por parte dos
anarquistas foi News from Nowhere ("A Terra Prometida"),
de William Morris. Neste livro, Morris, cujas idéias estavam muito
próximas das de Kropotkine, descreveu o tipo do mundo que poderia
nascer, se os sonhos anarquistas de edificar sobre as minas da autoridade
uma nova sociedade harmoniosamente equilibrada, tivessem possibilidade
de se concretizar."1 É interessante observar, no entanto,
que a obra de Morris sendo uma reflexão das suas experiências como
militante e ao mesmo tempo marca do seu talento literário, encarna
em muito estas duas experiências complementares, mas ao mesmo tempo
conflitantes: Se, por um lado, sua atuação política o aproximou
muito dos anarquistas, tornando-se amigo íntimo de Kropotkin ,2
Morris não era refém desta proximidade, chegando inclusive a posicionar-se
como marxista. O mesmo acontecendo com sua obra que, segundo Miguel
Abensour,3 foi muitas vezes identificada como, uma "parábola
marxista," pelos elementos engajados nesta causa, ou como um
gênero semelhante anarquista, pelos entusiastas desta outra.
Esta disputa da alma morrisiana, traduz, na verdade, o entendimento
da obra de Morris enquanto alegoria no sentido da representação,
ou metáfora no sentido da substituição de uma imagem por outra.
É claro que, o aprisionamento da imagem desta obra, quer em um campo
ideológico ou em outro congênere, roubaria da mesma sua amplitude
ou universalidade que é justamente a sua qualidade libertária.
A vida de Morris é bastante elucidativa em relação aos significados
de sua obra. As posições que assumiu dentro da Liga Socialista na
Inglaterra e sua visão de mundo, o colocavam em distinta oposição
às teses do socialismo mais vulgar. A sua perspectiva do trabalho,
que deveria ser atraente e não enfadonho e desagradável como o era
no sistema capitalista, o aproximava de Kropotkin e Fourier. Preocupava-se
com a industrialização e as conseqüências nefastas desta na constituição
do tecido social de sua época, e a este respeito nos esclarece G.
Woodcock: "No universo tolstoiano dominado pela razão e
pela Natureza o tempo escoa-se, lentamente, tal como naquela longa
tarde estival de liberdade, sonhada por William Morris."4
Também a relação com a obra de Tolstoi é bastante grande, principalmente
no seu teor hostil à sociedade industrial.
Toda
uma gama de influências e discordâncias nortearam o desenvolvimento
da produção intelectual de Morris.
Na
sua vida política, Morris testemunhou eventos importantes; o Congresso
Anarquista Internacional de 1881 e pouco depois a criação da "Labour
Emancipation League" na Grã-Bretanha pelos anarquistas.
Em um momento em que as disputas entre socialistas e libertários
não eram tão claras, a recém criada Liga filia-se a Segunda Internacional
através da Federação Social-Democrata. Entretanto, a direção marxista
da Federação e a postura autoritária de seu dirigente H. M. Hyndman
provocaram, logo, uma cisão e estimularam a criação posterior da
Liga Socialista. Para onde iram migrar, além dos anarquistas, o
próprio, Morris, Belfort Bax e Eleonor Marx Aveling.
Nesta nova organização William Morris, fica responsável pela publicação
do "Commonweal",5 o periódico da mais representativa
Liga dissidente na Inglaterra.
Dentro
da Liga Socialista, que rapidamente assumiu diretrizes anarquistas,
Morris teve experiências de convergência com as representações de
Lane, Kitz e C. W. Mowbray, principalmente na questão da liberdade.
"Para Morris, tal como para os anarquistas, era imperioso
descobrir um meio pelo qual o povo 'pudesse destruir, por si próprio,
a sua escravidão'"6 Por outro lado, as divergências com
estes não eram poucas e giravam em torno, principalmente, das manifestações
extremistas de violência de alguns militantes anarquistas. Morris,
como Tolstoi, Godwin e Proudhon, considerava a importância de um
longo processo de educação para posterior transformação da sociedade.
A
posterior saída de Morris da Liga Socialista, se deu, em parte,
por um profundo desgaste e constantes alterações e divergências
de opinião no seio da entidade. E sua insistência em afirmar "categoricamente"
que não era um anarquista, segundo George Woodcock, esbarrava em
uma argumentação claramente depreciativa de um tipo de anarquismo:
o individualista. "Nenhum anarquista, excepto um stirneriano
fanático, poderia estar em desacordo com o ideal de Morris, de que
os homens devem agir para o bem de seus semelhantes; com efeito,
um dos dogmas fundamentais do anarquismo é o de que a liberdade
permite a expansão harmoniosa da natural solidariedade humana."7
Para
Woodcock, as querelas entre Morris e os anarquistas eram muito mais
de caráter pessoal, do que propriamente por divergências no campo
teórico, já que, na sua utopia, "News from Nowhere",
este pinta um quadro radicalmente anárquico. Onde, o ambiente é
apresentado sem o menor traço de autoridade ou mesmo de governo.
Morris e os anarquistas estiveram de acordo ao imprimirem a Liga
Socialista um caráter antiparlamentar, ocasionando a saída de marxistas
e socialistas moderados,8 em 1887. E só em 1889 é que as divergências
tornam-se insuportáveis para Morris e este desligou-se da organização.
Mas
estas divergências, o que reforça a teoria de Woodcock de incompatibilidades
pessoais, em 1896 estavam aparentemente superadas, pois, nesta ocasião
os anarquistas foram expulsos do Congresso da Segunda Internacional
em Londres e ganharam, ao contrário do que os marxistas da social-democracia
esperavam, a simpatia dos socialistas menos ortodoxos. "William
Morris, já quase moribundo, enviou uma mensagem em que juntava a
sua voz ao coro dos protestos, alegando que só a doença o impedia
de comparecer em pessoa." 9
É
claro que este apoio dado aos anarquistas, neste episódio histórico
para o movimento operário, em nada caracterizava uma possível conversão.
Mas é um sinal da sintonia de pressupostos teóricos entre o pensamento
social libertário anarquista e a proposta morrisiana.
O
novo espírito utópico e o marxismo
A passagem do século XVIII para o XIX, encheu o pensamento social
de contribuições bastante profícuas, sob a forma de representações
literárias e mesmo teóricas. O socialismo utópico, nome este, forjado
a partir de uma crítica posterior ao mesmo, derramou pela Europa
uma densa camada que longe de cristalizar-se concebeu variações
que, com maior ou menor vigor, animaram as manifestações revolucionárias
do primeiro quartel do XIX. Segundo Miguel Abensour, ao período
da "aurora socialista" segue-se o neo-utopismo, que trata
de confrontar o primeiro pensamento utópico de Owen, Fourier e Saint-Simon;
submetendo-o a "conciliação" com o seu tempo. Esta contraposição
promove a adequação da utopia a linguagem de seu tempo. É o redimensionamento
da vontade utópica ao novo momento histórico, possibilitando a permanência
do vigor e potência utópica às novas condições, ou mesmo, formas
de organização do socialismo.
O
novo espírito utópico não é romântico, embora possamos encontrar
suas raízes neste movimento. Ele é a leitura do movimento social
de forma mais ampla à feita pelos seus predecessores. O novo espírito
utópico nasce da necessidade de entendimento dos processos sociais,
atrelados a uma perspectiva onde "a ruptura com a crença
na autarquia e na supremacia de uma só consciência (...)"10
evite a cristalização do movimento em ciência única. A inserção
do conceito de emancipação do proletariado por ele mesmo e do fim
dos modelos produzidos e impostos de cima para baixo, são também
características do novo espírito que surge a partir de 1848.11
Para
Abensour a utopia naquele momento, não serve apenas de exemplo ou
demonstração; "(...) tem como tarefa pôr em marcha o desejo
das massas, fazer ver; melhor: fazer desejar. A utopia se torna
uma maiêutica passional."12
A
utopia, naquele momento, aponta para a crítica de uma sociedade
que é incompetente em vivê-la. A utopia não representa modelo, ela
é sinergia, que provoca a reflexão e estimula a "vontade de
poder" e os projetos dos homens. O novo espírito utópico não
é episteme, é trajetória crítica; ele percebe e trabalha com os
desvios e não com o retilíneo. Utilizar o retilíneo, seria negar
a seu próprio caráter desviante e reivindicador de uma sociedade
radicalmente diferente. O novo espírito utópico representa, também,
a resistência à um mundo linear, e ser puramente "racional"
seria tornar-se o que de fato se combate.
O
"Manifesto do Partido Comunista" publicado por Karl Marx
e Freidrich Engels pode ser apontado como sintoma de um movimento
anti-utópico que, a partir de 1848, passa a definir cada vez mais
claramente seus pressupostos teóricos. Condenando e classificando
as utopias em suas diversas manifestações a uma etapa separada,
e por conseqüência a caracterização desta como anacronismo reacionário.
Assim Marx e Engels referem-se aos primeiros utopistas: "A
literatura revolucionária, que acompanhou estes primeiros movimentos
proletários é, pelo conteúdo, necessariamente reacionária."13
Embora,
Marx e Engels, atribuíssem, em um primeiro momento, às utopias um
caráter revolucionário, logo em seguida, justificam que, estas o
foram em um momento pré-maturo ao desenvolvimento das contradições
entre as classes, "(...) surgem no primeiro período, ainda
não desenvolvido, da luta entre o proletariado e a burguesia (...)"
14
O
entendimento do conceito: utopia, para os pais do "socialismo
científico", era por demais datado historicamente e cristalizado
em um passado de tênue consciência social da classe operária. Era
impossível diante dos cânones do materialismo, esboçados no "Manifesto
Comunista", a percepção da utopia como desdobramento independente
da teia científica apriorística, montada pelo pensamento marxista.
Mas
o novo espírito utópico, que teve em William Morris um de seus mais
destacados representantes, nutriu-se também desta racionalidade
canônica oitocentista. Na busca de uma atualização, a utopia assimilou,
obviamente, o espírito de seu tempo e deste pensamento eclético,
longe de empobrecer, encontrou suas virtudes.
Como
nos assevera Abensour, uma das "figuras" ou representação
deste novo espírito utópico é parte integrante do marxismo, "(...)
mais precisamente, nas correntes oposicionistas ou marginais do
marxismo."15 E continua: "Para os partidários do
novo espírito utópico, a crítica de Marx, em si mesma problemática,
não significa o fim da utopia mas outro tipo de relação que resta
definir e elaborar."16 E é nesta definição em elaboração,
que encontramos a obra de Morris. Não podendo identifica-la totalmente
ou mesmo taxonomiza-la para não agirmos como redutores de uma contribuição,
em si, complexa para o pensamento do novo espírito utópico.
As
críticas que chegavam, através dos marxistas, até às fileiras dos
utópicos do novo espírito, eram interpretadas como uma estratégia
social-democrata, no claro intuito de desqualificar a ação revolucionária
do grupo ao qual pertencia Morris. A Liga Socialista, que promovia
constantes diálogos entre Morris e os anarquistas, era concretamente
um problema para a direção marxista mais tradicional do movimento
operário inglês. E os debates encaminhados após 1883, com a morte
de Marx, eram, não raro, protagonizados por elementos ligados a
Engels ou signatários, nem sempre rigorosamente féis, às propostas
do mesmo.
O
pensamento utópico sofria sistemáticas críticas e depreciações por
parte dos socialistas científicos, principalmente quando estes insistiam
em ampliar a lógica mecânica de seus pressupostos revolucionários.
A idéia de um movimento não ajustado a princípios rígidos de conduta
histórica, remetia a conduta utópica ao campo da inconseqüência
ou mesmo da inocência típica dos espíritos pueris.
Engels
ia mais longe, e chegava mesmo a associar as práticas divergentes
às de seus correligionários, como pertencendo à infância das atitudes
políticas. "(...) Engels forjou a associação esquerdismo
= infantilismo, destinada a fazer sucesso sob a pena de Lenin."17
Em cartas datadas de 1886, Engels escreveu a Paul Lafargue e W.
Liebknecht,18 utilizando termos como: "doenças infantis",
ao referir-se a Morris e ao grupo de anarquistas da Liga Socialista.
Estas
associações são claras e surgiram, com maior incidência, no período
posterior a morte de Marx. Mas a idéia de utopia como ingenuidade
já existia, em essência, nos escritos da brochura de 1848 e continua
no livro de Engels sobre o socialismo científico e o utópico de
1880, que pretendia, em parte, ser uma homenagem a seu companheiro
Karl Marx. O livro de Engels reforça a perspectiva do socialismo
científico como "expressão teórica do movimento operário",
desqualificando as demais propostas de caráter revolucionário.
Nos
debates dos anos 80 do século XIX, apareceram muitas variações do
pensamento socialista e muitas destas apresentam aspectos, onde
a reflexão de David Hume ao afirmar que: "a razão é escrava
das paixões", pode ser verificada.
Devemos
questionar até que ponto as críticas dos marxistas a Morris, e a
Liga Socialista, eram fruto de uma disputa emocional de vaidades.
E em que medida as associações são feitas a partir de exercícios
teóricos ou mesmo contorcionismos da razão, em nome das necessidades
de ocupar espaços no movimento operário europeu. Abensour nos diz:
"O novo espírito utópico de William Morris é compreendido
assim como uma luta travada em duas frentes ao mesmo tempo. O ponto
nodal é a posição escolhida em face dessa situação histórica particular
que pode se chamar 'o após-Marx'."19
Morris foi marxista pelo que esta teoria representava de fundamental
em proposta teórica. Resgatou também, em seu pensamento, a matriz
romântica do iluminismo, mas buscando no cientificismo oitocentista
a consistência para sua perspectiva utópica de mundo. Foi, em muitas
passagens de sua obra, a negação do marxismo em vigor no seu tempo.
Viu no anarquismo, em alguns momentos, a prática democrática necessária
e solidarizou-se com ele. Tentou resgatar nas linhas de Marx, algo
que o próprio Marx, tentou purgar: "o seu espírito utópico".
Em outras palavras: amou Marx, por seus "defeitos" e não
pelas suas qualidades materialistas (ciência). Foi criticados pelos
marxistas por ser um ingênuo e infantil socialista, ou seja, foi
diminuído pela lógica da cientificidade, justamente pelas suas qualidades.
Morris
teve que somar forças com os anarquistas, por perceber, provavelmente,
nestes o vigor utópico tomado dos marxistas por uma práxis materialista
aprisionadora das liberdades do homem.
Literatura
e engajamento
William Morris experimentou por vezes a sensação de estar órfão,
para poder manter-se coerente com suas convicções no novo espírito
utópico. As idiossincrasias entre a obra e a prática política, podem
ser explicadas pela própria natureza dialógica do pensamento morrisiano.
Misturando às suas inquietações e qualidades literárias, de rara
sensibilidade, o desejo de contribuir efetivamente com as mudanças
sociais de sua época.
Fruto
de seu tempo e não prisioneiro deste, Morris singrou com sua obra
utópica os tempestuosos debates e as perplexidades de um tempo carente
de identidade. Foi testemunha da difusa estética socialista, polimorfa
e fugaz, algumas vezes, e extremamente dogmática por outras. Encarnou
de forma emblemática a necessidade do indivíduo no projeto coletivo,
reafirmando o papel da paixão do homem na dinâmica das massas.
O
homem, em Morris, não era apenas o ator da superestrutura de Marx,
mas, sim, o elemento poderoso sequioso de vontade de mudança, premido
pelas questões sociais infra-estruturais, mas, guiado pela "vontade
de poder"e pelos sonhos gestados na observação, que este fazia,
de sua realidade concreta.
A
utopia de Morris, não era a descrição de um mecanismo que prefigurava
um fatalismo histórico ditado pelas forças produtivas ou por desígnios
supra-humanos. Ela reabilitava o ato de desejar, para além das formalidades
teóricas do materialismo, embora não venha a romper totalmente com
pressupostos marxistas básicos. Inaugurou a conjunção entre as possibilidades
de uma concepção estética do desejo e as teorias sistematizadoras
do movimento socialista.
Abensour
refere-se a este fenômeno da seguinte maneira: "Assim, observávamos,
a utopia já não tem a função de convencer ou de fazer compreender
o valor de um modelo ou de uma solução para a questão social; ela
tem como tarefa por em marcha o desejo das massas, fazer ver; melhor:
fazer desejar" 20 Acreditando na viabilidade dos projetos
humanos, com claras influências do pensamento socrático; Abensour,
acredita em um Morris guiado pela emoção, pela crença na dinâmica
positiva das massas e seus desdobramentos revolucionários. E nos
afirma que: "A utopia torna-se uma maiêutica passional"21
A
idéia de que o ergástulo da pobreza ou das injustiças só pode ser
superado por uma ação coletiva, não prescinde dos desejos individuais
que devem conspirar para tanto.
E
o entendimento, na obra de Morris, de uma libertação dos trabalhadores
por eles mesmos, adquire nesta perspectiva uma tonalidade símbolo
da passionalidade apontada por Abensour. Passionalidade esta que,
não se esgota em um frenesi despropositado ou mesmo sem objetivo.
Antes, representa a tentativa do equilíbrio ou eqüidistância entre
o mundo apolíneo e o dionisíaco, não justificada ou reafirmada pela
finalização em si; mas pela tentativa de viver este paradoxo constitutivo
da própria vida.
Utopia
como sintoma de uma época
A busca de William Morris não pode ser entendida como uma procura
solitária e melancólica de uma quimera inatingível como a alguns
pode parecer. Ele inscreve-se na mais profunda angustia reflexiva
de sua época. Uma época, que, como já vimos, permanecia a deriva
em seu perfil estético e que ao mesmo tempo beirava o messianismo
típico de um fim de século. Este panorama suscitava, em alguns de
seus contemporâneos, a preocupação em definir minimamente os paradigmas
deste, aparentemente, incognoscível perfil oitocentista.
O
termo "Modernidade", objeto de Charles Baudelaire, é um
exemplo claro deste pensamento, que representava a necessidade do
entendimento daquele momento histórico distinto. E que, ao mesmo
tempo, revelava a impossibilidade de dar conta do mesmo.
Baudelaire
nos guia, através de frases sutis, ao seu pensamento ou mesmo às
impressões que possuía de seu tempo: "A Modernidade é o
transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo
a outra metade o eterno e o imutável."22 Para o autor de
"Flores do Mal", a estética verdadeira só
poderia ser a atual ( do momento ao qual nos referimos), pois a
cópia de realidades passadas são impossíveis de reedição pelos homens
do presente, sob pena de aparecerem desprovidas de verdadeiro significado.
E, continua: "Sem dúvida é excelente estudar os antigos
mestres para aprender a pintar, mas isso pode ser tão-somente um
exercício supérfluo se o nosso objetivo é compreender o caráter
da beleza atual."23 A idéia de copiar o passado é tão desprezível
para o artista, quanto for o seu espírito rebelde no tempo em que
vive. A angústia de muitos estetas do século XIX é ter que conviver
com a contingência de um tempo cumulativo dos períodos anteriores,
figuras sobrepostas em uma superfície unitemporal ou seja sem espírito.
Desta
mesma forma podemos encarar a obra de Morris, que, como já vimos,
inscreveu-se na tradição utópica, sem no entanto, servir de uma
espécie de epigonismo estético. Morris a elaborou de forma original
e encaminhou-a na direção do pensamento libertário. A produção de
William Morris foi sintonizada com o seu tempo, unica e com claras
distinções, se comparada às de seus antecessores; Godwin, Saint-Simon
e Owen.
Desta
mesma forma encontramos, neste período, outros intelectuais preocupados
com a caracterização estética do fim do século XIX, que demonstram,
por assim dizer, zêlo em registrar minimamente as reflexões de sua
época, de forma original e autêntica.
Entre
outros artistas contemporâneos implicados no objetivo de definir
alguns princípios estéticos, encontramos Oscar Wilde; para quem:
"(...) a arte é o fim supremo, contém em si própria iluminação
e regeneração, e todo o resto lhe deverá estar subordinado."24
A obra de Wilde, inscreve-se historicamente em uma tradição bastante
próxima a de Morris, como libelo anti-burguês, e com o mesmo objetivo
de Baudelaire: denunciar as implicações sociais da civilização burguesa
e sua decadência. Devemos, entretanto, lembrar que estes pensadores
tinham em comum o ódio pelo tipo de mundo criado pela burguesia,
mas que, chegaram a mesma conclusão por estímulos distintos.
Baudelaire,
desprezava a burguesia e da mesma forma a auto- comiseração dos
pobres, e neste particular aproximava-se de Wilde, quando este afirma:
"Frequentemente ouvimos dizer que os pobres são gratos pela
caridade. Decerto alguns são gratos, mas nunca os melhores dentre
eles."25 As opiniões em relação às atitudes do pobre ou
miserável destes "dândis"26 , aproximavam-se e posteriormente
distanciavam-se valendo-se de lógicas semelhantes.
Oscar
Wilde, que admirava o pensamento político de Kropotkin, possuía
uma concepção estética bastante distinta da maioria dos anarquistas
e no que tange às propostas puramente organizativas da esquerda
a distância era ainda maior. Podemos tomar como exemplo a opinião
de Kropotkin sobre a arte que, para este, apresentava valores morais
e não era por si mesma um fim. Guiado pelo evolucionismo, filho
de seu tempo, o príncipe russo talhava com as cinzeladas da razão
oitocentista as estruturas de uma vertente do ideário acrata. A
admiração pelas idéias não determinava a adesão incondicional às
mesmas, e como já vimos no caso de William Morris e Kropotkin isto
também se verificava. As utopias, em que pese a consonância de propósitos,
apresentaram singularidades na forma mas em muitos aspectos demonstraram
complementariedade no sentido.
O
que se apreende de toda essa malha ideológica, em seus matizes distintos;
é que havia no fim do século passado uma cultura libertária, partindo
de várias concepções de mundo e/ou mesmo de formas singulares de
interpretar a realidade. O chamado decadentismo, anunciado pelos
dândis, surgia como uma profecia apocalíptica e misturava-se de
forma simbiótica ao pensamento social, tornando ainda mais complexa
a análise do período, ou mesmo, imprimindo-lhe um aspecto multifacetado
ampliando ainda mais a sua complexidade.
É
neste sentido que o novo espírito utópico morrisiano identificou-se,
por um lado, pelo seu forte caráter romântico e iluminista e, por
outro, pela procura de um caminho original. Esse espírito envolveu
muito mais que uma simples estratégia ou mesmo ideal de sociedade
futura; ele foi o avesso da crítica, um apelo visceral da linguagem,
ou seja, a necessidade de elaboração de um discurso inaugural de
sua época. Discurso montado sob forma de mosaico e como fragmento
deve ser entendido.
Um
destes fragmentos, que aliás, somava-se a outros, era o de uma crítica
a civilização e retorno a uma época de ouro. Temática na qual podemos
circunscrever o próprio Morris visto, por alguns críticos do período,
como um homem amante da Idade Média juntamente com Edward Carpenter,
Tolstoi e outros. Que afinavam-se em concepções ou idéias sobre
os males sociais.
A
trajetória de Edward Carpenter, é lapidar nesse sentido; nascido
em Brighton em 1844, formou-se em Cambridge e tornou-se "fellow"
desta instituição. Ordenou-se cura em 1869 e abandonou a carreira
eclesiástica em 1873. Figura de rara inteligência, foi morar no
campo e construiu sua casa com as próprias mãos, atitude bastante
elucidativa de suas convicções. Posteriormente desaparece do mundo
acadêmico da época.
A
defesa de uma vida simples e a convicção da relação dos males sociais
com o tipo de organização da própria sociedade, eram a tônica do
pensamento deste anglo-saxão. Carpenter criticava a sociedade moderna
e atribuía muitos dos problemas desta à industrialização: fonte
de perturbações e desequilíbrios. Na sua obra "Prisões,
Policia e Castigos"27 , ele cita, logo após seu prefácio,
um poema de Oscar Wilde entitulado "Ballada do Carcere"28
, e mesmo dentro de sua obra, o nome de William Morris surge para
reafirmar sua consonância cognitiva com o autor de "New
from Nowhere". Em uma passagem onde o tema central
é o trabalho, Carpenter assim nos assevera: "Em terceiro
lugar segue-se - como afirmou com tanta perseverança William Morris
- que o trabalho com esta orientação seria um prazer, um dos maiores
prazeres, sem dúvida da vida e este unico facto transformaria por
completo o seu caracter."29
Este
fragmento versa sobre o trabalho livremente escolhido, e é mais
uma demonstração do grau de cumplicidade de que gozavam alguns grupos;
em especial a fração libertária aqui analisada. A sociabilidade
dos grupos provavelmente contribuiu para a oxigenação das perspectivas
teóricas dos mesmos, ou até para o confronto entre o pensamento
e a ação.
Carpenter
em seus trabalhos enfocava, não raro, a necessidade do prazer estar
associado à atividade produtiva. O trabalho era tratado, por este
ex-clérigo, como uma atividade importante, mas que deveria respeitar
as inclinações pessoais dos homens, para que não se tornasse um
martírio, fardo ou estorvo a vida. São dele estas indagações: "Quantos
há que sentem um verdadeiro prazer, uma real satisfação no seu trabalho
diário? Podem, em cada communa contar-se pelos dedos. Mas onde está
a felicidade de se viver, se o seu elemento principal, aquelle que
deveria estar sempre na frente de todos, é odioso?"30
As
questões levantadas por Carpenter são elucidativas , menos pelo
seu teor ingênuo e mais pela distinção que apresenta em relação
aos discursos marxistas, que pouco tratavam das sutilezas da essência
humana na busca do prazer. Carpenter opera, em seu opúsculo, uma
distinção radical que encontra eco em outras obras de seu tempo:
Ele exige do trabalho uma vocação, até então impensável, voltada
para a transformação do esforço em vontade de produzir.O apelo por
substituir o suor da necessidade pela transpiração do êxtase é que
possibilitaria, segundo ele, ao homem, a felicidade radical sem
as agruras do dia-a-dia ou a medíocre condenação a um cotidiano
enfadonho. Assim Carpenter nos apresenta sua solução: "Não;
o único systema econômico verdadeiro, é preparar as coisas de modo
que o trabalho constitua alegria. Então, e somente então, começará
a estabelecer-se solidamente na margem firme da vida. Com tal trabalho
fica-se de ter bellos productos; esta desgraçada distinção do bello
e do util acabará e todo o produto será uma obra d'arte, a arte
alia-se á vida."31
Carpenter
propunha a subversão do conceito de trabalho, e oferecia como alternativa
uma vida integral de beleza ao definir uma nova estética para a
produção. Ele sacralizou, dentro de seu discurso profano, a produção
e conferiu o status de artista à todos os produtores.Neste momento
promoveu-se a ruptura com uma visão de mundo do trabalho, oferecendo-se
outra muito mais alegre e libertadora. O autor coerente com seus
princípios "naturalistas", pensa com a mente de um artesão
e nega assim o seu tempo de industrialização. A perspectiva desenhada
por Edward Carpenter, guardadas as proporções, é emblema de um meta-hedonismo,
assimilado e reelaborado a partir das realidades de um dado período.
Tempo este que, não aprisionou e nem condicionou de forma vertical
as formas de pensar que o constituíram.
Carpenter,
embora sujeito histórico, forjou uma corrente que insistia em combater
a noção de progresso em vigor naquele fim de século na Europa.
Para
William Morris, o ideal de mundo não estava muito afastado do disposto
acima, e para Miguel Abensour; em seus escritos sobre Morris: "Aí
está a diferença em relação a Marx: para este último, o verdadeiro
reino da liberdade só pode florescer se fundado no reino da necessidade,
que forma como que o fecho da previsão marxiana. Morris se orienta
de outra forma, explora o reino da liberdade que se desenvolveria
sobre suas próprias bases, um 'positivo concreto'."32
Essa
fissura é o grande salto do "marxista" Morris em direção
ao pensamento libertário, que representa no século XIX, aquela encruzilhada
da radicalidade teórica ou mesmo do sonhar utópico. A profusão dos
desejos de libertários como Carpenter e Morris, não permitia a camisa-de-força
enrigecedora do pensamento materialista de Marx e Engels. A sujeição
ao "rigor acadêmico" das teses dos socialistas marxistas
era por demais emasculadora das virilidades ou vitalidades utópicas.
Talvez encontremos aí as razões que levaram Morris a ingressar na
Liga Socialista e, até mesmo, sua posterior indisposição com os
anarquistas mais violentos e dogmáticos.
Utopia
como valor filosófico
O chamado novo espírito utópico, aparentemente não identificado
por sua época, incompatibilizou-se com a dinâmica do capital e também
com muitas das soluções apresentadas pela esquerda hegeliana. O
materialismo histórico e dialético pareciam conspirar em favor da
exclusão dos novos utopistas e, neste ponto, estavam em consonância
com a proposta "inexorável" de industrialização do mundo.
A evolução ditava os desígnios da história e subordinava os caminhos
desta à uma dinâmica revelada. O fatalismo, por vezes, escamoteado
em exercícios teóricos bem montados, inspirava as estratégias da
esquerda promovendo uma comoção que era vaticinada pelo cientificismo.
Nestas circunstâncias a única chance da inserção de uma proposta
utópica, era a produção de um hiato histórico. Um lapso de continuidade
na dinâmica histórica, que desse ensejo a uma forma de ver o mundo
original e ao mesmo tempo libertária. A preocupação de homens como
Edward Carpenter, Oscar Wilde e o próprio Morris somavam-se a de
alguns outros que falavam de coisas semelhantes utilizando, entretanto,
linguagens distintas. Friedrich Wilhelm Nietzsche, que viveu até
o limiar do século XX, é um representante claro deste espírito inconformista
e até iconoclasta de seu tempo.
Como
Morris, Nietzsche rompe com o linear e o rigidamente "histórico".
O filósofo alemão falava na necessidade da "transvaloração"
dos valores de sua época, e na ruptura com uma cultura de filisteus
adoradores e crentes em verdades supra-sensíveis. A vida para este,
é a marcha dos desejos do homem, da sua "vontade de potência",
e esta não incorpora as maquinações metafísicas de mundo. Nietzsche,
contrário às formas pré-concebidas de dinâmica social, rejeitava
a dialética marxista e/ou qualquer outro sistema que não fosse promovido
a partir dos projetos do próprio homem e de sua vontade.
A
construção teórica de um mecanismo explicativo do processo histórico
e até mesmo a idéia de processo eram duramente criticadas por Nietzche.
A lógica do materialismo, para o pensamento nietzschiano, era uma
excrescência e uma falácia. Posteriormente Hannah Arendet irá sugerir
que a visão marxista de mundo, poderia ser interpretada como "(...)
se a sociedade sem classes de Marx representa uma secularização
da Era Messiânica." 33 A crítica a cultura de sua época
e a tradição cristã do ocidente, incompatibilizaram Nietzsche com
quase toda a produção intelectual do seu tempo, e este procurou
abrir seus espaços com golpes precisos nos cernes do pensamento
daquele período.
Entre as vítimas da ácida crítica de Nietzsche encontramos a própria
história e os historiadores, a quem ele atribui a "qualidade"de
eunucos: "A cultura histórica também é, efetivamente, uma
espécie de encanecimento inato, e aqueles que trazem em si seus
sinais desde a infância têm de chegar à crença instintiva na velhice
da humanidade: à velhice, porém, convém agora uma ocupação senil,
ou seja, olhar para trás, fazer as contas, concluir, procurar consolo
no que foi por meio de recordações, em suma, cultura histórica."34
E
para Abensour, encarnando a perspectiva morrisiana: "Para
conduzir essa exploração, William Morris interpõe a era do repouso,
uma grande suspensão do tempo histórico, as férias da humanidade,
um entre parênteses de onde poderá emergir uma nova maneira de existir
que, de modo poético, reencontra o que anunciava Nietzsche."
35
As
semelhanças da obra de Morris com as propostas de Nietzsche, entretanto,
apresentam limitações. Pois a própria militância política do primeiro,
sutilmente impunha-lhe compromissos nunca assumidos pelo segundo.
A máxima nietzschiana: "a paixão pela verdade é o ódio pela
vida", não era o fio condutor de Morris e nem podia sê-lo...
pela própria natureza de seu envolvimento com a questão operária.
Mas
mesmo assim as semelhanças entre os dois pensadores, surgem em vários
momentos da obra "News from Nowhere" e,
o que os marxistas interpretam como fragilidade: falta de um projeto
pedagógico concreto; aos olhos da filosofia nietzschiana pode aparecer
como virtude. "O abandono da utopia-modelo acarreta um efeito
bem antipedagógico uma vez que o modelo contém necessariamente a
pedagogia e vice-versa."36 O entendimento das possíveis
conjunções entre os pensamentos de um determinado período, como
vimos, sofre das descontinuidades e do polimorfismo das influências
às quais seus respectivos proponentes estiveram expostos. Não estamos
aqui apontando um todo coerente nas obras ou atores citados, mas
percebemos que a exposição destas idéias possibilitaram, mesmo que
subjetivamente, um esgarçamento da lineariedade iluminista e introduziram,
na virada deste século, uma tradição cisionista que rompeu com a
harmonia da visão bipolar de uma luta de classes carente de espírito
humano.
A rejeição da racionalidade científica ou mesmo o retorno à simplicidade
social podem ser entendidos como uma reação ao "espírito"
dominante. E desta razão iluminista nos fala Nietzsche através da
história: "Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente
seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou
ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação
sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança,
e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mais é inteiramente impossível,
sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me ainda
mais simplesmente sobre meu tema: há um grau de insônia, de ruminação,
de sentido histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por
fim se arruina, seja ele um homem ou um povo ou uma civilização."37
O esquecimento para Nietzsche tem valor terapêutico para a sociedade,
até pela relativização dos valores e como o próprio filósofo alemão
pensava; a história deveria ser arte e não ciência.'
É
no sono e na anti-história que encontramos o "novo espírito
utópico" identificado por Abensour. E é nele também onde encontramos
a força utópica renovada e profundamente iconoclasta. Quando E.
P. Thompson, segundo Abensour, resgata a obra literária de Morris;
"(...) para entregá-la à história do socialismo."38
Com todo o seu rigor dialógico, esta obra permite, de forma distinta
às suas congêneres utópicas anteriores: "(...) comunicar
por sua vez sua (a das várias interpretações) própria visão de comunismo."39
A
leitura dos utópicos do final do século XIX, longe de serem apenas
ensaios de lirismo e poesia, é a constatação de um saber único e
sintoma da criatividade do homem a despeito das verdades científicas
ditadas pelo cartesianismo.
Ciência
como simulacro
A ciência do século XIX, serviu à constituição de escaramuças
para várias intervenções e elaborações retóricas no seio do socialismo.
A razão foi, em muitos momentos, o antídoto à "simplicidade"
das teses utópicas e até mesmo à "simploriedade" de seus
formuladores. Como já vimos, a pecha de utópico, a partir de Engels,
era desqualificação total de uma proposta com aspirações revolucionárias.
Este demérito construído por um saber específico que se queria universal,
alijou do panorama político um número significativo de entusiastas
e militantes. Quer por sujeição aos pressupostos científicos, ou
por esvaziamento de seus ideários. Os revolucionários não-marxistas
eram constantemente criticados, ou a eles se referia de forma jocosa
e irônica. Para Miguel Abensour: "Sensíveis (Morris e os
anarquistas) à tradição plebéia dos oprimidos, exprimindo-se na
longa cadeia das utopias sociais, denunciaram, como Tcherkesoff,
em Os Precursores da Internacional (1899), a hegemonia da "ciência"
como vontade de hegemonia política dos partidos sociais-democratas."
E continua : "Sob a máscara do socialismo científico eles desvelaram
a ameaça da revolução externa ao proletariado." 40
A revolução anunciada e vinda do alto, certamente era incompatível
com as idéias utópicas de Morris, e o projeto social-democrata que
disputava espaço na segunda internacional valia-se, como se viu,
do discurso da eminência científica. "Mas, à diferença dos
sociais-democratas clássicos e de outros marxistas, tão respeitosos
da 'ciência' quanto um burguês vitoriano, William Morris optou por
uma posição crítica original e extremamente fecunda."41
A crítica, a qual se refere Abensour, é dirigida à antiga leitura
utópica executada de forma monológica e, de certa forma, segundo
este autor, mais limitada que a anunciada por Morris em seus escritos.
A posição de Morris é delicada na medida em que nutrindo-se de muitas
idéias de Marx, é obrigado a divergir categoricamente da maioria
dos seguidores deste. Para as concepções etapistas de uma grande
parte dos marxistas o gradualismo era muito claro e sintoma comprovável
de progresso social; a superação da utopia como forma de manifestação
revolucionária era, nada mais, nada menos, que a confirmação de
um sentido histórico ao qual a humanidade estava atada.
Contra esta visão fatalista não se levantou apenas Morris
mas, com muito mais veemência, o fez Nietzsche ao referir-se, mais
uma vez, a história: "A história, na medida em que está
a serviço da vida, está a serviço de uma potência a-histórica e
por isso nunca, nessa subordinação, poderá e deverá tornar-se ciência
pura, como digamos, a matemática. Mas a questão: até que grau a
vida precisa em geral do serviço da história, é uma das questões
e cuidados mais altos no tocante à saúde de um homem, de um povo,
de uma civilização. Pois, no caso de uma certa desmedida de história,
a vida desmorona e degenera, e por fim, com essa degeneração, degenera
também a própria história."42
A vida para Nietzsche,como já vimos, é a vontade de potência
ou de poder, que não permite predestinações de qualquer sentido,
e em particular a uma infra-estrutura econômica. Não é tão diferente
assim o mundo pensado por Morris e a sua visão de um homem revolucionário
e realmente livre. Da mesma forma encontramos nas obras de Carpenter
e Wilde, aspirações semelhantes: na preocupação estética e na vocação
que o homem têm para o prazer.
Contra as sentenças monolíticas da ciência do século XIX,
surgiram as vozes dissonantes que soavam como heresias anacrônicas
a uma inexorável realidade. Aos socialistas científicos restava
acusar os novos utopistas de símbolos da manifestação da perfídia
pequeno-burguesa, e anunciadores de uma heterodoxia cisionista.
Diante da caustica crítica produzida pelo novo espírito utópico
ao monolitismo e ao pensamento linear, este só podia responder com
a elaboração de categorias depreciativas aos grupos desviantes.
O novo espírito utópico de Morris, gravitou em torno da proposta
de Marx e foi logo deserdado pelos filhos desta. A linha de pensamento
morrisiana, necessitou expor-se ao parricídio para encontrar sua
plena liberdade e produzir o signo da sua própria estética; aproximou-se
de vários movimentos de sua época, unindo forças com os anarquistas,
que por sua vez passavam por um processo semelhante. Morris encarnou
a perplexidade e a "vontade de poder" dos homens impenitentes
de um período marcado pela fé na razão.
O projeto utópico não configurava-se em panacéia ou cura
de uma enfermidade social, como nos mostra a tradição messiânica,
embora tangenciasse essa tradição. Ele apontava para a produção
de uma ação social, pelo desejo de mudar. Estimulou o resgate de
um homem com vocação para a felicidade.
A heterodoxia desta vertente utópica estava, como já vimos,
na natureza estética dos questionamentos que a constituíam. E foi
justamente isso que a sustentou como elemento força e revelou seu
"ato puro"; a capacidade de desejar.
Notas:
1 Woodcock, George. O
Anarquismo. Lisboa, Ed. Meridiano, 1971. p.23
2 idem. ibidem. p.220
3 Abensour, Miguel. O Novo Espírito Utópico. São Paulo, UNICAMP,
1990.
4 Woodcock, George. op. cit. p.240
5 idem. ibidem. p.460
6 idem. ibidem. p.460
7 idem. ibidem. p.461
8 idem. ibidem. p.462
9 idem. ibidem. p.273
10Abensour, Miguel. op. cit. p.119
11 idem. ibidem. p.119
12 idem. ibidem. p.120
13 Marx, Karl. Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
URSS, Edições Progresso, 1987. p.64
14 idem. ibidem. p.64
15 Abensour, Miguel. op. cit. p.20
16 idem. ibidem. p.121
17 idem. ibidem. p.128
18 idem. ibidem. p.129
19 idem. ibidem. p.129
20 idem. ibidem. p.120
21 idem. ibidem. p.120
22 Baudelaire, Charles. Sobre a Modernidade. São Paulo, Ed. Paz
e Terra, 1996. p.25
23 idem. ibidem. p.26
24 Woodcock, George. op. cit. p.467
25 Wilde, Oscar. alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre, Ed.
LPM, 1983. p.13
26 Segundo o próprio Baudelaire, o dândi é o homem de posses que
leva uma vida ociosa e elege um objetivo último a busca da felicidade.
27 Carpenter, Eduardo. Prisões, Policia e Castigos. Lisboa, Ed.
da Typographia de Francisco Luiz Gonçalves, 1910
28 idem. ibidem. p.15
29 idem. ibidem. p.112
30 idem. ibidem. p.112
31 idem. ibidem. p.112
32 Abensour, Miguel. op. cit. p.141
33 Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1988. p.103
34 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Considerações
Extemporâneas. In: Os Pensadores. São Paulo, Ed. Abril Cultural,
1978. p.66
35 Abensour, Miguel. op. cit. p.58
36 idem. ibidem. p.136
37 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.58
38 Abensour, Miguel. op. cit. p.134
39 idem. ibidem. p.135
40 idem. ibidem. p.12
41 idem. ibidem. p.126
42 Nietzsche, Friedrich Wilhelm. op. cit. p.60
Bibliografia:
ABENSOUR, Miguel. O Novo Espírito Utópico. São Paulo, Ed. UNICAMP, 1990.
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WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre, Ed.
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WOODCOCK, George. O Anarquismo.
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