Publicado
no JB de 27 de junho de 2000.
Bezerra da Silva lamenta as mortes recentes do samba, grava disco
com mais letras polêmicas e diz que classe artística
é medrosa
Perdemos
o mestre Moreira, mas ainda há professor para quem quiser graduar-se
na escola da boa malandragem: Bezerra da Silva anuncia que está
inteiro e entra em estúdio para gravar seu próximo disco.
Nascido no Pernambuco de 1937, ele chegou ao Rio com 15 anos como
clandestino num navio que transportava açúcar, instalou-se
no morro do Cantagalo e, agora, prestes a começar o 26°
registro fonográfico de sua carreira, dá novo significado
à sigla MC: "malandro comunista". A "acusação"
de que era chegado a comer criancinhas, no sentido político,
Bezerra ganhou quando era aprendiz de marinheiro. Na época,
assustou-se. Não por temer perseguições, mas
por ignorar o significado do termo. Hoje, sabendo disso e de muito
mais, diz que o rótulo não lhe cai bem. E, como bom
malandro, não entrega ninguém mas fala mal quando acha
que deve.
"Sinto
muito a morte de Moreira, mas não me sinto o último
malandro, porque ainda temos o Dicró", lembra Bezerra.
"Antes de eu nascer, já existia isso, esse estilo malandro
de viver, de compor e de cantar. Já quiseram dizer que sou
pioneiro, mas não gostei porque não sou. A realidade
é que ninguém subia o morro. E o morro é um bom
resumo do Brasil", explica Bezerra da Silva. Para ele, as coisas
não mudaram com a chegada do futuro. "Antigamente, os
cidadãos se divertiam jogando gente na arena para os leões
comerem. Hoje, pagam para ver as pessoas quebrando umas as caras das
outras", compara.
Por
conta de opiniões como essas é que o sambista foi chamado
de comunista. "Disseram isso porque eu gosto das coisas todas
direitinhas", surpreende. "Pelo que sei agora, comunistas
são os que divulgam os ideais de Lênin e Marx. Homens
que não exploram outros homens. Ótimo. O que eu acho
é que é muita petulância alguém no Brasil
dizer que é comunista."
Outra
coisa que deixa triste o carioca nascido no Nordeste é a confusão
que fazem com a expressão "malandro": "No sentido
figurado, essa palavra quer dizer 'inteligente'. Então começaram
a mudar o significado para dizer que malandro é o cara que
rouba, que não faz nada." Para completar a explicação,
vem a frase que ele mais gosta, "malandro é malandro,
mané é mané". Que apesar do que muita gente
pensa vem de um samba gravado por Neguinho da Beija-Flor e não
por Bezerra.
A
frase tem servido, ultimamente, para Bezerra falar sobre a classe
a que pertence, a de artistas. Para o bamba, a categoria está
muito mais cheia de manés do que de outro tipo qualquer. "Parece
um mar de rosas, mas não é. Na realidade, eles têm
medo de tudo. Ninguém fala mal da Globo, por exemplo, com medo
de não poder mais ir lá. E aí as televisões
fazem o que querem", acusa, lembrando o nome de Tim Maia. Para
Bezerra, Tim "era sujeito homem, não teve medo de falar
mal". "A classe artística é muito medrosa
hoje em dia", decreta.
Além
de praguejar contra um mundo que considera injusto e de insistir na
teoria de que "ninguém faz nada por você, você
é que tem que fazer", máxima que considera uma
boa lição de malandragem, Bezerra gosta de lembrar dos
compositores que o acompanham e abastecem. "Eles é que
são os verdadeiros artistas. Bons autores são poucos.
Tem gente que nem compositor é. Esses meninos aí de
hoje em dia deviam ter vergonha de ficar cantando 'meu amor isso,
meu amor aquilo'. Isso é uma besteira".
Os
compositores com quem Bezerra gosta de trabalhar são os de
comunidades pobres. Mas para chegar até eles, segundo o intérprete,
não é preciso ser pobre também ou ter sido criado
numa favela. "O falecido Tom Jobim era amigo do meu compadre
Doca e subia o morro também. Foi assim que o conheci e depois
acabei encontrando com ele várias vezes", lembra.
Barbeirinho
do Jacaré é um desses artistas que Bezerra gosta de
divulgar. É dele a música Veto por cima de veto, uma
das que vão estar no CD que Bezerra lança em setembro.
"Governantes não se entendem/ o negócio está
preto/ urubu não vem à terra/ para pegar seu rango/
porque está com medo/ de virar galeto", canta Bezerra,
soltando uma risada. O outra que vai gravar e que tem certeza de que
vai gerar polêmica é Legítima defesa: "Até
vou falar com um advogado, para ver antes como eu faço porque
sei que vão falar pra caramba. A música começa
falando 'matei porque fui obrigado a matar'."
O
repertório já está todo escolhido. E também
já está tomada a decisão : "Não gosto
de participação especial no meu disco. Se me chamarem
para participar de outros, eu vou; mas no meu não gosto."
Ele adianta a lista de músicas e aumenta o cheiro de polêmica:
Tem coca aí na geladeira, Sua Santidade, por exemplo. Mas há
outras com menos chance de render dor de cabeça, como Campo
minado. Uma outra lição de malandragem: "É
um recado para a rapaziada que gosta de mexer com a mulher dos outros."
Era
dezembro quando José Bezerra da Silva chegou ao Rio. Mas o
único presente que ele ganhou foi uma calçada para dormir.
Só mudou de cama quando arrumou emprego como pintor na construção
civil. Alcides Fernandes, mais conhecido como Doca, o descobriu tocando
tamborim e surdo nas rodas de samba do morro do Cantagalo, para onde
Bezerra conseguiu se mudar depois de receber seu primeiro dindim.
Doca virou amigo, compadre e parceiro de Bezerra e acabou o levando
para participar de um programa de rádio.
"Os
maestros da Rádio Clube gostaram", lembra o sambista.
"Naquela época eu só gravava durante o carnaval.
No resto do ano, era pintor de paredes. Isso durou dez anos."
O primeiro disco veio em 1969, um compacto duplo com Mama cadê
meu boi e Viola testemunha. A bolachinha foi parar nas mãos
de um dos organizadores de um festival de partido alto que estava
programado para acontecer em São Paulo. Músicas de autores
de todo o país eram selecionadas e, então, os diretores
do festival escolhiam os artistas que as interpretariam no palco.
"Mas eles não acharam ninguém que cantasse daquele
jeito que eu tinha gravado, então tiveram que me chamar para
cantar", comemora ainda hoje Bezerra da Silva.
O
primeiro LP veio em 1975, Bezerra da Silva rei do coco, dois anos
antes de ele conseguir emprego como músico na Rede Globo e
de emplacar seu primeiro sucesso nacional, já um samba e de
outro long play: A necessidade. Mas a consagração só
veio em 1978, com o clássico Pega eu, de Jorge F. Silva, o
Crioulo Doido. "Vendi mais de 400 mil discos", lembra.
A
também clássica Malandragem dá um tempo, música
que ele diz ser a responsável por ter-lhe dado o título
de malandro, veio já em meados dos anos 80. Hoje, Bezerra da
Silva divide seu tempo entre as aulas de trompete e os bate-papos
com os amigos compositores, provando que malandro é malandro.
Mesmo.
http://www.samba-choro.com.br/s-c/tribuna/samba-choro.0006/0229.html
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