Um
anarquista no MIT
"Noam Chomsky é o culpado
dessa situação, ou seja, porque ainda não temos
bons programas de tradução automática. É
tão brilhante, e sua teoria de gramáticas geracionais,
tão boa, que por 40 anos foi usada por todo mundo nesse campo,
deslocando o foco da semântica para a sintaxe", reclama
o engenheiro computacional Marvin Minsky, professor titular do Massachussets
Institute of Technology, MIT. Chomsky é o tipo de pessoa que
brilha mesmo quando acusado.
Mas a linguística não
é seu único ramo de destaque. Como cientista político,
o norte-americano é um dos intelectuais mais respeitados hoje
no mundo. Notório pela perspicaz crítica à política
externa norte-americana, consulta obrigatória para uma maior
compreensão do capitalismo. "Com o fim da Guerra Fria,
os países do terceiro mundo estão mais submissos ao
poder dos EUA. Essa é a razão pelo qual os golpes militares
não são mais necessários na América Latina.
Hoje existem os "senados virtuais", a dívida externa,
a liberalização do capital como formas de controle.
Claro que as elites latino-americanas participam de tudo isso. Elas
adoram esses esquemas, sempre foi assim. A Inglaterra não dominou
a Índia com tropas inglesas - as elites na Índia foram
cúmplices e enriqueceram com a ocupação, enquanto
o país se tornava cada vez mais miserável", denuncia
Chomsky.
Em relação ao Brasil,
o pensador defende a idéia de que a dívida externa deveria
ser cancelada. "98% da população não tem
nada a ver com ela, quem a contraiu foram os ditadores, os grandes
latifundiários e a elite". No passado, Cuba e Costa Rica
tiveram suas dívidas canceladas, pois, houve certo consenso(forçado,
claro) de que se tratavam de dívidas injustas, empurradas à
nação. Chomsky diz que essa é exatamente a situação
dos países do terceiro mundo.
Mas esse não é o assunto
da entrevista a seguir. Publicada em 1996, na edição
nº 2 da revista Red & Black Revolution, gira em torno da
visão do pensador sobre a ideologia dominante e suas alternativas.
O pensador respondeu as perguntas de Kevin Doyle por escrito.
RBR:
Em primeiro lugar, Noam, por muito tempo você tem defendido
a ideologia anarquista. Muitas pessoas estão familiarizadas
com a introdução que você escreveu em 1970 para
o "Anarchism" de Daniel Guerin. Porém, mais recentemente,
como no filme "Manufacturing Consent", você aproveitou
a oportunidade para novamente frisar o potencial do anarquismo e da
ideologia anarquista. O que te atrai no anarquismo?
CHOMSKY: Eu fui levado ao anarquismo
como adolescente, assim que passei a ver o mundo além de um
ângulo bem fechado, e desde então, não tenho visto
motivos para repensar essa distante atitude. Considero o anarquismo
singularmente válido para procurar e identificar estruturas
de autoridade, hierarquia e dominação, em qualquer aspecto
da vida, e para desafiá-las. Ao menos que haja uma justificativa,
são ilegítimas e deveriam ser desmanteladas, para aumentar
o nível de liberdade humana. Isso inclui poder político,
posse e administração, relações entre
homens e mulheres, pais e filhos, a nossa responsabilidade no destino
das futuras gerações (o imperativo moral básico
atrás de qualquer movimento social, a meu ver), e por aí
vai. Naturalmente, isso significa desafiar às gigantes instituições
de coerção e controle: o estado, às irresponsáveis
tiranias privadas que controlam a maior parte da economia doméstica
e internacional, e tudo mais. Mas não apenas essas. É
isso o que eu sempre entendi ser a essência do anarquismo: a
convicção de que a 'obrigação de se explicar'
é da autoridade, e ela deveria ser desmontada caso a obrigação
não seja cumprida. Se eu estou dando um passeio com meus netos
e eles se atiram numa rua cheia de carros, usarei não apenas
autoridade mas também coerção física para
impedí-los. O ato poderia ser contestado, mas acho que receberia
isso com prazer. E há outros casos; a vida é um assunto
complicado, nós entendemos muito pouco sobre as pessoas e a
sociedade, e veredictos majestosos são, geralmente, mais uma
fonte de dano do que de benefício. Mas o ponto de vista tem
lógica, creio eu, e pode nos conduzir perfeitamente por um
bom caminho. Além dessas generalidades, nós também
passamos a olhar para situações que são justamente
aonde surgem as questões de interesse e preocupação
humanas.
RBR:
É correto dizer que suas idéias e críticas são
hoje mais amplamente conhecidas do que antes. Poderia também
ser dito que suas opiniões são amplamente respeitadas.
Como você acha que seu apoio ao anarquismo é recebido
dentro desse contexto? Particularmente, estou interessado na resposta
que você recebe das pessoas que estão se interessando
por política pela primeira vez e que talvez tenham cruzado
com suas opiniões. Pessoas como essas se surpreendem com seu
apoio ao anarquismo? Elas se interessam?
CHOMSKY: A intelectualidade em geral,
como você sabe, associa anarquismo com caos, violência,
bombas, ruptura, e por aí vai. Então as pessoas são
frequentemente surpreendidas quando me vêem falar positivamente
do anarquismo, quando me identifico com as principais idéias.
Mas minha impressão é que entre o público em
geral, as idéias básicas parecem razoáveis quando
as nuvens se dissipam. Claro que quando nos viramos para questões
específicas - digamos, a natureza das famílias, ou como
uma economia poderia funcionar numa sociedade que é mais livre
e justa - dúvidas e polêmicas aparecem. Mas é
assim que deve ser. A física não pode realmente explicar
como a água flui da torneira para sua pia. Quando nós
encaramos problemas mais vastamente complexos, de valor humano, o
consenso é muito pequeno. Há muito espaço para
discórdia e a especulação, tanto mental quanto
empírica das possibilidades, para nos ajudar a apreender mais.
RBR:
Talvez, mais que nenhuma outra coisa, o anarquismo tenha sido vítima
da deturpação. Anarquismo pode significar coisas diferentes
para as pessoas. Você precisa explicar, com frequência,
o que é que você entende por anarquismo? A deturpação
que o anarquismo sofre te incomoda?
CHOMSKY: Toda deturpação
é uma moléstia. Muito desse fenômeno tem sua origem
em estruturas de poder que têm interesse em evitar a compreensão,
por motivos bastante óbvios. Vale a pena recordar "Principles
of Government" de David Hume. Ele manifestou surpresa com o fato
das pessoas sempre terem se submetido às regras 'deles'. Conclui
que "a força está sempre do lado dos governados,
os governadores não têm nada para se sustentar a não
ser a opinião. Então, na opinião apenas, é
que esse governo está fundamentado; e essa regra se estende
aos governos mais despóticos e militarizados, tão bem
quanto aos mais livres e populares." Hume era muito perspicaz
e, por acaso, dificilmente um libertário, segundo os padrões
da época. Ele com certeza subestimou a eficácia da 'força'.
Mas sua observação me parece basicamente correta e,
particularmente, essencial para as sociedades mais livres, onde a
arte de controlar a opinião é refinadíssima.
Deturpação e outras formas de confundir são acessórios
naturais. Então, a deturpação me incomoda? Claro,
mas do mesmo modo que um clima pútrido. Ela irá existir
enquanto as concentrações de poder continuarem produzindo
uma espécie de classe supervisora para defendê-las. Já
que elas não costumam ser muito brilhantes - ou são
brilhantes apenas o suficiente para saberem que é melhor evitar
a arena do fato e do argumento - se apoiam na deturpação,
satanização, e outros dispositivos à mão
de quem sabe que está protegido pelos diversos meios à
serviço do mais forte. Nós deveríamos entender
como tudo isso ocorre, e desatar da melhor maneira possível.
Isso é parte do projeto de libertação - de nós
mesmos e dos outros, ou mais razoavelmente, de pessoas trabalhando
em conjunto para alcançar esse objetivo. Parece simplório
e é. Mas apesar disso, quando o absurdo e a postura subserviente
predominam, eu tenho que encontrar muitos pontos de vista sobre a
vida humana e a sociedade, que não são simplórios.
RBR:
E nos círculos de esquerda mais bem definidos(onde espera-se
encontrar mais familiaridade com o que o anarquismo atualmente representa)?
Você encontra alguma surpresa devido às suas opiniões
e seu apoio ao anarquismo?
CHOMSKY: Se entendi o que quer dizer
'círculos de esquerda mais bem definidos', neles não
há muita surpresa sobre minhas opiniões em relação
ao anarquismo, pois muito pouco se conhece sobre minhas opiniões
sobre qualquer coisa. Esses não são os círculos
com que eu lido. Você raramente encontrará uma referência
à qualquer coisa que eu diga ou escreva. Claro que isso não
é inteiramente verdade, assim, nos EUA (mas raramente no Reino
Unido ou qualquer outro lugar), em alguns dos setores mais críticos
e independentes, que poderiam ser chamados de 'círculos de
esquerda definidos', você pode encontrar alguma familiaridade
com o que eu faço; e eu tenho amigos e associações
espalhadas aqui e ali. Mas dê uma olhada nos livros e jornais,
e você verá o que quero dizer. Eu não espero que
o que eu escreva e diga seja melhor recebido nesses círculos
do que nos clubes de faculdades ou nas redações de jornais
- de novo, com algumas exceções. A questão é
apenas secundária, tanto que fica difícil responder.
RBR:
Muitas pessoas têm notado que você usa o termo 'socialismo
libertário' da mesma maneira que você usa a palavra 'anarquia'.
Você vê esses termos como sendo basicamente similares?
O anarquismo é um tipo de socialismo pra você? A comparação
tem sido feita no sentido de 'anarquismo é equivalente à
socialismo com liberdade'. Você concordaria com esse enunciado
básico?
CHOMSKY: O prefácio para o
livro de Guerin que você mencionou começa com uma citação
de um simpatizante do anarquismo de um século atrás,
que diz que 'o anarquismo tem uma forte defesa' e 'aguenta qualquer
coisa'. Um grande fator disso tem sido o que tradicionalmente vem
sendo denominado como 'socialismo libertário'. Tentei explicar
no prefácio e aonde quer que estive, o que quis dizer com aquilo,
enfatizando que dificilmente seria algo novo; me refiro às
idéias dos líderes anarquistas que citei, e que, de
modo particularmente consistente, descrevem-se como socialistas ao
mesmo tempo que condenam duramente a 'nova classe' de intelectuais
radicais, que procuravam alcançar o poder no curso da luta
popular para depois se tornarem a viciosa 'burocracia vermelha', a
qual Bakunin alertou, e que geralmente é chamada de 'socialismo'.
Eu concordo, especialmente, com a teoria de Rudolf Rocker de que essas
tendências(absolutamente decisivas) no anarquismo vêm
da melhor porção do iluminismo e do pensamento liberal
clássico, muito além do que ele descreveu. De fato,
como eu tentei mostrar, elas diferem nitidamente da teoria e prática
do marxismo/leninismo, das doutrinas 'libertárias' que são
confeccionadas nos EUA e no Reino Unido em particular, de outras ideologias
contemporâneas, e de todas que parecem se reduzir à defesa
de uma ou outra forma de autoridade ilegítima, oferecendo,
de fato, a verdadeira tirania.
A
REVOLUÇÃO ESPANHOLA
RBR:
No passado, quando você costumava falar de anarquismo, você
muitas vezes se concentrava no exemplo da Revolução
Espanhola. Para você, parecia haver dois aspectos nesse exemplo.
Por um lado, a experiência da Revolução Espanhola
é uma boa demonstração do 'anarquismo em ação'.
Por outro, você enfatiza que é um bom exemplo de como
os trabalhadores podem se fundamentar em seus próprios esforços,
usando democracia participativa. Esses dois aspectos - anarquismo
em ação e democracia participativa - são apenas
um e a mesma coisa para você? O anarquismo é uma filosofia
para o poder do povo?
CHOMSKY: Eu sou relutante em usar
polissílabos enfeitados como "filosofia" para me
referir ao que aparenta ser apenas bom-senso. Também me sinto
desconfortável com slogans. Os feitos dos trabalhadores e camponeses
na Espanha, antes da revolução ser esmagada, foram impressionantes
em diversos sentidos. O termo 'democracia participativa' é
recente, e foi desenvolvido em outro contexto, mas certamente existem
pontos de contato. Me desculpe se isso soa evasivo. Certamente é,
mas isso porque eu não acho que o conceito, tanto de anarquismo
quanto de democracia participativa, está claro o suficiente
para eu poder responder se são a mesmo coisa.
RBR:
Um dos principais feitos da Revolução Espanhola foi
o passo da democracia baseada no povo. Em termos de população,
estima-se que mais de 3 milhões estavam envolvidos. A produção
rural e urbana foi administrada pelos próprios trabalhadores.
Na sua opinião, é uma coincidência que anarquistas,
notórios por sua defesa da liberdade individual, tenham tido
sucesso no ramo da administração coletiva?
CHOMSKY: Absolutamente nenhuma coincidência.
As tendências no anarquismo, que eu sempre achei mais convincentes,
apontam para uma sociedade altamente organizada, integrando diversos
formas de estruturas(área de trabalho, comunidade, e muitos
outros tipos de associação voluntária), porém,
controladas pelos participantes, não por aqueles em posição
de dar ordens (exceto, de novo, quando a autoridade pode ser justificada,
como, as vezes, é o caso em situações bem específicas).
DEMOCRACIA
RBR:
Anarquistas costumam realizar grandes esforços na construção
da democracia popular. Sem dúvida, eles são muitas vezes
acusados de querer 'levar a democracia à extremos'. Apesar
disso, muitos anarquistas não poderiam identificar, prontamente,
a democracia como um componente central da filosofia anarquista. Costumam
descrever sua política de forma parecida com a do socialismo
ou então como algo sobre o individual - eles são menos
propensos a falar que anarquismo é democracia. Você concordaria
que ideais democráticos são o ponto central do anarquismo?
CHOMSKY: O entendimento da democracia
entre anarquistas costuma ser o entendimento da democracia parlamentar,
conforme ela tem aparecido dentro de sociedades com profundas características
repressivas. Pegue os EUA, o qual tem sido tão livre como qualquer
outro país, desde o começo. A democracia norte-americana
foi fundada no princípio, destacado por James Madison no tratado
constitucional de 1787, de que a função prioritária
do governo é 'proteger a minoria abastada da maioria'. Desse
modo, ele alertou que se a Inglaterra - a única democracia
aparente de acordo com os modelos vigentes - permitisse ao povo em
geral participar dos assuntos públicos, eles poderiam implementar
a reforma agrária e outras 'atrocidades'; e que o sistema americano
precisa ser cuidadosamente esculpido para que tal crime seja evitado,
pois os 'direitos de propriedade' devem ser defendidos (na verdade,
devem vencer). Dentro desse contexto, a democracia parlamentária
merece a crítica ácida dos libertários genuínos.
E eu omiti muitas outras características nada sutis - como
o escravidão, para mencionar apenas uma; ou então o
salário escravo, duramente criticado por trabalhadores que
não tinham sequer ouvido falar de anarquismo ou comunismo,
justamente no século XIX pra frente. Leninismo
RBR:
A importância da democracia popular para qualquer mudança
significativa na sociedade parece ser evidente por si só, apesar
da esquerda ter sido ambígua sobre isso no passado. Falo sobre
a esquerda em geral - da social-democracia, mas também do bolchevismo
- tradições de esquerda que, possivelmente, têm
mais semelhança com o pensamento da elite do que com a verdadeira
prática democrática. Lenin, para usar um exemplo bastante
conhecido, era cético em relação a possibilidade
dos trabalhadores serem capazes de desenvolver qualquer outra coisa
além do sindicato. Pra mim, ele quis que os trabalhadores não
podem enxergar além dos problemas imediatos. De modo parecido,
a socialista fabianista, Beatrice Webb, muito influente no Partido
dos Trabalhadores inglês, achava que os trabalhadores se interessavam
apenas pelas corridas de cavalo. Qual a origem desse elitismo e quais
suas conseqüências para a esquerda?
CHOMSKY: Temo que seja difícil
para mim responder isso. Se o bolchevismo está incluído
na esquerda, então eu poderia me separar totalmente dela. Lenin
foi um dos grandes inimigos do socialismo, na minha opinião,
por motivos que eu tenho colocado. A idéia de que trabalhadores
estão apenas interessados nas corridas de cavalo é um
disparate que não resiste a uma rápida olhada na história
do trabalho ou da ativa e independente imprensa sindical, que floresceu
em muitos lugares, incluindo as cidades-fábricas de New England,
perto de onde eu escrevo. Sem falar no inspirador registro de batalhas
travadas pelos perseguidos e oprimidos em toda a história até
os dias de hoje. Pegue o mais miserável canto deste hemisfério:
Haiti, visto pelos conquistadores europeus como um paraíso,
foi origem de uma parte considerável da riqueza européia.
Hoje está devastado, talvez de maneira irreversível.
Poucos anos atrás, sob condições que poucas pessoas
nos países ricos poderiam imaginar, camponeses e favelados
organizaram um movimento pela democracia popular que ultrapassa tudo
que eu ouvi falar. Só mesmo alguns ministros profundamente
comprometidos poderiam não morrer de rir, ao ouvir os solenes
discursos de intelectuais e políticos norte-americanos sobre
as lições de democracia que os EUA têm a ensinar
aos haitianos. Os feitos desses haitianos foram tão sólidos
e apavorantes ao poder, que o povo teve que se sujeitar a outra dose
de terror, cujo patrocínio norte-americano é muito maior
do que as pessoas imaginam. E eles ainda não se renderam! Estão
interessados apenas em corridas de cavalo? Sugiro algumas linhas de
Rousseau que costumo citar: "Quando vejo multidões de
selvagens inteiramente nus desdenharem a opulência européia
e suportar fome, fogo, a espada e a morte para preservar sua independência,
sinto que não cabe a escravos tentar entender a liberdade."
RBR:
Seu trabalho - "Deterring Democracy", "Necessary Illusions",
entre outros - tem abordado consistentemente a função
e predomínio dos ideais elitistas nas sociedades como a nossa.
Você tem argumentado que dentro da democracia ocidental (ou
parlamentar) há uma profunda oposição à
qualquer função ou contribuição verdadeira
da massa popular, para que a irregular distribuição
de renda, favorável aos ricos, não seja ameaçada.
Nisso, seu trabalho é muito convincente, mas algo em suas afirmações
tem causado surpresa. Por exemplo, você compara a política
de John F. Kennedy com a usada por Lenin. Isso, eu poderia acrescentar,
tem chocado simpatizantes de ambos os lados! Você poderia discorrer
um pouco sobre a validade da comparação?
CHOMSKY: Eu não equiparei,
de todo, as doutrinas liberais da administração Kennedy
com as leninistas. O que fiz foi listar os evidentes pontos de intercessão,
particularmente, da maneira como previu Bakunin, um século
antes, em seu agudo comentário sobre a 'nova classe'. Por exemplo,
eu citei passagens de McNamara sobre a necessidade de 'aumentar o
controle administrativo se pretende-se ser realmente livre', e sobre
como a sub-administração, que é a 'verdadeira
ameaça à 'democracia', é uma agressão
irracional. Mude algumas poucas palavras nessas passagens, e nós
temos a clássica doutrina leninista. Já as causas, são
especialmente profundas, em ambos os casos. Sem a devida explicação
sobre o que as pessoas consideram chocantes, eu não posso responder
satisfatoriamente. As comparações são específicas
e eu as julgo adequadamente justas. Se não, estou equivocado,
e me interessaria ser esclarecido.
MARXISMO
RBR:
Especificamente, o leninismo se refere à forma como o marxismo
foi conduzido por Lenin. Você está separando, de modo
incondicional, os tratados de Marx da particular análise que
você faz de Lenin, quando você usa o termo 'leninismo'?
Você vê uma continuidade entre Marx e as atitudes de Lenin?
CHOMSKY: Os alertas de Bakunin sobre
a 'burocracia vermelha', que instituiria 'o pior de todos os governos
despóticos', foram feitos muito antes de Lenin, e eram dirigidos
aos seguidores do Sr. Marx. Houve, de fato, seguidores de diversos
tipos. Pannekoek, Luxembourg, Mattick e outros estão muito
longe de Lenin, e seus pontos de vista muitas vezes convergem em elementos
do anarco-sindicalismo. Korsch e outros escreveram de maneira simpática
à revolução anarquista na Espanha. Existe sim,
prosseguimento de Marx para Lenin, mas ele também existe em
marxistas que foram ásperos críticos de Lenin e do bolchevismo.
O trabalho de Teodor Shanin, anos atrás, sobre as últimas
posições de Marx em relação a revolução
camponesa, também é relevante. Estou longe de ser um
estudioso de Marx, e não me aventuraria a qualquer julgamento
sério sobre qual dessas linhas reflete o 'verdadeiro Marx',
se é que pode haver uma resposta para isso.
RBR:
Recentemente, nós obtemos uma cópia do seu livro "Notes
on Anarchism". Nele, você comenta algumas posições
do 'Marx inicial', em particular, o desenvolvimento da idéia
de alienação sob o capitalismo. Você aceita, em
termos gerais, essa divisão na vida e obra de Marx: um jovem
libertário socialista, e , nos últimos anos, um rígido
autoritário?
CHOMSKY: O 'Marx inicial' se deve
certamente ao ambiente em que ele vivia, podendo-se encontrar muita
semelhança com o pensamento que gerou o liberalismo clássico,
aspectos do iluminismo e do romantismo francês e alemão.
Novamente, não estudei Marx suficientemente para pretender
um julgamento final. Minha inpressão, até aonde ela
cabe, é que o Marx inicial foi mais uma figura do iluminismo
tardio, e o Marx posterior, um ativista altamente autoritário,
um analista crítico do capitalismo que tinha muito pouco a
dizer sobre alternativas socialistas. Mas isso são impressões.
RBR:
Pelo que entendi, o centro de sua visão analítica é
produto da idéia que você faz da natureza humana. No
passado, a natureza humana era encarada como algo, talvez, regressivo,
até limitado. Por exemplo, o aspecto imutável da natureza
humana é muitas vezes usado como argumento de que as coisas
não podem mudar realmente. É um argumento usado contra
o anarquismo. Você tem uma visão diferente? Por que?
CHOMSKY: A base do ponto de vista
de qualquer um é sempre algum julgamento da natureza humana,
mesmo que a opinião esteja longe da perspicácia ou careça
de articulação. Pelo menos, isso vale para pessoas que
se consideram agentes morais, não monstros. Tirando os monstros,
alguém que apoie a reforma ou revolução, estabilidade
ou retorno à estágios ancestrais, ou simplesmente o
cultivo do próprio jardim, tem sempre firmes convicções
de que aquilo é 'bom para as pessoas'. Esse julgamento é
baseado em algum aspecto da natureza humana (a qual uma pessoa racional
tentará ver o mais claro possível), admitindo que isso
pode ser avaliado. Então nesse ponto eu não sou diferente
de ninguém. Você está certo quando diz que a natureza
humana tem sido vista como algo regressivo, mas isso deve ser resultado
de profunda confusão. Minha neta não é diferente
de uma rocha, uma salamandra, uma galinha, um macaco? Uma pessoa que
solta tão improvável absurdo, admite que existe uma
natureza humana distinta. Sobra então apenas a questão
sobre o que é ela? Uma questão singular e fascinante,
de enorme interesse científico e significado humano. Conhecemos
uma quantia considerável sobre certos aspectos dela, mas não
aqueles de maior significado humano. Além disso, sobram esperanças
e desejos, intuições e especulações. Não
há nada de retrógrado no fato do embrião humano
ser limitado a ponto de não crescer asas, ou que seu sistema
visual não funcione como o de um inseto, ou que nos falta o
'instinto de lar' dos pombos. Os mesmos fatores que limitam o desenvolvimento
do organismo também capacitam-no para atingir uma estrutura
rica, complexa e altamente articulada. Basicamente, fatores, comuns
a todos, que habilitam capacidades notáveis. Um organismo desprovido
dessa estrutura intrínseca e determinante - que, claro, terá
um desenvolvimento radicalmente limitado - seria algum tipo de criatura
amebóide, lamentável (mesmo se pudesse sobreviver).
A área e os limites do desenvolvimento estão sistematicamente
catalogadas. Pegue, por exemplo, a linguagem. Uma das poucas capacidades
específicas humanas que se conhece bastante. Nós temos
razões muito fortes pra acreditar que todas as línguas
humanas são muito parecidas; um cientista marciano nos observando
concluiria que há apenas uma linguagem, com pequenas variações.
O motivo é que o aspecto da natureza humana, que possibilita
a consolidação de uma linguagem, permite opções
bastante restritas. Isso é limitação? Claro.
Isso é liberação? Claro, também. São
essas restrições que possibilitam um rico e intrincado
sistema de expressão do pensamento, se desenvolver de maneiras
parecidas; baseadas em experiências rudimentares, dispersas
e variadas. E sobre o problema das diferenças biologicamente
determinadas entre as pessoas? Que existem, não há dúvida;
e é um motivo de alegria, não de medo ou lamentação.
A vida entre clones não seria adequada, e, uma pessoa equilibrada
irá apenas se alegrar com o fato de outras possuírem
habilidades exclusivas. Isso deveria ser básico. O que geralmente
as pessoas acreditam em relação à raça
é realmente muito estranho, para mim. A natureza humana, o
que quer que seja isso, favorece o desenvolvimento de formas de vida
anarquista? Desfavorece? Nós não sabemos o suficiente
para responder nem uma, nem outra. Essas são questões
para a experimentação e a descoberta, não discursos
vazios.
FUTURO
RBR:
Antes de terminar, eu queria lhe perguntar resumidamente sobre alguns
fatos que estão ocorrendo na esquerda. Eu não sei se
é assim nos EUA, mas aqui, com a queda da URSS, teve início
um certa desmoralização da esquerda. Não que
as pessoas fossem amáveis patrocinadoras do que houve na URSS,
mas, há um sentimento generalizado de que a queda da URSS arrastou
também o ideal socialista. Você tem topado com esse tipo
de desmoralização? Qual a sua reação?
CHOMSKY: Minha reação
ao fim da tirania soviética foi parecida com o que senti com
a destruição de Hitler e Mussolini. Em todo caso, é
uma vitória do espírito humano. Isso deveria ser especialmente
bem-vindo para os socialistas, já que um grande inimigo do
socialismo finalmente caiu. Como você, eu fiquei intrigado em
ver como as pessoas ligadas à esquerda - inclusive aquelas
que se consideram anti-Stalin/Lenin - foram desmoralizadas com o colapso
da tirania. O que isso revela é que elas estavam mais profundamente
associados ao Leninismo do que imaginavam. Há, contudo, outros
motivos de preocupação em relação ao fim
desse sistema tirânico e brutal, que era tão 'socialista'
quanto 'democrático' (lembre-se que Ele dizia ser os dois;
a última característica foi ridicularizada no Ocidente,
enquanto que a primeira foi avidamente engolida, como se fosse um
defeito do socialismo - um dos muitos exemplos do serviço que
os intelectuais ocidentais têm prestado ao poder). Uma desses
motivos tem a ver com a natureza da guerra fria. Na minha opinião,
ela foi, em grande parte, um caso específico do 'conflito Norte-Sul',
usando o eufemismo corrente. O leste europeu tem sido o verdadeiro
'terceiro-mundo', e a Guerra Fria a partir de 1917 não tem
a menor semelhança com as tentativas de outras partes do 'terceiro-mundo'
seguirem caminho próprio, embora nesses casos, diferenças
de proporção deram ao conflito vida própria.
Por essa razão, foi apenas lógico aguardar o leste europeu
retornar devidamente à condição anterior; podia-se
esperar que certas partes do leste, como a República Tcheca
ou a Polônia Oriental, fossem restituídas, enquanto outras
voltam à função tradicional; a ex-Nomenklatura
se tornando a elite padrão do terceiro-mundo (com a aprovação
da corporação de estados ocidentais, que geralmente
prefere isso à alternativas). Essa não é uma
boa perspectiva e ela tem levado à imenso sofrimento. Outro
motivo de preocupação tem a ver com a questão
do retrocesso e do não-alinhamento. Grotesco como o império
soviético foi, sua existência oferecia certo espaço
para o não-alinhamento, e por razões puramente cínicas,
ele as vezes fornecia assistência às vítimas do
ataque ocidental. Essas alternativas não existem mais, e o
sul está sofrendo as consequências. Um terceiro motivo
tem a ver com o que a imprensa empresarial chama de 'os trabalhadores
ocidentais mimados' e seus 'luxuosos estilos de vida'. Com grande
parte da Europa Oriental retornando ao isolamento, proprietários
e empresários têm novas e poderosas armas contra a classe
trabalhadora e os pobres em geral. A General Motors e a Volkswagen
podem transferir a produção não apenas para o
México e Brasil (ou no mínimo ameaçar, o que
no geral é a mesma coisa), mas também para a Polônia
e Hungria, aonde podem encontrar mão de obra adequada por uma
fração do custo. Eles estão radiantes com isso,
o que é compreensível, dadas as condições.
Nós podemos aprender muito sobre o que foi a Guerra Fria (ou
qualquer outro conflito) olhando quem está feliz e quem está
infeliz ao seu término. Por esse critério, os vitoriosos
da Guerra Fria incluem as elites ocidentais e a ex-Nomenklatura, agora
ricos num ponto além de seus sonhos mais selvagens, e os perdedores
incluem grande parte do população do leste junto com
os trabalhadores e os pobres do oeste, tanto quanto os setores populares
do sul que tem procurado um caminho independente. Idéias desse
tipo tendem a causar histeria entre intelectuais ocidentais, quando
eles sequer entendem, o que é raro. Isso é fácil
de demonstrar. É também compreensível. As observações
são justas, e subvertem o poder e o privilégio; logo,
histeria. No geral, as reações de uma pessoa honesta
ao final da Guerra Fria serão mais complexas do que simplesmente
curtir o colapso de uma tirania brutal, e as reações
que prevalecem encobrem hipocrisia extrema, na minha opinião.
CAPITALISMO
RBR:
Em muitos sentidos, a esquerda hoje se encontra novamente ao seu ponto
de origem no último século. É desse modo que
ela encara um tipo de capitalismo que é reinante. Hoje parece
haver enorme consenso, maior que em qualquer época da história,
de que o capitalismo é a única maneira válida
de organização econômica, isso apesar do fato
do bem-estar não ser extenso como o fenômeno. Nesse cenário,
alguém poderia argumentar que a esquerda é insegura
na questão de como avançar. Como você encara a
época atual? É uma questão de 'volta as origens'?
O esforço deveria ser no sentido de buscar a tradição
libertária do socialismo e enfatizar os ideais democráticos?
CHOMSKY: Isso é, quase sempre,
propaganda, na minha opinião. O que é chamado 'capitalismo',
basicamente, é um sistema de mercantilismo corporativo, com
enormes e abundantes tiranias privadas irracionais exercendo vasto
controle sobre a economia, política, vida social e cultural;
operando em íntima associação com países
poderosos que intervêm maciçamente tanto na economia
interna como internacional. Infelizmente, isso é verdade em
relação aos EUA, contrariando a ilusão. Os ricos
e privilegiados não estão mais com a vontade de encarar
a disciplina do mercado como no passado, embora considerem isso adequado
para a população em geral. Citando só alguns
exemplos: a administração Reagan, aquela que tirou enorme
proveito da retórica do livre-mercado, foi também a
mais protecionista da história norte-americana do pós-guerra
- hoje, superam todas os outros países juntos. Newt Gingrich,
quem guia a atual 'cruzada', representa uma região riquíssima.
Recebe mais subsídios federais do que qualquer região
suburbana no país, além do próprio sistema federal.
Os 'conservadores' que estão pedindo o fim da merenda para
crianças necessitadas também estão pedindo um
aumento de verbas para o Pentágono, as quais foram estabelecidas
no final de 1940 e ainda são as mesmos porque, como a imprensa
empresarial foi gentil o bastante para nos dizer, a indústria
de tecnologia de ponta não pode sobreviver numa 'economia pura,
competitiva, não-subsidiada e livre', e o governo deve ser
seu 'benfeitor'. Sem o 'benfeitor', os eleitores de Gingrich seriam
trabalhadores pobres (se tivessem sorte), não haveria computadores,
eletrônicos em geral, indústria aérea, metalurgia,
automação, etc. Anarquistas, de todos os povos, não
deveriam se deixar levar por essas fraudes clássicas. Mais
do que nunca, as idéias libertárias socialistas são
relevantes, e a população está aberta a elas.
Apesar da gigantesca corporação de propaganda para as
massas, fora dos círculos instruídos, o povo ainda mantém
muitas das suas posições tradicionais. Nos EUA, por
exemplo, mais de 80% da população vê o sistema
econômico como 'injusto por natureza' e o sistema político
como uma fraude, que serve 'interesses específicos', não
ao povo. A maioria absoluta pensa que os trabalhadores têm muito
pouca voz ativa nos assuntos públicos (o mesmo na Inglaterra),
que o governo tem a responsabilidade de dar assistência às
pessoas necessitadas, que investimentos em educação
e saúde deveriam ter prioridade em relação à
cortes no orçamento público, que as atuais propostas
republicanas correndo pelo congresso beneficiam os ricos e lesam o
povo, e por aí vai. Intelectuais podem contar outra história,
mas não é muito difícil encontrar os fatos.
RBR:
Num ponto, as idéias anarquistas tem sido justificadas pelo
colapso da União Soviética - as profecias de Bakunin
têm-se verificado corretas. Você pensa que os anarquistas
devem se encorajar com essa situação, com a coerência
da análise de Bakunin? Os anarquistas deveriam encarar o futuro
com maior segurança em suas idéias e história?
CHOMSKY: Eu acho, no mínimo
espero, que a resposta está implícita na questão.
Eu creio que a era atual pressagia algo de ameaçador, e traz
grande expectativa. O que acontecerá depende do que fazemos
com as oportunidades.
RBR:
Por último, Noam, um outro tipo de questão. Nós
temos um pouco de Guinness separado para você aqui. Quando você
virá beber?
CHOMSKY: Mantenha o Guinnes pronto.
Acho que não vai demorar muito. Eu estaria aí amanhã,
se pudesse. Nós (minha esposa me acompanhou, coisa rara nessas
constantes viagens) tivemos momentos maravilhosos na Irlanda, e adoraríamos
voltar. Por que não voltamos? Não te incomodarei com
os detalhes sórdidos, mas a necessidade é imensa e cresce
cada vez mais - um reflexo das situações que tenho tentado
descrever.
(Relapsa tradução de
Romeu Musseb)