Noam Chomsky, Atualidade do
Pensamento Libertário
"O
Estado ... se está convertendo dia a dia em um Estado totalitário"
Noam
Chomsky, cientista de prestígio, também é conhecido
por suas idéias libertárias e por sua permanente denúncia
dos truculentos mecanismos de poder nos EE.UU. De destacada atuação
contra a guerra no Vietnã, assumiu uma notável performance
no repúdio aos planos da equipe de Reagan, sobretudo no desencadeamento
da enlouquecida corrida armamentista. Atualmente aprofunda-se no estudo
do que denomina globalização das políticas neoliberais.
Comunidad*.
Professor Chomsky, vamos começar tratando de definir o que
não é anarquismo; a palavra anarquia se deriva, antes
de tudo, do grego, e significa literalmente ausência de governo.
Mas anarquia ou anarquismo enquanto sistema de filosofia política
não significa que, por exemplo, a partir de 1o. de janeiro
do próximo ano, o governo tal como agora o entendemos, deixará
súbitamente de existir, de modo que não haveria polícia,
código de trânsito, leis, arrecadação de
impostos, correio, etc. Anarquismo é mais complicado?
Chomsky.
Bom, sim para algumas dessas perguntas, não para outras. Anarquismo
pode perfeitamente significar que não haverá polícias,
mas não creio que signifique que não haverá código
de trânsito. De fato, devo dizer, para começar, que o
termo anarquismo é usado para referir-se a uma ampla gama de
idéias políticas, mas eu preferiria concebê-lo
como a esquerda libertária, e deste ponto de vista o anarquismo
pode ser concebido como uma espécie de socialismo voluntário,
ou seja: como socialismo libertário, anarco-sindicalismo ou
anarco comunismo, na tradição de, digamos, Bakunin e
Kropotkin e outros autores. Seu ideal era uma forma de sociedade extraordinariamente
organizada, mas uma sociedade organizada sobre a base de unidades
orgânicas, de comunidades orgânicas. Ao propor isso pensavam,
em geral, no local de trabalho e no bairro, e destas duas unidades
básicas caberia derivar por meio de acordos de natureza federal,
um tipo de organização social extraordinariamente integrada,
que poderia ser de alcance nacional e inclusive internacional. Estas
decisões poderíam ter uma amplitude substancial, mas
teriam que ser tomadas por delegados que formam parte da comunidade
orgânica a que pertencem, à qual voltam e na qual, de
fato, vivem.
Comunidad.
De modo que não significa necessariamente uma sociedade na
qual, literalmente, não haja governo, mas uma sociedade em
que a orígem primária da autoridade surge, por exemplo,
de baixo para cima, e não de cima para baixo. A democracia
representativa*, como a que temos nos Estados Unidos e na Grã
Bretanha, seria considerada como uma forma de autoridade de cima para
baixo, mesmo sendo, em última instância, os votantes
que decidem.
Chomsky.
A democracia representativa, como a dos Estados Unidos e Grã
Bretanha, seria criticada por um anarquista desta escola por duas
razões: Em primeiro lugar, porque há um monopólio
de poder centralizado no Estado, e em segundo lugar, isto é
de importância crítica, porque a democracia representativa
está limitada à esfera política e não
se estende de maneira séria na esfera econômica. Os anarquistas
desta tradição tem sustentado sempre que o controle
democrático da vida produtiva por parte de cada um constitui
o próprio centro de toda libertação humana. Tal
controle é o que existe de mais significativo na prática
democrática. Ou seja, enquanto indivíduos forem compelidos
a vender-se a si mesmos no mercado em que se situam os assalariados,
enquanto seu papel na produção for simplesmente o de
instrumentos auxiliares, existirão notáveis elementos
de coerção e opressão que tornam a democracia
muito limitada e, inclusive, insignificante.
Comunidad.
Em têrmos históricos, há algum exemplo notável
ou em escala substancial de sociedades que se aproximaram do ideal
anarquista?
Chomsky.
Há sociedades pequenas em número, que, a meu ver, o
tem feito muito bem, e há uns poucos exemplos de revoluções
libertárias em grande escala que foram em grande medida anarquistas
em sua estrutura. Quanto às primeiras, sociedades pequenas
que se estendem sobre um longo período de tempo, em minha opinião,
o exemplo mais dramático talvez sejam os kibbutz israelenses,
que durante um longo período de tempo foram realmente construídos
sobre a base de princípios anarquistas, ou seja, autogestão,
controle direto por parte dos trabalhadores, integração
na agricultura, indústrias e serviços, e participação
pessoal na autogestão. Tiveram, a meu modo de ver, um êxito
extraordinário, qualquer que seja a medida que se lhes aplique.
Comunidad.
Mas é de se supor que estavam, e continuam estando, enquadrados
sob a égide de um Estado convencional que garantisse certas
estabilidades básicas.
Chomsky.
Bom, nem sempre o estiveram. Na realidade sua história é
muito interessante. Até 1948, desde o princípio do século,
estiveram enquadrados no marco de um enclave colonial. De fato, havia
uma sociedade subterrânea, em grande medida cooperativa, que
não era realmente parte do sistema de mandado britânico,
mas que funcionava fora dele. Até certo ponto essa sociedade
sobreviveu apesar do estabelecimento do Estado, se bem que depois
acabou por ser integrada a ele. Consequentemente, a meu modo de ver,
tem perdido boa parte de seu caráter socialista libertário
nesse processo, e em outros processos que são típicos
da história dessa região, que não é preciso
mencionar.
Contudo,
enquanto instituições sociais libertárias em
funcionamento, creio que constituem um interessante modelo, que é
extraordinariamente relevante para as sociedades industriais avançadas,
de um modo ímpar, que não se dá em alguns dos
outros exemplos que existiram no passado. Um bom exemplo de uma revolução
anarquista realmente em grande escala, de fato o melhor exemplo, é
o da revolução espanhola de 1936. Na maior parte da
Espanha republicana houve uma revolução anarquista muito
inspiradora, que se estendeu tanto à indústria como
a áreas substanciais da agricultura, desenvolvidas de um modo
que do lado de fora dá a impressão de que ocorreram
expontâneamente. Se bem que, na realidade, se se examinar, suas
raízes, se descobre que esteve baseada em umas três gerações
de experimentos, pensamento e atividades que levaram as idéias
anarquistas a partes muito extensas da população em
uma sociedade em grande medida pré-industrial, se bem que não
totalmente pré-industrial.
Novamente,
teve muito êxito, tanto em suas medidas humanas, como nas medidas
econômicas de qualquer tipo. Ou seja, a produção
continuou com toda eficiência; os trabalhadores dos campos e
das fábricas demonstraram que eram perfeitamente capazes de
gerir seus próprios assuntos sem coerções de
superioridade contrariamente ao que estavam dispostos a crer grupos
de socialistas, comunistas, liberais e muitos outros e, de fato, não
é possível dizer o que pudesse ocorrer. Aquela revolução
anarquista foi simplesmente destruída pela força, mas
durante o período em que contou com vida teve, a meu juízo,
muto êxito e, como disse, foi de muitas formas, um testemunho
muito inspirador da capacidade dos trabalhadores pobres para organizar-se
e gerir seus próprios assuntos, com muito êxito, sem
coerção nem controle alheio. É verdade que cabe
perguntar até que ponto é relevante a experiência
espanhola para uma sociedade industrial avançada.
Comunidad.
É claro que a idéia fundamental do anarquismo é
a primacia do indivíduo - não necessáriamente
em condições de isolamento, mas com outros indivíduos
- e a satisfação de sua liberdade. Isto, em certo sentido,
não se parece muito aos ideais fundacionais dos Estados Unidos
da América? Por que, hoje, essa experiência norte americana
se converteu em uma coisa suspeita e até perigosa, principalmente
quando a expressão "liberdade" é usada pelos
pensadores anarquistas e socialistas libertários como você?
Chomsky.
Permita-me dizer apenas que na realidade eu não me considero
um pensador anarquista. Sou um "companheiro de viagem" derivativo,
digamos. Os pensadores anarquistas referem-se constantemente à
experiência norteamericana e ao ideal de democracia jeffersoniano
muito favoravelmente. Como se sabe, o conceito de Thomas Jefferson
(1743-1826, presidente dos EE.UU. de 1801 a 1809) é o de que
o melhor governo é o que não governa em absoluto, é
um conceito que tem sido repetido vez após vez pelos pensadores
anarquistas nos tempos modernos.
Sem
dúvida, o ideal da democracia jeffersoniana, fora o fato de
que se tratava de uma sociedade que se servia da escravidão,
se desenvolveu em um sistema essencialmente pré-capitalista,
ou seja, em uma sociedade em que não havia controle monopólico
algum, que não havia nenhum centro significativo de poder privado.
Na
leitura, por exemplo, da crítica do Estado de Wilhelm van Humboldt
(1767-1835) em 1792, texto libertário clássico significativo
no qual sem dúvida se inspirou John Stuart Mill (1806-1873),
se vê que não fala em absoluto da necessidade de resistir
à concentração do poder privado, mas apenas à
necessidade de resistir à invasão do poder coercitivo
do Estado. É nele que se encontra também a tradição
norte-americana mais temporã. Mas isso porque esse era o único
tipo de poder que havia então. O que quero dizer é que
Humboldt supõe que os indivíduos são mais ou
menos equivalentes em seu poder privado, e que o único desequilíbrio
de poder real se deve ao Estado autoritário centralizado, e
que a liberdade individual tem que ser defendida contra essa intrusão
- do Estado ou da Igreja. Isso é o que crê que deve ser
resistido.
Enquanto
fala, por exemplo, da necessidade que cada um tem de controlar sua
vida criativa, quando lamenta a alienação no trabalho
que produz a coerção ou comenta sobre a instrução
ou a direção no labor que alguém leva a cabo,
dá expressão a uma ideologia anti-estatal e antiteocrática.
Esses mesmos princípios são perfeitamente aplicáveis
à sociedade industrial capitalista que emergiu depois. Eu me
inclino a pensar que Humboldt, pela sua consistência, acabaria
se tornando um socialista libertário.
Comunidad.
Esses precedentes não sugerem que haja algo inerentemente pre-industrial
no que se refere a aplicabilidade dos ideais libertários, ou
seja, que pressupõem necessáriamente uma sociedade mais
ruralizada onde a tecnologia e a produção são
relativamente simples e na qual a organização econômica
tende a ser de pequena escala e local?
Chomsky.
Bom, permita-me separar isso em duas perguntas: Uma, o que pensadores
anarquistas acreditam, e dois, o que creio eu. No que se refere a
reações anarquistas, há duas linhas de pensamento.
Há uma tradição anarquista - na qual, digamos,
Kropotkin poderia ser tomado como representante - que em boa medida
tem o caráter que você descreve. Por outro lado, há
outra tradição anarquista, que acaba por encarnar no
anarco-sindicalismo, que simplesmente considera os ideais anarquistas
como o modo próprio de organização de uma sociedade
industrial avançada altamente complexa. Essa tendência
do anarquismo se funde, ou pelo menos se interrelaciona muito estreitamente,
com uma variedade de marxismo de esquerda, o tipo que se encontra
na tradição luxemburguista, e que mais tarde é
representada por teóricos marxistas como Anton Pannekoek (1873-1960),
que elaborou toda uma teoria dos conselhos obreiros na indústria.
Ele mesmo foi um homem de ciência , um astrônomo, parte
integrante do mundo industrial.
Qual
destas duas concepções é a correta? Quer dizer,
os conceitos anarquistas pertencem à fase pré-industrial
da sociedade humana ou é o anarquismo o modo racional de organização
para uma sociedade industrial extraordinariamente avançada?
Bom, eu creio que a última é verdadeira, ou seja, a
meu ver a industrialização e os avanços da tecnologia
oferecem possibilidades de autogestão em grande escala que
simplesmente não existiam em um período anterior e ,
de fato, isto é precisamente o modo racional, para uma sociedade
industrial complexa e avançada, uma sociedade na qual os trabalhadores
podem muito bem converter-se em senhores de seus assuntos imediatos,
a saber, da direção e controle do local de trabalho,
mas também podem estar em posição de tomar as
decisões substantivas primordiais no que diz respeito às
instituições sociais, e no que se refere à planificação
regional e supraregional.
Na
atualidade, as instituições não lhes permitem
ter controle da informação requerida, e a formação
pertinente para entender estas coisas. Muito poderia estar automatizado.
Grande parte do trabalho necessário requerido para manter um
nível decente de vida social pode ser relegado às máquinas,
pelo menos como princípio, o que significa que os humanos podem
ter a liberdade de empreender o tipo de labor criativo que poderia
não ter sido possível, objetivamente, nos estados mais
contemporâneos da revolução industrial.
Comunidad.
Voltando à questão sobre a economia em uma sociedade
anarquista, poderia esboçar mais detalhadamente a constituição
política de uma sociedade anarquista, tal como você a
concebe, em condições modernas? Haveria partidos políticos,
por exemplo? Que formas residuais de governos sobreviverão
de fato?
Chomsky.
Esboçarei o que, a meu juízo, representaria um certo
consenso, consenso que a meu ver é essencialmente correto.
Começando por modos de organização e controle
imediatos, a saber, a organização e o controle do lugar
de trabalho e da comunidade, cabe imaginar uma rede de conselhos de
trabalhadores, e a um nível mais alto, representação
que inclua várias fábricas, ou vários ramos de
indústrias, ou de ofícios vários, até
chegar a assembléias gerais de conselhos de trabalhadores,
que podem ser de caráter regional e nacional e internacional.
Deste outro ponto de vista cabe projetar um sistema de autogoverno
baseado em assembléias locais, também neste caso federados
regionalmente para tratar questões regionais, abarcando ofícios,
indústrias, etc., portanto a nível de nação
ou a um nível supranacional, através de uma federação,
etc.
Pois
bem, De que modo exato se desenvolveriam estas organizações
e como se relacionariam entre si e a questão de serem ou não
necessários os dois tipos, bom, estas são coisas que
os teóricos anarquistas tem debatido muito, existem muitas
propostas, e não me sinto capaz de tomar posição.
São questões que terão de ser resolvidas.
Comunidad.
Mas, não haveria, por exemplo, eleições nacionais
e partidos políticos organizados de costa a costa, por exemplo?
Porque se houvesse é de se supor que criariam uma espécie
de autoridade central que seria contrária à idéia
de anarquismo.
Chomsky.
Não, a idéia do anarquismo é que a delegação
de autoridade tem que ser a menor possível e que os participantes
em alguns dos níveis de autogoverno deveriam ser diretamente
responsáveis ante a comunidade orgânica na qual vivem.
De fato, o ideal seria que a participação em um desses
níveis de autogoverno fosse temporal, e mesmo durante o período
em que ocorressem deveriam ser apenas parcial; ou seja, os membros
de um conselho obreiro que por algum tempo estejam encarregados de
tomar as decisões que outros não tem tempo de fazer,
deverão também continuar executando seu trabalho em
seu local de trabalho ou na comunidade do bairro ao qual pertencem.
No
que se refere a partidos políticos: me inclino a pensar que
uma sociedade anarquista não impediria a formação
de partidos. De fato o anarquismo sempre se baseou na idéia
de que todo sistema de normas impostas sobre a vida social consumirá
e subestimará muitíssimo sua energia e vitalidade, e
de que se pode desenvolver outro tipo de novas possibilidades de organizações
voluntárias a esse nível mais alto da cultura material
e intelectual. Mas creio que é justo dizer que na medida em
que se sentisse que os partidos políticos são necessários,
a organização anarquista da sociedade haverá
falhado. Ou seja, deverá dar-se o caso, a meu ver, que onde
haja participação direta na autogestão dos assuntos
econômicos e sociais, as facções, os conflitos,
as diferenças de interesse e de idéias e opiniões
(que deveriam ser bem vindas e cultivadas) serão expressas
em cada um de seus níveis. Não vejo como teriam que
se dividir em dois, três ou mais partidos políticos.
A meu ver, a complexidade do interesse humano e da vida humana não
se divide dessa maneira. Os partidos representam basicamente interesses
de classe, e as classes haverias sido eliminadas ou superadas em uma
sociedade desse tipo.
Comunidad.
Uma última pergunta sobre a organização política:
Não há um perigo neste tipo de escalonamento de assembléias
e estruturas quase-governamentais, sem eleições, de
que um corpo central, ou o corpo que está em algum sentido
no cume desta pirâmide, acabe por manter-se muito separado da
base, e como terá que ter alguns poderes se se tratar de assuntos
internacionais, por exemplo, e possa inclusive ter que possuir controle
sobre as forças armadas e coisas desse tipo, não haveria
o risco de responder menos democráticamente ao regime existente?
Chomsky.
Uma característica muito importante para toda a sociedade libertária
é impedir uma evolução nessa direção,
que é uma evolução possível. As instituições
teriam que ser desenhadas para impedir esse tipo de evolução,
o que julgo ser perfeitamente possível. Eu estou convencido
de que a participação no governo é uma tarefa
de dedicação plena. Isto pode ser assim em uma sociedade
irracional, onde surge todo tipo de problemas em função
da natureza irracional das instituições. Mas em uma
sociedade industrial avançada que funcione propriamente organizada,
seguindo diretrizes libertárias, creio que a execução
das decisões tomadas pelos corpos representativos não
é uma tarefa de plena dedicação, mas uma tarefa
em que devem se alternar os membros da comunidade e que, ademais,
deve ser levada a cabo por indivíduos que em todo momento continuem
participando em sua própria atividade direta (em sua ocupação
ordinária).
É
possível que o governo seja em si mesmo uma função
paralela ao sistema produtivo. Se isto resulta ser assim, a meu ver,
é uma questão empírica que tem que ser determinada,
que não pode ser projetada a partir de elocubrações
mentais-, mas se resulta ser assim, a meu modo de ver a proposta mais
natural é que o governo seja organizado industrialmente, simplesmente
como um dos ramos da indústria, com seus conselhos de trabalhadores,
seu próprio autogoverno e sua própria participação
em assembléias mais amplas.
Devo
dizer que nos conselhos de trabalhadores que tem surgido expontaneamente
aqui e ali como, por exemplo, na revolução húngara
em 1956, isso foi mais ou menos o que sucedeu. Havia, pelo que me
recordo, um conselho obreiro de empregados do Estado que estavam organizados
simplesmente como outro ramo da indústria. Isso é perfeitamente
possível, e deveria ou poderia constituir uma barreira contra
a criação do tipo de burocracia coercitiva remota que
os anarquistas tanto temem.
Comunidad.
Suponhamos que haveria a necessidade de autodefesa, a um nível
sumamente sofisticado, não vejo pela sua descrição
como conseguir que esse sistema de conselhos representativos a vários
níveis, de baixo para cima, não dedicados exclusivamente
a isso, tivesse controle efetivo de uma organização
tão poderosa e tão necessariamente sofisticada em sua
técnica como, por exemplo, o Pentágono.
Chomsky.
Bom, comecemos por aclarar a terminologia. Você se refere ao
Pentágono, como se funcionasse como uma organização
de defesa. Em 1947, quando foi promugada a lei de Defesa Nacional,
no antigo Departamento da Guerra, o departamento norteamericano encarregado
da guerra, que até então foi denominado honestamente:
Departamento da Guerra, adota o nome de Departamento de Defesa. Até
então eu era estudante e não me considerava muito sofisticado,
mas sabia, como sabia todo mundo, que a mudança significava
que qualquer que fosse a medida que os militares norteamericanos efetuaram
na defesa no passado - e em parte havia sido assim - terminara; a
denominação Departamento de Defesa significava que passava
a ser um departamento de agressão e nada mais.
Comunidad.
Seguindo o princípio de não crer nunca naquilo que é
negado oficialmente.
Chomsky.
Exato. Orwell captou a essência da natureza do Estado moderno.
O Pentágono não é em nenhum sentido um departamento
de defesa. Jamais defendeu os Estados Unidos de nada; serve apenas
para levar a cabo agressões e, a meu ver, o povo norte-americano
estaria muito melhor sem o Pentágono. Certamente não
o necessita para a defesa. Sua intervenção nos assuntos
internacionais não tem sido nunca positiva, nunca é
uma palavra forte, mas creio que seria difícil encontrar um
caso, certamente sua postura mais característica não
tem sido a de prestar apoio à liberdade ou defender o povo
e outras coisas deste tipo. Esse não é o papel da massiva
organização militar controlado pelo Departamento de
Defesa, mas que suas tarefas são duas, e as duas são
completamente anti-sociais.
A
primeira é preservar um sistema internacional em que possa
florescer o que se pode denominar interesses norte-americanos, que
essencialmente quer dizer interesses econômicos. E a segunda
é uma tarefa econômica interna. Quero dizer que o Pentágono
tem sido o mecanismo keynesiano primário através do
qual o governo intervém para manter aquilo que se denomina,
ridiculamente, a saúde da economia, numa base de economia de
escassez.
Ora,
essas funções servem ambas a certos interesses de fato,
interesses dominantes, interesses da classe dominante da sociedade
norte-americana. Mas não creio que sirvam ao interesse público
em nenhum sentido e, a meu ver, esse sistema de produção
de desperdício e destruição seria essencialmente
desmantelado em uma sociedade libertária. Mas não se
deve falar disto demasiado e superficialmente. Se é possível
imaginar, digamos, uma revolução social nos Estados
Unidos, muito difícil de ocorrer, a meu modo de ver, mas se
chega a ter lugar, é difícil imaginar que pudesse existir
um inimigo exterior plausível capaz de ameaçar a revolução
social, não seríamos atacados por México ou por
Cuba, digamos. Uma revolução norte-americana não
requereria, a meu modo de ver, defesa contra a agressão. Por
outro lado, se tivesse lugar uma revolução social libertária
na Europa Ocidental, por exemplo, creio que o problema de defesa seria
muito crítico.
Comunidad.
A noção de que não deve haver autodefesa alguma
não se ajusta à proposta anarquista, uma vez que os
experimentos anarquistas que tiveram lugar na história demonstram
que foram destruídos de fora para dentro.
Chomsky.
Ah! mas creio que não é possível dar uma resposta
geral a estas questões, mas que tem que ser contestadas especificamente,
em relação com as condições objetivas
e históricas específicas.
É
que justamente para mim é um pouco difícil seguir sua
descrição de controle democrático apropriado
para este tipo de organização, já que para mim
é difícil conceber generais controlando a si mesmos
de uma maneira que pareça aceitável.
Por
isso quero manifestar a complexidade da questão. Depende do
país e da sociedade à qual nos referimos. Nos Estados
Unidos se coloca um tipo de problema. Se tivesse lugar uma revolução
social libertária na Europa, creio que o problema que você
coloca seja muito sério, já que haveria um sério
problema de defesa. Quer dizer, eu assumiria que se se conseguisse
um certo nível de socialismo libertário na Europa Ocidental,
haveria uma ameaça militar tanto por parte da União
Soviética como dos Estados Unidos e o problema seria como combatê-la.
Este foi o problema com que a revolução espanhola teve
que se confrontar. Ouve intervenção militar direta por
parte dos fascistas, por parte dos comunistas e por parte das democracias
liberais, mais discretamente, como foi o caso da Inglaterra, e o problema
de como é possível defender-se de um rival neste nível
é um problema muito sério.
Sem
dúvida, creio que temos que levar em consideração
se exércitos regulares centralizados com armamentos tecnologicamente
avançados constituem o modo mais efetivo de fazer isso, o que
está longe de ser óbvio. Por exemplo, eu não
creio que um exército centralizado da Europa Ocidental possa
repelir por si mesmo um ataque russo ou norte-americano que tenha
por objeto impedir o socialismo libertário, eu, francamente,
esperaria um tipo de ataque a outro nível, talvez não
militar, mas pelo menos econômico.
Comunidad.
Mas, por outro lado tampouco uma multidão de camponeses armados
de enxadas e foices...
Chomsky.
Não estamos falando de camponeses, estamos falando de uma sociedade
industrial urbana, muito sofisticada. E a meu modo de ver o melhor
método de defesa seria a simpatia política que lograsse
inspirar na classe trabalhadora dos países que participassem
do ataque. Uma vez mais, não quero falar demasiado e superficialmente.
Se as coisas chegarem a ponto de serem necessários tanques
e exércitos, ou seja, a força bruta, creio que podemos
estar bem seguros de que isso contribuiria para o possível
fracasso ou ao menos para o declínio da força revolucionária,
precisamente pelas razões que mencionamos anteriormente. Ou
seja, creio que é extremamente difícil imaginar como
poderia funcionar um exército centralizado efetivo sem tanques,
aviões, armas estratégicas, etc. Se é isso que
falta para estabelecer e manter estruturas revolucionárias,
creio que é muito possível que elas nunca serão
estabelecidas nem mantidas.
Comunidad.
Se a defesa básica é a simpatia política, ou
a simpatia pela organização política e econômica,
talvez pudéssemos considerar isso mais detalhadamente.
Em
um de seus ensaios está escrito: "Em uma sociedade decente,
todo mundo teria a oportunidade de encontrar trabalho interessante,
e cada pessoa contaria com a oportunidade mais plena possível
para seu talento." Diante disso vem a pergunta: "E se alguém,
para se satisfazer plenamente, exigisse algo mais, como recompensas
externas em forma de riqueza e poder? E se alguém retrucasse
que apenas aplicar seu talento ou dispor de um trabalho interessante
e socialmente útil não é recompensa suficiente".
Creio que este tipo de arrazoamento, certamente, é uma das
coisas que atrai muita gente. Todavia falta explicar, a meu modo de
ver, por que esse tipo de trabalho que consideraríamos interessante,
atrativo e plenamente satisfatório viria a coincidir com o
tipo de trabalho necessário que tem que ser levado a cabo,
tudo isso sem desprezar o nível de vida a que a gente está
acostumado e com aquele que teremos.
Chomsky.
É verdade que há uma certa quantidade de trabalho que
tem que ser levado a cabo.
Até
que ponto esse trabalho tem que ser chato é uma questão
pendente. Recordemos que a ciência, a tecnologia e os intelectuais
não tem se dedicado como deveriam em examinar essa questão
ou a superar o caráter oneroso e autodestrutivo do trabalho
necessário à sociedade. Isto se deve a que sempre se
tem assumido que há uma quantia substancial de escravos assalariados
que o farão simplesmente porque do contrário morreriam
de fome. Sem embargo, se se voltar a inteligência humana sobre
a questão do que fazer para que o trabalho necessário
à sociedade seja em si mesmo significativo, não sabemos
qual seria a resposta. Eu me inclino a pensar que uma boa parte dele
pode ser efetuado de maneira completamente tolerável. Inclusive,
é um erro crer que o trabalho físico é necessariamente
uma coisa desagradável. Muita gente, e entre elas me incluo,
o faz para relaxar-se. Por exemplo, não faz muito tempo pus
na cabeça plantar trinta e quatro árvores no quintal
atrás de minha casa, o que quer dizer que tive que fazer trinta
e quatro buracos na terra. Como pode supor, para mim, devido ao tipo
de trabalho que dedico a maior parte do meu tempo, esse é um
trabalho bastante pesado, mas tenho que reconhecer que o fiz com grande
satisfação. Não teria tido satisfação
se houvesse que me submeter a normas de trabalho, se estivesse subordinado
a um supervisor, se me houvessem ordenado fazê-lo em um determinado
tempo, etc. Por outro lado, se é uma tarefa efetuada apenas
por puro interesse, ótimo, que se faça. E isso sem tecnologia
alguma: sem ter que pensar em absoluto em como planejar o trabalho,
etc., etc.
Comunidad.
Sinto ter que dizer-lhe que pode haver o perigo de que este ponto
de vista seja encarado como uma fantasmagórica romantização,
concebida apenas por uma pequena elite de pessoas como professores,
talvez jornalistas, etc. que casualmente se encontrem em uma privilegiadíssima
situação onde ganham dinheiro fazendo o que em todo
caso gostam de fazer.
Chomsky.
A isso respondo com um enorme "se". Como disse antes, primeiro
há que se perguntar onde o trabalho necessário à
sociedade, ou seja, o trabalho requerido para manter o nível
de vida que desejamos, tem que ser necessariamente chato e indesejável.
Creio que a resposta é que, até certo ponto, temos que
assumir que uma certa quantidade de trabalho desagradável e
chato terá que ser efetuado, mas em muito menor proporção
do que hoje. Nesse caso a resposta é muito simples. Esse trabalho
tem que ser distribuído eqüitativamente entre as pessoas
que sejam capazes de fazê-lo.
Comunidad.
E todo mundo passa um certo número de meses por ano trabalhando
na cadeia de produção de uma fábrica de automóveis
e um certo número de meses recolhendo grãos e...
Chomsky.
Logo, estas tarefas não são as tarefas nas quais a gente
encontra oportunidades de auto realização. Eu não
estou disposto a crer nisto literalmente. Quando vejo pessoas trabalhando,
digamos, os artesãos e os artificies, por exemplo, os mecânicos:
creio que se descobre com freqüência uma boa dose de orgulho
na obra realizada. Creio que esse tipo de orgulho no trabalho bem
feito, no trabalho complicado bem feito, porque leva-lo a cabo requer
inteligência e raciocínio, especialmente quando se participa
também na gerência da empresa, na determinação
da maneira de levar a cabo o trabalho, de seu fim, do propósito
para que tem de servir, do destino que se lhe dará, etc. Creio,
repito, que tudo isso pode constituir uma atividade que produza satisfação
e que leve em si mesmo sua recompensa, atividade que de fato requer
perícia, o tipo de perícia que a gente tem satisfação
em colocar em prática. Sem dúvida, agora, estou no terreno
das hipóteses. Suponhamos que em determinado momento haja um
resíduo de trabalho, qualquer que seja, que realmente ninguém
queira fazer, muito bem, então eu diria que esse resíduo
de trabalho tem que ser distribuído eqüitativamente, e
fora disso todo mundo será totalmente livre para exercer seu
talento como se lhe apeteça.
Comunidad.
Finalmente, professor Chomsky, quais seriam as possibilidades de que
cheguem a existir sociedades desse tipo nos países industriais
mais importantes do mundo ocidental no próximo quarto de século?
Chomsky.
Não creio que tenho sabedoria ou informação suficiente
para fazer predições, contudo, creio que predições
sobre questões tão mal entendidas provavelmente tendem
a refletir mais a personalidade que o juízo. Mas creio que
podemos, pelo menos, afirmar que existem óbvias tendências
no capitalismo industrial no sentido da concentração
do poder em impérios econômicos restringidos no Estado,
que se está convertendo dia a dia em um Estado totalitário.
Durante muito tempo essas tendências tem persistido, e não
vejo nada que efetivamente as detenham. Creio que essas tendências
continuarão, pois elas fazem parte do presente estancamento
e declínio das instituições capitalistas.
A
meu modo de ver a tendência ao totalitarismo estatal e à
concentração econômica, que, naturalmente, estão
vinculadas levará continuamente até a repulsão,
a esforços por liberar-se pessoalmente e a esforços
organizacionais pela liberdade social. E isso tomará as mais
diversas formas. Em toda a Europa, de uma forma ou de outra, se está
pedindo o que as vezes se denomina participação dos
trabalhadores e as vezes até o controle total por parte dos
trabalhadores. É verdade que a maioria desses esforços
é mínima e creio que podem ser enganosos, de fato, podem
até prejudicar os esforços da classe trabalhadora por
libertar-se a si própria. Mas em parte responde a uma clara
intuição e entendimento de que a coerção
e a opressão, tanto as originárias do poder econômico
privado como as originárias da burocracia do Estado, estão
longe de ser uma característica necessária à
vida humana. E a medida que continuam aumentando essas concentrações
de poder e autoridade, veremos que aumentará também
a aversão a essa coisas e os esforços por organizar-se
e derrubá-las. Cedo ou tarde esses esforços serão
coroados de êxito, espero.
(*Compilação
de trabalho publicado nas revista "Comunidad" de Estocolmo)