Entrevista com Noam Chomsky ao PÚBLICO

 

Se os Estados Unidos retaliarem, diz o intelectual Noam Chomsky, cairão na "armadilha diabólica" de Osama bin Laden.

Só na quarta-feira à tarde, o gravador de chamadas no gabinete de Noam Chomsky, no Massachusetts Institute of Technology (Boston, Estados Unidos), registou mais de 600 chamadas. A maior parte era de jornalistas e analistas de todo o planeta, solicitando declarações ao linguista e teórico social e político. "Para o resto do mundo, [o ataque contra os EUA] não parece uma grande atrocidade", disse Chomsky ao PÚBLICO, em entrevista telefónica.

Conhecido pela leitura radical - e, por isso, muitas vezes polémica - que faz das políticas (social, económica, externa) dos Estados Unidos, Noam Chomsky considera os ataques de 11 de Setembro um momento inédito na história da humanidade. Porque, pela primeira vez, as armas que durante séculos estiveram apontadas na mesma direcção, viraram-se. Os oprimidos voltaram-se contra os opressores. "É a verdade e Portugal devia sabê-lo bem. Afinal, foram um dos iniciadores [da violência]."

PÚBLICO - O Presidente dos EUA, George W. Bush, disse que este foi um ataque contra o mundo civilizado. Não foi antes um ataque contra a superpotência?

NOAM CHOMSKY - Foi um ataque contra um país que aplica políticas que provocam ressentimentos e sentimentos de amargura em toda a região [do Médio Oriente]. O "Wall Street Journal" publicou um excelente artigo sobre a opinião dos muçulmanos ricos (empresários, banqueiros) e pró-americanos do Golfo Pérsico. Estão zangados com as políticas que os EUA estão a aplicar: apoio a regimes autocratas e autoritários, que impedem o desenvolvimento das iniciativas independentes. Uma das principais razões deste descontentamento é a brutal ocupação israelita [na Palestina], que está a entrar no 35º ano. Uma ocupação que depende de forma crucial do apoio dos EUA: as armas usadas para matar pessoas, o dinheiro para pagar aos colonos que ocupam territórios. Os EUA também estão a atacar a sociedade civil iraquiana, destruindo-a. O Iraque era o país árabe mais avançado da região e, agora, é um dos mais pobres do mundo. Isto é o que pensam as pessoas ricas e privilegiadas, que são pró-americanas. Se formos às ruas do Cairo, ouvimos os mesmos protestos, mas mais enraivecidos. O ataque não teve a ver com o facto de os EUA serem um centro da civilização, teve a ver com a forma brutal e perversa como agem. Devíamos opor-nos a quem deixa a palavra civilização sair-lhe assim da boca.

P. - Os valores da civilização desaparecem quando é preciso mais um oleoduto no Médio Oriente ou na Ásia Central.

R. - Os EUA agarraram nas concepções estratégicas dos britânicos, que controlaram a região até à II Guerra Mundial. Os britânicos eram muito francos: queriam formar uma fachada árabe, Estados árabes que faziam o que lhes mandavam. Os EUA mantêm no poder regimes autoritários que servem os seus interesses. Se for do interesse dos EUA aceitar a ocupação militar [israelita na Palestina], fazem-no. Se for útil destruir a sociedade civil iraquiana, não tocando no "gangster" que dirige o país, fazem-no. Portugal andou a defender que valores, desde o tempo de Vasco da Gama até [às guerras em] Angola e Moçambique? Não devemos usar a palavra civilização. É uma vergonha. Toda a história da Europa - e a dos EUA - é de conquista e destruição do mundo, em nome do seu próprio interesse.

P. - Considera que os EUA criaram uma imagem demonizada do mundo árabe? Nos filmes de Hollywood, por exemplo, os terroristas são sempre árabes.

R. - Sim, tem havido uma enorme propaganda. Mas os EUA são muito ecuménicos em relação a quem demonizam. Nos anos 80, quando estavam a fazer a guerra na América Central, onde mataram milhares de pessoas, [a propaganda] foi contra a Igreja Católica, que estava a tomar o partido dos pobres.

P. - Qual é o impacte dessa imagem na opinião pública?

R. - As pessoas estão muito confusas. Mesmo as mais educadas não sabem a diferença entre árabes e muçulmanos. Eu conheço pessoas que trabalharam e viveram no Irão, e pensam que é um país árabe. O público não sabe a diferença entre um árabe e um muçulmano, não sabe que há Estados aliados e extremistas. E se percebessem as diferenças, ficariam espantados.

P. - O senhor é judeu. Concorda que o Holocausto foi usado para criar um maniqueísmo, uma teoria de que existe no Médio Oriente um povo bom e um povo mau?

R. - O Holocausto foi explorado de forma chocante. De forma insultuosa para a memória das vítimas. Um dos principais dirigentes do movimento sionista disse que Israel estava a usar o Holocausto para justificar a invasão do Líbano. Disse, na época, que era um sacrilégio invocar o Holocausto para atacar outros. Há quem ganhe a vida com isso e acaba de sair um livro a explicar que o Holocausto está a ser usado para justificar a opressão. Chama-se "A Indústria do Holocausto".

P. - Para realizarem a missão, os terroristas, que são extremistas políticos e religiosos, misturaram-se com os americanos, viveram como eles, comeram hambúrgueres. Não há um paradoxo nas vidas destes homens?

R. - Havia algum paradoxo nas vidas das pessoas que andavam a organizar as guerras em Angola e em Moçambique? O que surpreende aqui é algo difícil de entender para os europeus. Andámos 200 anos - no caso de Portugal mais séculos - a sustentar a ideia de que podemos fazer todas as atrocidades aos outros povos. Mas que eles não podem fazer o mesmo contra nós. Angola não invadiu Portugal. A Índia não invadiu a Inglaterra. O Congo não invadiu a Bélgica.

P. - Acreditamos que somos intocáveis?

R. - O que é novo neste acontecimento é não haver nada parecido, do ponto de vista histórico. Pela primeira vez em séculos, as armas foram apontadas na direcção contrária. Quando foi a última vez que o território dos EUA foi ameaçado? 1840. Pearl Harbor é uma colónia. A história dos EUA não é bonita. Limparam a população nativa, alguns milhões de pessoas. Entraram brutalmente no México e cometeram atrocidades horríveis na América Central/Caraíbas. Foram até às Filipinas matar meio milhão. Mas isto é o que fazemos aos outros, eles não estão autorizados a responder. E isto é verdade para a Europa, onde esta lógica está mais enraizada porque é a sua história. Conseguem pensar num caso em que as pessoas das colónias tenham atacado as potências europeias? O que mais se aproxima são os ataques terroristas argelinos em Paris, nos anos 50. Ou as bombas do IRA em Londres. Mas é marginal, porque por centenas de anos as armas estiveram apontadas para o lado de lá.

Para o resto do mundo, [o ataque nos EUA] não parece uma grande atrocidade. Posso garantir isso porque tenho estado a dar entrevistas para todo o mundo, e dizem-me: "É horrível, mas já estamos habituados, graças a vocês." É a verdade e Portugal deveria sabê-lo tão bem como qualquer país, porque afinal foram um dos iniciadores e fizeram-no até ao tempo presente, até aos anos 70.

P. - Está a dizer que é lógico que agora seja a nossa vez?

R. - Espero que não. Um crime é um crime, e isto foi um crime terrível. Mas se formos honestos, devemos dizer o mesmo que o resto do mundo.

P. - Disse que a retaliação serve os interesses de Osama bin Laden. Por quê?

R. - Disse-o e, dias depois, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros defendeu o mesmo. Explicou que se os EUA retaliarem com violência cairão na armadilha diabólica que Bin Laden lhes preparou. Consideremos a forma como as pessoas reagiram, aqui, a esta atrocidade terrorista. Como irão as pessoas de lá reagir, se matarmos milhares e milhares de muçulmanos? Alguém se surpreende? Se o quisermos retaliar, faça-se. Mas temos de entender que além de estarmos a cometer um crime, estamos a mobilizar gente para Bin Laden - exactamente o que ele quer - e crimes maiores serão cometidos contra nós. É assim que acontece a escalada do ciclo de violência. A dinâmica é familiar.

 

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