Entrevista de Noam Chomsky a Folha de Sao
Paulo, 22/09/01
EUA
terão de optar entre força e lei
Entrevista
de Noam Chomsky a Folha de Sao Paulo, 22/09/01
Os
Estados Unidos vão ter de optar entre o domínio da
lei ou o domínio da força na reação
aos atentados em Washington e Nova York na semana passada. A opinião
é do linguista norte-americano Avram Noam Chomsky, 72. "Se
optarem pela lei, aceitarão sua obrigação de
aderir aos princípios da lei internacional que são
solenemente elogiados (quando conveniente) e permitirão que
a ONU desempenhe um papel diplomático importante", afirma
o escritor norte-americano."Deve-se, no entanto, ter em mente
que os Estados Unidos se opõem oficialmente ao domínio
da lei." Sobre a imagem negativa que vários países
têm sobre a política externa dos EUA, Chomsky afirmou:
"O governo norte-americano tem de decidir se quer que suas
políticas sejam vistas tal qual são, e não
como apresentadas para fins de propaganda." Leia a seguir trechos
da entrevista dada à Folha por telefone.
Folha
- Em sua opinião, por que os Estados Unidos foram vítima
de atentados na Costa Leste?
Noam
Chomsky - Existe um ressentimento tremendo quanto às políticas
norte-americanas, em todo o Oriente Médio, algo que todos
os observadores bem informados confirmam. Isso se aplica até
mesmo aos setores privilegiados que apóiam e dependem do
poderio norte-americano. Uma equipe de correspondentes do "The
Wall Street Journal" levantou os sentimentos dos "muçulmanos
endinheirados" -banqueiros, advogados, médicos, empresários
fortemente ligados aos Estados Unidos. Eles condenaram o apoio crucial
de Washington à ocupação militar israelense,
agora em seu 35º ano, e a devastação da sociedade
civil iraquiana, com o reforço de Saddam Hussein e sua claque,
uma opinião compartilhada por todos. Eles também condenaram
o consistente apoio de Washington a regimes linha-dura e repressivos,
por "temer tanto a mudança", e sua oposição
generalizada à democracia na região. Eles deploraram,
igualmente, as barreiras que os Estados Unidos erguem contra o desenvolvimento
independente, mais uma vez resultado do "apoio a regimes repressivos"
por parte de Washington. O sentimento entre a vasta maioria de pobres
e oprimidos é ainda mais forte. Nenhum observador estrangeiro
conhece melhor a região do que o veterano correspondente
britânico Robert Fisk, que afirma que os responsáveis
pelos atentados suicidas "conhecem mal o Alcorão, mas
sentem fúria, desespero e indignação moral
suficiente para inspirá-los", e sabem muito bem aquilo
que é óbvio a todos que prestem a menor atenção
aos fatos: as políticas adotadas pelos EUA contribuíram
de forma maciça para esse sentimento de fúria e desespero.
Folha
- Muitos países do Oriente Médio alegam que a política
norte-americana é parcial -em favor de Israel. O que o sr.
pensa disso?
Chomsky
- A conclusão é com certeza precisa, nem sequer controversa.
Na frente diplomática, há 25 anos os Estados Unidos
vêm bloqueando um consenso internacional quase unânime
quanto a um acordo político para encerrar o conflito entre
Israel e os palestinos. Os termos desse consenso foram expressos
com clareza em uma resolução do Conselho de Segurança
da ONU de janeiro de 1976, vetada pelos Estados Unidos. Ela pedia
um acordo em torno das fronteiras internacionalmente reconhecidas
(anteriores a 1967), de acordo com a resolução 242
da ONU (novembro de 1967), incorporando o texto da resolução
242 e modificando-o apenas para definir que um Estado palestino
deveria ser estabelecido em uma área correspondente a 22%
da Palestina sob mandato, a ser liberada depois que as tropas de
ocupação israelenses recuassem às fronteiras
do país. A resolução tinha o apoio dos países
árabes, da Organização para a Libertação
da Palestina (OLP), da Europa, da Rússia, na verdade de virtualmente
todo o mundo. Nos anos que se seguiram, os Estados Unidos continuaram
a bloquear os esforços para um acordo diplomático
realizado por ONU, Europa, países árabes, OLP e outros.
Por fim, depois da guerra do Golfo Pérsico, conseguiram impor
seu programa unilateral. A meta do "processo de paz" desde
Oslo vem sendo o estabelecimento de uma "dependência
neocolonial permanente" na Cisjordânia e em Gaza, de
acordo com a precisa descrição feita por Shlomo Ben-Ami,
um dos mais importantes defensores da paz no espectro político
israelense, ex-ministro do exterior no governo de Ehud Barak e um
dos principais negociadores israelenses na conferência de
Camp David em julho de 2000. A proposta, descrita pelos Estados
Unidos como "magnânima" e "generosa",
envolve dividir a Cisjordânia em três cantões
-"bantustões", como a própria imprensa israelense
os chama-, separados uns dos outros, e de uma Jerusalém expandida,
que foi sempre o centro da vida comercial e cultural palestina,
colônias israelenses e imensos projetos de infra-estrutura.
E evidentemente separados da Faixa de Gaza. Enquanto isso, os EUA
fornecem vasta assistência econômica e militar que permite
que Israel expanda suas colônias nos territórios ocupados
e imponha um regime duro e brutal que impediu o desenvolvimento
e sujeita a população a humilhação e
repressão diárias, um processo que se intensificou
ao longo dos anos 90. Para mencionar apenas um incidente, a intifada
de Al Aqsa começou em 30 de setembro de 2000, quando forças
israelenses mataram pessoas que estavam saindo da mesquita de Al
Aqsa e de outros lugares. Nos dias que seguiram, Israel usou helicópteros
para atacar alvos civis, matando muitas pessoas. Todo o conflito
aconteceu nos territórios ocupados; os palestinos não
responderam ao fogo. Em 3 de outubro, o presidente Clinton reagiu
com a maior transação militar da década, enviando
helicópteros militares avançados a Israel (algo que
o país não pode produzir), e o Pentágono anunciou
que não haveria restrições ao uso deles pelos
israelenses. Israel logo estaria usando-os para assassinatos políticos.
Os Estados Unidos fizeram reprimendas amenas e continuaram entregando
às forças israelenses os helicópteros mais
avançados de que dispunham em seu arsenal. Em maio, Israel
empregou os seus F-16 mais avançados para atacar os palestinos,
pela primeira vez. Pouco depois, os Estados Unidos concordaram em
fornecer mais F-16 avançados a Israel. Trata-se de apenas
um exemplo. O histórico revela claramente um dedicado esforço
dos Estados Unidos, iniciado há cerca de 30 anos, para apoiar
a expansão e a repressão israelenses e solapar os
direitos nacionais palestinos.
Folha
- A ONU deveria desempenhar um papel diplomático mais ativo?
Qual a posição dos EUA?
Chomsky
-Isso depende da opção do governo norte-americano
pelo domínio da lei ou pelo domínio da força.
Se optarem pela lei, aceitarão sua obrigação
de aderir aos princípios da lei internacional que são
solenemente elogiados (quando conveniente) e permitirão que
a ONU desempenhe um papel diplomático importante. Deve-se,
no entanto, ter em mente que os Estados Unidos se opõem oficialmente
ao domínio da lei. Como explicou o célebre estadista
Dean Acheson ao anunciar à Sociedade Norte-Americana de Lei
Internacional o bloqueio a Cuba, a "verdadeira natureza"
de uma contestação ao "poder, posição
e prestígio dos Estados Unidos (...) não é
uma questão legal". Acheson acrescentou, em outra ocasião,
que deveríamos recorrer à lei internacional para apoiar
nossa posição, quando for conveniente para o país.
Quando o Tribunal Mundial condenou os Estados Unidos por seu "uso
ilegal da força" contra a Nicarágua e determinou
que o país suspendesse os ataques e pagasse reparações
substanciais, os Estados Unidos desconsideraram a decisão
de maneira desdenhosa, reforçaram seus ataques à Nicarágua
e votaram sozinhos contra uma resolução do Conselho
de Segurança pedindo que todos os países observassem
as leis internacionais. O assessor jurídico do Departamento
de Estado explicou, oficialmente, que, já que outros países
não concordam conosco, devemos decidir por conta própria
o que está sob a "jurisdição doméstica"
dos Estados Unidos -nesse caso, o "uso ilegal de força"
contra a Nicarágua. O presidente Bill Clinton informou às
Nações Unidas que os Estados Unidos agirão
"multilateralmente quando possível, mas unilateralmente
quando necessário", e assim por diante. Devo acrescentar
que Washington merece crédito por anunciar oficialmente aquilo
que os países aceitam como dado, desde que tenham o poder
para agir como querem. Pode-se optar por ter ilusões, se
assim for o caso. Infelizmente, essa é a forma pela qual
os sistemas de poder se comportam no mundo real, a menos que sejam
constrangidos, seja interna, seja externamente.
Folha
- Os EUA precisam tentar mudar a imagem negativa que vários
países têm de sua política?
Chomsky
- O governo norte-americano tem de decidir se quer que suas políticas
sejam vistas tal qual são, e não como apresentadas
para fins de propaganda. Se não desejam que as políticas
sejam vistas pelo que são, deveriam, evidentemente, mudá-las.
Para além disso, a questão precisa ser respondida
caso a caso, em relação a políticas específicas.
No Oriente Médio, por exemplo, se os Estados Unidos não
desejam que as suas políticas sejam vistas pelo que são,
precisam alterá-las de maneira óbvia, da forma indicada
até mesmo pelos seus mais ricos e privilegiados partidários
na região, como indicado no "The Wall Street Journal".
Os EUA deveriam aderir ao consenso internacional que vem se formando
e que até agora foi bloqueado por Washington em relação
a um acordo diplomático sobre o conflito entre Israel e Palestina,
pôr fim ao seu apoio a regimes repressivos, remover as barreiras
ao desenvolvimento econômico independente, abandonar os ataques
à população civil do Iraque, aceitar os princípios
básicos das leis internacionais e assim por diante. O mesmo,
incidentalmente, pode ser dito sobre outras potências, grandes
e pequenas, mas o poder dos EUA é tão extraordinário
que o problema é mais severo nesse caso.