E Se o "Bandido" Fosse os EUA?
Ao
aplicar o conceito de "estados bandidos" aos adversários,
Washington reivindicava o direito de tomar medidas unilaterais.
Noam Chomsky
O
conceito de "Estado-bandido"(1) ou Estado fora-da-lei
teve, nos últimos tempos, um papel primordial na análise
e na estratégia política norte-americana. O exemplo
mais conhecido(2) é a crise iraquiana, que dura exatamente
há 10 anos (a invasão do Kuait pelo Iraque data de
1° de agosto de 1990). Na época, Washington e Londres
decretaram ser o Iraque um "Estado-bandido", que constituía
uma ameaça aos seus vizinhos e aos demais países;
uma "nação fora-da-lei", dirigida por uma
reencarnação de Hitler, e que devia ser mantida em
xeque pelos guardiães da ordem internacional: os Estados
Unidos e seu fiel escudeiro britânico.
A
característica mais interessante deste debate sobre os "Estados-bandidos"
é precisamente nunca ter ele acontecido. As discussões
ficam circunscritas a limites que impedem a formulação
de uma resposta evidente: que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha
devem agir de acordo com suas leis e com os tratados internacionais
que assinaram.
Enquadramento
legal
O
enquadramento legal pertinente ao caso ê baseado na Carta
das Nações Unidas, fundamento do direito internacional,
e, para os Estados Unidos, na Constituição norte-americana.
A Carta estipula que "uma vez constatada a existência
de uma ameaça contra a paz, de uma ruptura da paz ou de um
ato de agressão, o Conselho de Segurança pode decidir
as medidas a serem tomadas que não impliquem o uso da força
armada. Caso tais medidas se revelem inadequadas, o Conselho poderá
empreender qualquer ação que julgue necessária
à manutenção ou ao restabelecimento da paz
e da segurança internacionais". A única exceção
admitida está no Artigo 51: "Nenhuma disposição
da presente Carta causa prejuízo ao direito natural de legítima
defesa, individual ou coletiva, caso um país membro das Nações
Unidas seja objeto de uma agressão armada, até que
o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias
para, manter a paz e a segurança internacionais."
Agindo
por conta própria
Existem,
portanto, vias legítimas de recurso para fazer frente às
diversas ameaças que pesam contra a paz mundial, e nenhum
Estado tem autoridade para agir por sua própria conta, através
de medidas unilaterais. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha
não são exceções à regra, mesmo
que tivessem as mãos limpas, o que está longe de ser
o caso. Os "Estados-bandidos" não aceitam tais
condições: como o Iraque de Saddam Hussein, por exemplo,
ou os Estados Unidos. Dessa forma, por ocasião do primeiro
confronto com o Iraque, a atual secretária de Estado Madeleine
Albright, que na época era embaixadora dos Estados Unidos
junto à Organização das Nações
Unidas (ONU), declarou sem constrangimento ao Conselho de Segurança:
"Agiremos de forma multilateral, quando pudermos, e unilateralmente,
quando julgarmos necessário", pois "consideramos
a área do Oriente Médio de vital importância
para os interesses nacionais dos Estados Unidos."
ONU
avalizou acordo de paz
Essa
posição foi reiterada pela secretária de Estado
em fevereiro de 1998, quando o secretário-geral da ONU, Kofi
Annan, se encontrava numa missão diplomática em Bagdá:
"Nós lhe desejamos boa sorte, e quando ele voltar veremos
se o que ele traz é compatível com nossos interesses
nacionais." Quando Annan anunciou que fora alcançado
um acordo com Sadam Hussein, o presidente Bill Clinton declarou,
por sua vez, que se o Iraque não se conformasse - sendo Washington
o único juiz da questão -, "todo o mundo compreenderia
que os Estados Unidos e, assim espero, todos os nossos aliados,
teríamos o direito unilateral de responder no momento, no
lugar e da maneira da nossa escolha".
O
Conselho de Segurança da ONU endossou por unanimidade o acordo
assinado por Annan, rejeitando a exigência de Londres e Washington
de serem autorizados a utilizar a força, caso o acordo não
fosse cumprido. Nessa hipótese, a resolução
do Conselho indicava que o Iraque se exporia "às mais
graves conseqüências", sem maior precisão.
O Conselho decidiu ainda permanecer no controle da situação.
Nos termos da Carta das Nações Unidas, tratava-se
exclusiva e tão-somente do Conselho de Segurança(3).
Senhores
da guerra
Washington
fez uma leitura completamente diferente desse texto, que no entanto
nada tem de ambíguo. Segundo 0 embaixador William Richardson,
o acordo alcançado "não impedia o uso unilateral
da força" e os Estados Unidos conservavam o direito
legal de atacar Bagdá quando bem entendessem. Clinton, por
sua vez, declarou que a resolução do Conselho de Segurança
lhe "conferia autoridade para agir" - por meios militares,
precisou seu assessor de imprensa - em caso de desrespeito por parte
do Iraque dos compromissos assumidos. No Congresso, certos eleitos
consideraram que esta posição oficial ainda era por
demais respeitosa do direito nacional e internacional. O republicano
Trent Lott, por exemplo, líder da maioria no Senado, denunciou
o governo de Clinton por ter "subcontratado" sua política
externa "a outros" - quer dizer, ao Conselho de Segurança.
Seu colega John Kerry, outrora "pomba da paz", acrescentou
que a invasão do Iraque pelos Estados Unidos seria "legítima",
caso Saddam Hussein "se obstinasse em violar as resoluções
da ONU".
Desprezo
pelo direito internacional
O
desprezo pela primazia do direito está profundamente enraizado
na cultura intelectual e nas práticas norte-americanas. Basta
recordar, entre outros exemplos, a reação de Washington
à sua condenação pela Corte Internacional de
Justiça de Haia, em 1986. Os Estados Unidos foram então
condenados por "uso ilegal da força" contra a Nicarágua
sandinista, intimados a pôr fim às suas atividades
clandestinas a serviço dos "Contra" anti-sandinistas,
e ainda a pagar indenizações ao governo legal de Manágua(4).
Essa decisão da mais alta instância judiciária
internacional provocou um furacão de protestos nos Estados
Unidos. A Corte foi acusada de ter se "desacreditado",
e seu parecer, julgado indigno de ser publicado, não foi
absolutamente levado em conta. Muito pelo contrário: a maioria
democrata no Congresso imediatamente autorizou a liberação
de novos fundos para os terroristas do "Contra". Numa
declaração de abril de 1986, o secretário de
Estado George Schultz havia formulado de maneira clara a doutrina
norteamericana sobre a questão: "A palavra negociação
é um eufemismo para capitulação, se a sobra
do poder não se projeta sobre o campo de diálogo",
explicou, condenando os que defendiam "meios utópicos,
legalistas, tais como a mediação por terceiros, a
ONU e a Corte de Haia, sem considerar na equação o
elemento poder."
A
"agressão interna"
O
desprezo escancarado pelo artigo 51 da Carta das Nações
Unidas é particularmente revelador. Tivemos um exemplo muito
claro depois dos acordos de 1954 que puseram fim à primeira
guerra da Indochina, conduzida pela França. Foram considerados
um "desastre" por Washington, que logo se dedicou a sabotá-los:
o Conselho Nacional de Segurança decidiu secretamente que
"em caso de rebelião ou de subversão comunistas
locais que não constituíssem ataque armado",
os Estados Unidos considerariam o uso da força, inclusive
contra a China, identificada como "a fonte da subversão".
O mesmo documento preconizava a remilitarização do
Japão e a transformação da Tailândia
no "ponto focal das operações clandestinas e
de guerra psicológica no Sudeste asiático"(5),
especialmente na Indochina, ou seja, Vietnã(6). Posteriormente,
o governo norte-americano iria dar a sua definição
do conceito de agressão, incluindo o "combate político
ou a subversão" - entenda-se: por parte de outros países,
que não eles próprios. E o artificio utilizado pelo
senador democrata Adlai Stevenson, que invocou uma "agressão
interna" para justificar a escalada militar do presidente John
Kennedy que iria levar a um ataque de grande envergadura no Sul
da península e, conseqüentemente, à longa guerra
do Vietnã. Para justificar diante do Conselho de Segurança
a invasão do Panamá por tropas norte-americanas em
dezembro de 1989, o embaixador Thomas Pickering invocou o artigo
51 da ONU: tratava-se, segundo ele, de impedir que o território
desse país "fosse utilizado como base para. o tráfico
de drogas destinadas aos Estados Unidos". Entre a "opinião
esclarecida" ninguém contradisse essa interpretação.
O
direito à "legítima defesa"
Em
junho de 1993, o presidente Clinton alcançou grande sucesso
no Congresso e na imprensa quando ordenou um ataque de mísseis
contra o Iraque, ataque que deixou grande número de vítimas
civis. Os comentadores ficaram particularmente impressionados com
o recurso de Albright ao famoso artigo 51: os bombardeios constituíam
"um ato de legítima defesa contra um ataque armado",
disse ela, referindo-se a uma pretensa tentativa de assassinato
contra o presidente George Bush, ocorrida dois meses antes! Responsáveis
pela administração, expressando-se em anonimato, informaram
os jornalistas que "esse julgamento sobre a culpabilidade do
Iraque baseava-se em provas e análises circunstanciais, e
não em informações concretas" - o que
não impediu que a imprensa saudasse com unanimidade a utilização
do famoso artigo 51. Na Câmara dos Comuns, na Grã-Bretanha,
o secretário de Relações Exteriores, Douglas
Hurd, também defendeu esse "exercício justificado
e comedido do direito à legítima defesa". Um
tal balanço parece dar razão a todos os que, mundo
afora, se preocupam com a existência de "Estados-bandidos",
prontos a usar a força em nome de um "interesse nacional"
definido somente pelos jogos de poder internos; e com a existência
ainda mais inquietante de "Estados-bandidos" que se erigem
em árbitros e carrascos em escala planetária.
Um
"Gulag norte-americano"
O
que viria, então, a ser um "Estado-bandido"? A
idéia subjacente a essa formulação é
que, embora terminada a guerra fria (1947-1989), os Estados Unidos
conservam a responsabilidade de proteger o mundo. Mas proteger de
quem? A "conspiração monolítica e impiedosa"
de J. R Kennedy e o "império do mal" tão
caro a Ronald Reagan já se acabaram. E preciso encontrar
novos inimigos(7). Dentro do país, o medo da criminalidade
- e em particular da droga - foi estimulado por "uma, série
de fatores que pouco ou quase nada têm a ver com o crime propriamente
dito". Essa é a conclusão da Comissão
Nacional de Justiça Criminal, que cita o comportamento dos
meios de comunicação, além do "modo como
o Estado e a indústria privada produzem medo nos cidadãos",
"explorando, com fins políticos, as tensões raciais
latentes." E ressalta o preconceito racial existente na polícia
e na justiça, que arrasa comunidades negras e cria um "abismo
racial", colocando o país sob "O risco de uma catástrofe
social". Criminologistas descrevem o resultado como um "Gulag
norte-americano", um "novo apartheid", com a população
carcerária atingindo, pela primeira vez na história
dos Estados Unidos, cerca de dois milhões de detentos, em
sua maioria (!) sendo afro-americanos. O índice de presidiários
negros é sete vezes maior que o de brancos, sem qualquer
relação com o índice de detenções,
que por sua vez não tem relação alguma com
os números reais de uso ou de tráfico de drogas(8).
Teoria
do louco
No
exterior, os perigos seriam o "terrorismo internacional",
os "narcotraficantes hispânicos" e, o mais grave
de todos, os "Estados-bandidos". Um estudo secreto, datado
de 1995, e tornado público recentemente graças à
lei sobre liberdade de informação, delineava em linhas
gerais a abordagem estratégica na aurora do novo milênio.
Feito pelo Strategic Command, responsável pelo arsenal nuclear
estratégico, e intitulado Essentials of Post Cold War Deterrence
(Princípios básicos de dissuasão no pós-guerra
fria), o estudo mostra, segundo a agência Associated Press,
"como os Estados Unidos modificaram sua estratégia de
dissuasão, substituindo a União Soviética pelos
Estados ditos ‘bandidos’ ou ‘fora-da-lei’:
Iraque, Irã, Líbia, Síria, Cuba e Coréia
do Norte".
Recomenda
ainda que os Estados Unidos explorem seu potencial nuclear para
projetar de si uma imagem "irracional" e "vingativa"
no caso de ameaça aos seus interesses nacionais. "É
prejudicial nos mostrarmos como pessoas razoáveis, racionais
e de sangue-frio" e, pior ainda, como respeitadores de bobagens
tais como o direito e os tratados internacionais. "Que alguns
elementos" do governo federal "possam parecer potencialmente
loucos, incontroláveis, pode contribuir para criar ou reforçar
medos e apreensões nas mentes dos nossos adversários."
Esse relatório ressuscitava a "teoria do louco"
de Richard Nixon: os inimigos dos Estados Unidos devem compreender
que estão diante de desequilibrados, de comportamento imprevisível,
e que dispõem de uma enorme capacidade de destruição.
O medo os conduziria, dessa forma, a se dobrarem às vontades
norte-americanas. Esse conceito havia sido desenvolvido em Israel
nos anos 50 pelo governo trabalhista, cujos dirigentes "pregavam
atos de loucura", como escreveu em seu diário pessoal
o ex-primeiro ministro Moshe Sharett. O conceito dirigia-se então,
até certo ponto, contra os Estados Unidos, que na época
não eram considerados suficientemente confiáveis.
Retomada pela única superpotência atual, que se considera
acima da lei e sofre poucos constrangimentos por parte de suas próprias
elites, temos de admitir que essa teoria coloca um sério
problema ao resto do mundo.
Criando
novos inimigos
Desde
o começo do governo Reagan, em 1980, a Líbia foi designada
como 0 "Estado-bandido" por excelência. Vulnerável
e sem meios de se defender, esse país é de fato um
saco de pancadas per feito. Em 1986, por exemplo, o bombardeio de
Trípoli terá sido o primeiro da história programado
para transmissão por televisão, ao vivo e em tempo
real, para que os escreventes dos discursos do "Grande Comunicador"
Reagan pudessem mobilizar a opinião da multidão em
favor dos ataques terroristas de Washington contra a Nicarágua.
O pretexto? O "superterrorista" Khadafi tinha "enviado
400 milhões de dólares e todo um arsenal para Manágua,
com o objetivo de levar a guerra para dentro dos Estados Unidos",
que exerciam seu direito de legítima defesa contra a agressão
armada desse "Estado-bandido" que era a Nicarágua
sandinista. Imediatamente após a queda do muro de Berlim,
em 1989, que pôs fim à ameaça soviética,
o governo de George Bush submeteu ao Congresso seu pedido anual
de um gigantesco orçamento para o Pentágono: "Nessa
nova era que se anuncia (...) o emprego de nossas forças
provavelmente não envolverá mais a União Soviética,
e sim, talvez, o Terceiro Mundo, onde será certamente necessária
uma nova conduta e novos procedimentos." Acrescentou que os
Estados Unidos deveriam manter forças consideráveis
de intervenção, especialmente destinadas ao Oriente
Médio, onde "as ameaças contra os nossos interesses",
que exigem intervenções militares diretas, "não
podem ser debitadas ao Kremlin". Ao contrário, diga-se
de passagem, de uma ladainha sem fim de inverdades difundidas durante
40 anos pela propaganda norte-americana, hoje em dia mortas e enterradas.
Onda
de ira contra os EUA
Na
época, as ameaças contra os interesses norte-americanos
também não podiam mais ser debitadas ao Iraque, uma
vez que Saddam Hussein - que fazia então a guerra contra,
o Irã do aiatolá Khomeini - era um amigo cortejado
e parceiro comercial de Washington. Seu estatuto, porém,
mudaria completamente poucos meses depois quando, em julho de 1990,
interpretou mal o consentimento norte-americano para mudar à
força suas fronteiras com o Kuait, entendendo-o como uma
autorização para invadir todo o país(9). Ou,
na perspectiva do governo Bush, para repetir o que os Estados Unidos
acabavam de fazer no Panamá, em dezembro de 1989. Os paralelos
históricos no entanto, nunca são exatos. Quando Washington
se retirou parcialmente do Panamá, após ter instalado
ali um governo-fantoche, uma onda de ira rebentou em todo o hemisfério,
inclusive no Panamá. Uma onda de ira que chegou mesmo a fazer
a volta ao mundo, obrigando Washington a apor seu veto a duas resoluções
do Conselho de Segurança da ONU e a se pronunciar contra
uma resolução da Assembléia Geral que condenava
"a violação flagrante do direito internacional
e da independência, da soberania e da integridade territorial
dos Estados" exigindo a retirada "do corpo expedicionário
norteamericano" do Panamá.
Uma
terapia de choque
O
que alimenta a reflexão de analistas políticos, como
por exemplo Ronald Steel, que se questionava sobre o "enigma"
com que se deparavam os Estados Unidos: "Como nação
mais poderosa do mundo, vêem a sua liberdade de empregar a
força submetida a mais constrangimentos do que qualquer outro
país." Daí o êxito (temporário)
de Saddam Hussein no Kuait, em agosto de 1990, em comparação
com a incapacidade de Washington de impor sua vontade no Panamá.
Antes do Iraque, Irã e Líbia lideravam a lista dos
"Estados-bandidos". Outros, no entanto, jamais figuraram
nela. A Indonésia é um bom exemplo: transformou-se
de inimigo em amigo quando o general Suharto tomou o poder em 1965,
,após um banho de sangue muito aplaudido no Ocidente(10).
Suharto iria rapidamente tornar-se "o nosso tipo de cara"
(our kind of guy) por retomar uma fórmula do governo Clinton,
enquanto cometia agressões mortais e atrocidades sem conta
contra seu próprio povo. Somente nos anos 80, contam-se 10
mil indonésios mortos pelas forças da ordem, segundo
o testemunho pessoal do ditador, que explica também que "deixamos
os cadáveres espalhados, como uma espécie de terapia
de choque."(11)
"Bandidos"
bonzinhos
Mas
ainda em dezembro de 1975 o Conselho de Segurança da ONU
havia intimado a Indonésia a retirar "com urgência"
suas tropas, que haviam invadido o Timor Leste, antiga colônia
portuguesa, e pedido que "todos os Estados respeitassem a integridade
do Timor-Leste, bem como o direito inalienável de seus habitantes
à autodeterminação". Os Estados Unidos
iriam responder a essa decisão das Nações Unidas
aumentando secretamente as remessas de armas aos agressores. O então
embaixador da ONU, Daniel Patrick Moynihan, se diz orgulhoso, em
suas memórias, por ter tornado as Nações Unidas
"totalmente ineficazes, em quaisquer que fossem as medidas
que tomassem" no que se referia à Indonésia.
E isso, seguindo as instruções do Departamento de
Estado, "que desejava que as coisas evoluíssem como
evoluíram e trabalhou para tal". Washington também
aceitaria tranqüilamente o roubo do petróleo do Timor
(com a participação de uma companhia norte-americana),
apesar da transgressão da legalidade que isso representava
e em detrimento de qualquer interpretação razoável
dos acordos internacionais. A analogia entre as situações
do Timor-Leste e do Kuait é bastante próxima, mas
há algumas diferenças. Para falar apenas da mais evidente:
as atrocidades cometidas - com a bênção norte-americana
- pelo regime indonésio na ilha do Timor, ultrapassam em
muito qualquer coisa atribuída ao Iraque no seu vizinho(12).
Isso, porém, não fez da Indonésia, na lista
de premiados estabelecida por Washington, um "Estado-bandido".
"Bandidos"
desobedientes
Não
foram os crimes cometidos por Saddam Hussein contra seu próprio
povo, nem sobretudo a utilização - perfeitamente conhecida
pelos serviços secretos norte-americanos - de armas químicas
contra civis, que metamorfosearam o ditador em "monstro de
Bagdá". Antes da invasão do Kuait, os Estados
Unidos haviam lhe dado um apoio tão certo que até
deixaram passar o ataque da força aérea iraquiana
contra o navio de guerra USS Stark (que fez 37 vítimas entre
os marinheiros norte-americanos), um privilégio restrito
até então a Israel (no caso de seu ataque "por
engano" ao USS Liberty, em junho de 1967, que deixou 34 mortos).
Eles haviam coordenado com Saddam Hussein a campanha diplomática,
militar e econômica que levou, em 1989, à capitulação
do Irã "diante de Bagdá e Washington", como
escreveu o historiador Dilip Hiro.
Tinham
até encomendado a Saddam Hussein os serviços habituais
de Estado vassalo: por exemplo, treinar centenas de mercenários
líbios recrutados por norteamericanos para derrubar o coronel
Khadafi, como revelou Howard Teicher, um ex-assessor de Reagan(l3).
Se Saddam Hussein caiu para o lado dos "Estados-bandidos",
foi porque saiu da linha e se mostrou desobediente, do mesmo modo
que o criminoso de menor envergadura Manuel Noriega, do Panamá,
cujos principais crimes foram cometidos enquanto estava a serviço
- remunerado - de Washington. Cuba foi classificada na categoria
por sua presumida implicação no "terrorismo internacional",
mas não os Estados Unidos, que, no entanto, durante quase
40 anos, fizeram múltiplos ataques terroristas à ilha
caribenha e diversas tentativas de assassinar Fidel Castro. O Sudão
foi também classificado como "Estado-bandido",
embora não os Estados Unidos, que em agosto de 1998 bombardearam
ali uma suposta fábrica de armas químicas, que depois
foi provado tratar se de uma indústria farmacêutica,
como afirmavam as autoridades de Cartum...(l4) Vê-se que o
conceito de "Estado-bandido", hoje em dia oficialmente
abandonado, foi particularmente flexível.
Enfim,
os critérios eram perfeitamente claros: um "Estado-bandido"
não era simplesmente um Estado criminoso, mas um Estado que
não se dobrasse as ordens dos poderosos, eles mesmos, evidentemente,
poupados desta classificação difamatória.
(1)A
expressão "Estado-bandido" (rougue state, em inglês)perdeu
sua razão de ser – declarou o porta-voz do Departamento
de Estado, Richard Boucher, - porque muitos desses países
corrigiram suas condutas. Foi substituída por "Estado
fonte de Preocupação" (state of concern, em inglês.
Esta modificação de terminologia, no entanto, não
afeta as sanções contra os referidos Estados. Cf.
Le Monde, 21 junho de 2000.
(2)Ler,
de Alain Gresh, "Muette agonie em Irak", Le Monde
Diplomatique, julho de 1999.
(3)Ler,
de Eric Rouleau, "Scenário contrarié dans le
Golfe", Le Monde Diplomatique, março de 1998.
(4)Sobre
a atitude dos Estados Unidos frente aos sandinistas que estavam
então no poder em Manágua, ler, de Ignacio Ramonet,
"La longue guerre occulte contre le Nicaragua", Le
Monde Diplomatique, fevereiro de 1987.
(5)National
Security Council 5429/2, Washington.
(6)Note-se
que Robert Macnamara, secretário da Defesa de 1961 a 1968,
avaliou recentemente que os próprios Estados Unidos, por
sua tendência a agir unilateralmente e "sem respeito
para com as preocupações dos outros" tinham se
tornado um "Estado-bandido". Cf. Flora Lewis, "Some
Learn Power´s Hard Lessons Better Than Others", The
International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.
(7)Ler,
de Philip Bowring, "Rogue States are Overrated", The
International Herald Tribune, 26 de junho de 2000.
(8)Ler
The Real War on Crime: the Report of the National Criminal Justice
Commission (dirigido por Steve Donziger), ed. Harper Collins,
Nova Iorque, 1996.
(9)Ler,
de Pierre Salinger e Eric Laurent, Guerre du Golfe, le dossier
secret, Paris, ed. Oliver Orban, 1990.
(10)Ler
"Timor-Oriental, l´horreur et l´amnésie",
Le Monde Diplomatique, outubro de 1999.
(11)Citado
por Charles Grass, Prospect, Londres, 1998.
(12)Ler,
de Roland Pierre Paringaux, "Lourdes séquelles au Timor-Oriental",
Le Monde Diplomatique, maio de 2000.
(13)The
New York Times, 26 de maio de 1993.
(14)Ler,
de Alain Gresh, "Guerres Saintes", Le Monde Diplomatique,
setembro de 1998.
Revista Letralivre #32