Edgar Rodrigues e o Movimento Anarquista no Brasil

Durante a sua mais recente estadia em Portugal, tivemos ocasião de conversar com Edgar Rodrigues e ouvir dele imensas histórias da actividade do movimento anarquista brasileiro - movimento em que ele participou desde a sua chegada ao Brasil, nos anos 50 - e da sua longa História e antecedentes, à qual ele dedicou anos e anos de um estudo meticuloso e incansável. Esta entrevista revela um pouco da importância social que o movimento anarquista atingiu no Brasil, aflora algumas razões do seu declínio e aborda as suas expectativas de ressurgimento.

Entrevista conduzida por José Maria Carvalho Ferreira

UTOPIA - Como foi que começou a escrever, como é que deu início a uma obra tão vasta, de dezenas de livros publicados, sobretudo em Portugal e no Brasil, sobre a questão social?

Edgar Rodrigues - Aqui em Portugal, eu ia juntando papéis. Assim, quando fui para o Brasil, levava metade do livro "Na Inquisição do Salazar" já rascunhada. Ao chegar, encontrei liberdade, encontrei companheiros muito cultos, com muita projecção na vida brasileira, como o José Oiticica, e tive oportunidade de assistir a reuniões da "Ação Direta". Aí surgiu a ideia de começar a escrever para os jornais, antes [ainda da publicação] do livro, a contar alguma coisa da ditadura portuguesa. E uma coisa que eu notei é que no Brasil não existia nenhum livro de História sobre a questão social, apenas algumas obras romanceadas. Por exemplo, Fábio Luz tinha publicado, em 1903, uma novela chamada "Emancipação", que era uma obra anarquista. Depois, publicou, a seguir, uma outra, e existiam umas poucas obras também com carácter social, mas fora isso, não existia mais nada. Então, como achei aquilo um absurdo, comecei a juntar não só coisas de Portugal como também do Brasil. E um dia mandei um artigozinho denunciando a morte do Arnaldo Simões Januário no Tarrafal. Era uma pessoa da qual eu tinha bastantes dados; mandei-o para um jornal do Uruguai, chamado "Volontá". E eles receberam-no, publicaram-no e escreveram-me uma cartinha pedindo-me para eu fazer uma série de trabalhos que demonstrasse como se desenvolvia o movimento anarquista no Brasil. E porque o fizeram? Porque ignoravam que eu não era brasileiro. Eles admitiam, pelos dados que eu lhes estava ali a adiantar, que eu seria um militante já antigo, e eu, com a vaidade do jovem que pretende intervir nas coisas, também não disse que não conhecia. Então, principiei a escrever. E cheguei a cinquenta artigos, com o título "A Questão Social no Brasil" (subsídios para a história do movimento operário), e isto foi evoluindo assim, até que a certo ponto, um companheiro de São Paulo me disse: «Mas isto dá um livro!». Isto é, eu fui assim, digamos, empurrando as coisas, fazendo uns trabalhos, sem nenhum plano, sem nenhuma ordem, às vezes nem sequer cronológica, inclusive usando documentos que, mais tarde, vinha a perceber que eu próprio já tinha comigo coisa melhor [mas já não tinha, entretanto, meios de os usar antes de publicação].

Nos livros que já publicou, sempre foi dada muita importância às lutas sociais, às greves travadas pelo movimento social no Brasil e em Portugal, quer inclusive ao aspecto comunitário, autogestionário dessas batalhas. Qual a importância das lutas que começa a descrever, logo a partir do século XVII, e inclusivamente qual a importância da colónia Cecília? Porque é que dá uma importância tão especial a esses episódios nos seus livros sobre a questão social?

Bom, eu comecei a escrever sobre ocorrências vindas até de mais longe. Porque no primeiro livro que dediquei a essa questão, e que se chama "Socialismo e Sindicalismo no Brasil", eu o iniciei pelas lutas dos escravos. Porque não concebo que o trabalhador negro, que foi para o Brasil como escravo, não fosse considerado trabalhador. Todos os livros escritos no Brasil até aquela época não incluíam as lutas dos escravos entre as dos trabalhadores, apesar de, desde o meu livro, se terem feito já muitas abordagens nesse sentido. Eu achava que o escravo foi para o Brasil para trabalhar, não foi especificamente para ser escravo, foi uma forma que encontraram para o obrigar a trabalhar, pela comida e pela roupa. Foi então por aí que eu comecei, pelos chamados quilombos. E dei grande destaque ao quilombo de Palmares, por muitas razões: porque foi uma comunidade que conseguiu reunir 20 mil pessoas, que durou quase um século, derrotou o exército brasileiro 17 vezes, e sobreviveu sozinho sem leis, sem Estado e sem religião. Eles tinham lá as místicas deles, é verdade, mas conseguiram viver sem dinheiro, fabricavam a sua própria roupa, plantavam, colhiam e fiavam algodão, e conseguiram criar uma verdadeira comunidade socialista libertária.

Eu, naturalmente, abordei profundamente esses aspectos, e então, foi por aí que comecei, em 1673. A partir dessa altura, fui acompanhando todas as comunidades de trabalhadores negros e de toda a gente que tinha ideias [de emancipação social] e que veio depois, como a comunidade do Said, de Santa Catarina, que foi antes da colónia Cecília, e depois a própria colónia Cecília e os primórdios da propaganda num sentido político-social. Os imigrantes que vieram de Itália, uns poucos de Portugal, outros de Espanha, começaram a publicar pequenos jornais também falando dessas ideias. Quer dizer, eu percorri esse trajecto até chegar, naturalmente, ao sindicalismo, tal como ele se veio a apresentar já na última década do século XIX.

A colónia Cecília foi uma experiência anarquista, especificamente, ao contrário do quilombo de Palmares, que era anarquista, mas onde não havia uma consciência disso. À parte desse aspecto cooperativo, houve um facto curioso e importante, é que o Zumbi, talvez o homem que mais se evidenciou no quilombo de Palmares, foi o primeiro sujeito que tentou criar um país, atingir uma comunidade independente, antecipando-se assim a Tiradentes, a figura central da luta pela independência do Brasil, em mais de dois séculos. Ora, isso, para mim, é uma coisa muito importante. Os ex-escravos formaram uma comunidade muito grande em território, que seria, geograficamente, quase do tamanho de Portugal. Essa experiência socialista libertária, mesmo na ausência duma consciência assumida dessa ideia, realizou coisas interessantíssimas. Eles travaram, continuamente, uma luta contra a escravatura. Através duma produção maciça de alimentos, que conseguiam escoar e vender nos mercados no sul do Brasil, no Paraná, no norte, em Pernambuco, e noutras regiões a que chegavam, financiavam as fugas do campo. Estabeleceram uma luta contra os fazendeiros, quer económica, porque faziam concorrência com os seus produtos nos mercados, quer social, porque organizavam a fuga dos escravos. No começo, os fugitivos eram quase só homens e não havia portanto mulheres no quilombo, por isso nem procriação, nem prática sexual. Eles tiveram, então, de patrocinar as fugas, e fizeram-no até ao ponto de terem atingido uma família de 20 mil pessoas.

A colónia Cecília surgiu em 1894, ali no desabrochar da República do Brasil. Teve os seus percalços mas também teve coisas muito interessantes. É bastante difícil, em números, falar, de memória, de coisas que eles fizeram, mas deixou uma obra de grande importância, até porque parte das pessoas que viveram na colónia Cecília, quando não tiveram condições de viver lá mais, pois a polícia ia prendê-las, fugiram para o Paraná e aí deram início à publicação de vários jornais anarquistas; um dos primeiros jornais publicados no Paraná chamava-se "O Despertar", e teve como director o Giggio Damiani, que depois, em 1919, acabou por ser expulso de São Paulo, e tornou-se, com o decorrer do tempo, num grande jornalista; era também pintor de cenários para teatro; "O Despertar" era publicado semanalmente, em Português, com parte em Italiano; esses anarquistas, vindos da colónia Cecília, conseguiram também fundar a Federação Operária e realizar o I Congresso logo em 1907…

Justamente! Uma terceira pergunta vem na calha do que está a dizer agora. No princípio do século, até aos anos 20-30, em termos de movimento operário, em termos da luta social, da criação do que podemos dizer uma escola emancipalista, como é que vê toda a influência anarquista, ou libertária, nesse processo?

Ora, ela teve algumas facetas curiosas, alguns pontos altos e também alguns pontos baixos. É preciso considerar que o Brasil era um país de imigrados e esse facto prejudicou muito o movimento anarquista no Brasil. Por ali passaram imigrantes vindos de muitos países e alguns dos que agitaram e semearam mais ideias, mas por razões de falta de documentação e pela sua posição ideológica, acabaram por ser expulsos, ou tiveram que fugir, foram presos, deportados, etc.. E essa mudança fazia com que, quando existia um núcleo aqui, que estava a fazer um movimento bonito, a espalhar as ideias, de repente vinha a polícia, mandava-os embora e aquilo morria. Depois surgia um outro ali, recomeçava de novo… Quer dizer, houve vários inícios, porque o anarquista brasileiro, nessa época, em 1920, era uma minoria; a maioria dos militantes eram estrangeiros, eram italianos, portugueses, espanhóis, havia também alguns franceses, houve alguns russos (mas poucos), argentinos, uruguaios e paraguaios, mas esses eram também meio emigrantes, que fugiam para o Brasil quando lá sofriam perseguição, mas depois, quando as coisas se acalmavam, retornavam. E com essa história, naturalmente, o movimento sofreu altos e baixos. Até 1920, o Brasil chegou a ter quatro jornais anarquistas diários, em períodos diferentes. Mas todos esses jornais morreram pelas mesmas razões. Alguns tinham brasileiros como directores - outros nem brasileiros eram (houve muitos italianos) -, mas por vezes eram presos e roubavam-lhes as máquinas. E acontecia isso, porque se tinha criado, em 1907, a chamada lei Adolfo Gordo, do nome de um deputado, fazendeiro paulista, também formado em Direito, que foi eleito deputado várias vezes (para defender o capitalismo); e ele elaborou uma lei, que tinha apenas quatro artigos, cujo objectivo era prender ou expulsar todo o estrangeiro que falasse de anarquismo, anarco-sindicalismo, de greves; não era preciso participar, bastava falar ou escrever sobre isso. Não havia julgamentos, sequer. Posteriormente, houve muitos protestos, de Portugal, de Itália, da Espanha, de França, que choveram no Brasil, e foram então obrigados a alterar essa lei. O próprio Adolfo Gordo foi chamado para redigir mais uns artigozinhos, e então passaram a estabelecer a obrigação de julgar as pessoas antes de expulsá-las. Mas a polícia, como o Brasil é muito grande, fazia assim: por exemplo, ela prendia em Santos um sujeito, e quando chegava lá a ordem de julgamento, ele já não estava lá, mas preso no Rio de Janeiro, que já era outro Estado; se naquele tempo, um cidadão tivesse um problema num Estado, transferia-se para outro e naquele Estado o processo ficava sem efeito, porque como o Brasil era um país federativo, então regia-se quase como os Estados Unidos. Então aconteceram casos curiosos. Por exemplo, numa das comunidades de que eu também falei [nos meus livros], a comunidade de Guararema, que foi também fundada por um italiano, Artur Campagnol, houve uma dificuldade imensa de prosperar, porque eles prenderam Campagnol várias vezes, uma vez em 1894, juntamente com mais seis pessoas (dois socialistas e o resto anarquistas - um espanhol, um brasileiro e os outros italianos) e resolveram mandá-los para o Rio de Janeiro; foram presos em São Paulo, numa rua chamada Libero Badaró, um dos primeiros revolucionários italianos que foi para o Brasil, e foi morto a tiro, em São Paulo, logo no começo do século, porque fazia muita agitação; então deram o nome dele a essa rua, e precisamente no seu número 110 reuniam-se um grupo de italianos e espanhóis para comemorar, pela primeira vez, o 1º de Maio no Brasil. Prenderam esses cidadãos porque o Consulado italiano soube dessa comemoração e a comunicou à polícia. Esta trouxe alguns dos militantes para a Prisão Central do Rio de Janeiro; o Artur Campagnol, que eles consideravam o cérebro, pela sua actividade na comunidade de Guararema, foi levado para Santos para o jogarem nos porões de um navio, porque era assim que a polícia fazia, levava de noite os presos, enfiavam-nos num cargueiro, e mandavam-nos embora; mas no caminho, ele meteu conversa com os agentes que o levavam, se eles gostavam de ir à praia, se nadavam muito, etc., e foi conversando com eles, que a certa altura soube que não sabiam nadar. Quando chegou perto do cais do porto onde havia de ser embarcado - naquele tempo ainda não existia o cais tal como ele existe hoje, em que isso seria mais difícil -, ele, ao sentir que os policiais se descuidaram um pouquinho, atirou-se ao mar, mergulhou, andou lá por baixo por trás dos muitos barcos miúdos, escondendo-se - já era perto da noite -, e no dia seguinte, de manhã, foi para casa de uns companheiros, voltou, e acabou por morrer [muito depois] em São Paulo, em 1944. Ora durante o governo paulista - que quem o estava a condenar era o governo do Estado de São Paulo - ele não pôde ir mais à comunidade, que continuou por lá, meio atrapalhada, meio funcionando. E só depois que mudou o governo é que ele apareceu de novo, porque como não havia processo (ele estava a ser expulso sem processo), no governo seguinte já não tinham por que prendê-lo. Mas depois, ainda foi preso duas ou três vezes. De maneira geral, acontecia isto. Portanto, a participação dos anarquistas foi muito intensa mas teve altos e baixos. Apesar disso, teve uma influência muito grande e não foi só nas comunidades. Quem primeiro introduziu a questão social no romance, na literatura, foram os anarquistas, e até hoje, existem alguns romances, a partir do começo do século, que têm todas as características do anarquismo, ao ponto de chegarmos agora, a uma época mais recente, sem uma grande organização anarquista, mas em que [mesmo assim], se realizaram vários filmes anarquistas, de curta metragem, como "O Sonho Não Acabou", "Libertários" e "Sacco e Vanzetti", sendo este último feito parte fora, mas em parte, também no Brasil, e principalmente "A Colónia Cecília", um filme de longa metragem, feito por um realizador francês mas cujas filmagens decorreram no Paraná.

O impacto do triunfo soviético

Diz-se que com a Revolução Russa e o surgimento do Partido Comunista no Brasil, também aí os anarquistas perderam o seu impacto na revolução social e nos trabalhadores. Acha que isso é verdade ou não, e o que é que se fez a partir daí, como é os anarquistas se organizaram, em termos de centros, jornais, sindicatos, etc.?

Muitas pessoas tentam interpretar as coisas dessa maneira. Num dos meus livros mais recentes, eu tentei explicar as razões do enfraquecimento do movimento libertário no Brasil. Uma delas foi, realmente, a expulsão dos anarquistas. Para se ter uma ideia, eu consegui chegar, em números aproximados, a cerca de mil militantes expulsos, dos mais destacados que o movimento anarquista teve; isto num período mais ou menos de 15 a 20 anos, desde o começo do século, até cerca de 1920. Bom, este é um aspecto. Outro aspecto foi o problema colocado pelos presidentes do Brasil, Epitácio Pessoa, que governou até 1922 (de 18 a 22) e Artur Bernardes, que governou de 1922 a 1926. E porquê estes dois? Porque foram estes homens que aperfeiçoaram a lei de expulsão, e o Artur Bernardes principalmente, porque criou um campo de concentração - e pouca gente fala nisso - que se chamou o Campo de Concentração de Oiapoque, que é lá na fronteira do Brasil com a Guiana francesa, e para ali ele mandou uma grande parte dos militantes anarquistas mais destacados, inclusive, o director da "Plebe", de São Paulo, Augusto Mota, um militante muito culto, e ali quase todos morreram. Durante os quatro anos de Artur Bernardes (que eu por vezes até chamo o reinado de Artur Bernardes), o Brasil funcionou em estado de sítio. Ele prorrogou-o indefinidamente, não apenas pelos anarquistas, mas porque, logo em 1922, por altura da tomada de posse, houve uma revolução, a chamada Revolução do Forte de Copacabana, em que jovens militares discordantes já do regime anterior, acabaram por fazer um movimento e foram presos; isso aparece na História do Brasil como "os 19 do Forte de Copacabana"; já nessa ocasião, o governo aproveitou para bombardear, com peças de artilharia, o Sindicato da Construção Civil, que era o mais forte naquela época, no Rio de Janeiro. Em seguida, em 1924, houve a chamada Revolta dos Tenentes, que era outro grupo de militares, que acabando por discordar do regime, também se revoltou. Com estas duas revoltas, Artur Bernardes aproveitou para criar o campo de concentração e então mandou para lá anarquistas, prostitutas e os militares rebeldes. Ao todo, estiveram por lá cerca de 3.400 deportados. Dos anarquistas só saíram de lá três para contar a história, porque fugiram. Conseguiram-no através da selva amazónica, andaram por lá meses e meses, a alimentar-se de raízes e coisas do género. Este período de estado de sítio, deu também ao Artur Bernardes a oportunidade de fazer o seguinte: assaltou todas as sedes do sindicato, não só deportou os militantes mais destacados dessa época, mas fechou também todos os sindicatos, todos os jornais - não se pôde publicar até 1925 nenhum jornal -, expulsou o Marques da Costa, que veio a morrer em Lisboa, e era director de um jornal, e da Federação Operária do Rio de Janeiro. Ora, foram estes aspectos, juntamente com a luta entre anarquistas e comunistas que aplainou a possibilidade da ditadura de 30, que veio mais adiante um pouco e, ao mesmo tempo, arrasou o movimento. Na minha interpretação, estas foram as razões principais. As pessoas, por vezes atribuem essa quebra a outras razões. Mas nessa altura, os comunistas eram 12 (!), doze militantes, sendo um dos fundadores do Partido Comunista, um militante que também era anarquista, homem muito inteligente, chamado Octávio Brandão, que chamava a esse grupo "Os Doze Astrogildistas", porque o Astrogildo Pereira é que era o cérebro daquela coisa, daquele grupo… E desse grupo de fundadores, onze eram anarquistas e só um socialista. No começo nem havia assim tanta distinção, como aliás aconteceu também em Portugal. Os anarquistas e os comunistas tratavam-se de primos. Os próprios anarquistas fizeram uma campanha para arranjar dinheiro para ajudar os flagelados russos, em 1923, já o Partido Comunista estava embrionariamente em construção. E não se tratava de anarquistas duvidosos: o Oiticica, que continuou anarquista até morrer, Fábio Luz, que era um médico muito famoso no Rio de Janeiro - inclusive existe uma rua com o nome dele -; ora esses homens fizeram essa campanha porque acreditavam que a Revolução Russa seria uma revolução de cunho social; então, antes de se darem conta [do seu verdadeiro carácter], estava tudo misturado, mas o grupo de comunistas mesmo, era muito pequeno e não tinha força. Eu até já disse isto algumas vezes: os comunistas ajudaram Artur Bernardes a preparar o terreno para a ditadura de Getúlio Vargas…

Durante a ditadura de Getúlio Vargas e a ditadura dos militares, é evidente que, quer se queira quer não - os factos mostram-no, e aliás a História e os seus livros demonstram-no -, os anarquistas perderam peso; ora, nesse período, que podemos dizer que vai desde o final dos anos 20 até, sobretudo, o final da ditadura militar, quais foram as modalidades, os grupos, se quiser, que tentaram, mesmo assim, nesse período histórico que é grande, remar contra a maré, ou seja, fazer avançar as ideias e as práticas?

Eu dividiria isso em vários períodos, o primeiro a partir de Março de 1922, quando o Partido Comunista nasceu, e aqui eu queria referir uma coisa curiosa sobre a fundação do Partido Comunista. Primeiro, como já disse, ele nasceu pela mão dos anarquistas, como também nasceu em Portugal, e o primeiro convidado a fundar o Partido foi Edgar Leuenroth. Era um homem muito destacado, jornalista profissional, e tinha muita projecção nos meios operários, pois falava muito bem. Foi contactado em São Paulo, quando era director de um diário anarquista chamado "A Vanguarda Operária". Quem o procurou foi o delegado da III Internacional para a América Latina e os Países de Língua Portuguesa, que aparecia ali como vendedor de casimira inglesa, e usava o pseudónimo de Ramizon Subirov. Este cidadão levava a credencial bordada em seda vermelha por dentro da manga do casaco, para se poder identificar. Então, o Edgar Leuront não aceitou - e veja-se a ingenuidade -, mas passou o contacto do Astrogildo Pereira, que também era anarquista e estava mais afeiçoado à Rússia, para fundar esse partido. Eles acreditavam que dali viria a revolução social…

Nesse período até 1935, quando Getúlio Vargas amarrou totalmente a ditadura que nasceu na revolução de Outubro de 1930 - curiosamente também em Outubro - os anarquistas ainda publicaram o jornal anti-clerical "A Lanterna", que chegou a sair semanalmente e, posteriormente, passou a quinzenal, criaram ligas anti-clericais em todo o país, inclusivamente no Rio de Janeiro, faziam palestras quase diariamente, criaram um grupo de teatro, que representou peças revolucionárias no Rio de Janeiro e em São Paulo - houveram diversas, talvez cerca de uns vinte ou mais -, conseguiram ainda manter algumas escolas livres em São Paulo e fizeram ainda um Congresso, em 1934, para remodelar a Confederação Operária brasileira, a COB. Foi então nesse período que surgiram algumas lutas, inclusive com mortes, entre anarquistas e comunistas, em 1927. Nesse ano, os comunistas assassinaram um anarquista chamado Antonino Domingues, no Rio de Janeiro, por causa da polémica da adesão à III Internacional. Eles fizeram vários debates, durante algumas semanas, foram mudando de sindicato para sindicato, na tentativa de convencer os trabalhadores a aderir à Internacional Sindical Vermelha, que seria o braço sindical da III Internacional. O movimento [anarquista] ainda continuou pujante, quer queiram quer não as pessoas que se opõem e tentam negar isso. Mas, a partir de 1935, o Getúlio fechou tudo; deportou, prendeu, e muitas pessoas acabaram novamente deportadas, fuziladas, jogadas na selva - mais de trinta anarquistas foram deixados na selva amazónica e lá morreram, nunca mais se soube o que foi feito deles! De 30 a 45, o movimento anarquista limitou-se ao mesmo que acontecia em Portugal, os companheiros iam a casa deste ou daquele, reuniam-se periodicamente e, de vez em quando, publicavam um panfletozinho, faziam uma coisa clandestina, mas não conseguiam nada, porque também nessa altura se declarou a Grande Guerra.

Em 1945, um pouquinho antes de cair a ditadura, surgiu um sujeito que era anarquista já dos tempos de 1917/18 - andava no Ceará fazendo propaganda anarquista, chamado Moacir Caminha, e que veio para o Rio de Janeiro e aí arranjou um financiamentozinho num negócio de corridas de cavalos, tendo lançado um jornal anarquista intitulado "Remodelações". E editava aquilo semanalmente, tendo provocado uma onda tremenda. Numa parte, ele anunciava as corridas de cavalos e na outra parte fazia propaganda do anarquismo. Bom, os velhos anarquistas que andavam por lá, uns fugidos, outros que tinham ido para fora, foram todos atrás do Moacir Caminha, e começaram a reunir-se. Mas o Moacir Caminha colocava o anarquismo numa posição com que alguns não concordavam e então eles passaram a publicar o jornal "Ação Direta". Então, no período de 1945 - um pouquinho antes da queda da ditadura do Getúlio, que já estava enfraquecida - até aos militares, havia um movimento bastante intenso.

Chegada ao Brasil

Eu cheguei ao Brasil em 50, e participei ainda em sete congressos anarquistas, a nível nacional, inclusive com a participação de estrangeiros. Nós tínhamos então uma propriedade que era a nossa chácara, em São Paulo, que agora passou para outro lugar e numa área maior, e ali se reuniam clandestinamente os companheiros do Brasil. Publicaram-se ao todo, nessa época, 145 números do "Ação Direta". "A Plebe", criada em 1917 e que já tinha sido interrompida várias vezes, voltou a sair a partir de 1947 e veio até 1955, mais ou menos; depois acabaram por chegar à conclusão que o melhor era fundir "A Plebe" e "Ação Direta" para não dispersar a actividade. E voltaram a surgir livros anarquistas, o que não acontecia até então. Que me recorde, no Brasil tinham sido editados "A Dor Universal", de Sebastien Faure, "O Anarquismo", de Kropotkine, na Bahia, e mais uns dois ou três livros de autores clássicos; dos anarquistas brasileiros, existiam umas novelas, do Fábio Luz (entretanto falecido, em 1937) e de outros, e a coisa ficava por aí. O Oiticica aproveitou então esse impulso e escreveu aquele livro que se chama "A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos", e depois acabou até por sair uma edição em Portugal. Desse livro publicaram-se umas seis edições. E desde aí até à ditadura dos militares, publicaram-se cerca de quinze a vinte livros anarquistas. Mas veio a ditadura militar em seguida. Nós tínhamos um centro de cultura no Rio de Janeiro, que levava o nome José Oiticica, e que era a própria sala onde o Oiticica dera os seus cursos, e com a qual nós ficámos, de acordo com a família. Desenvolvíamos ali uma série de actividades anarquistas, registamos uns estatutos, etc.. Mas com a revolução dos militares, eles fecharam aquilo, prenderam vários militantes, e 17 deles foram envolvidos num processo na II Auditoria da Aeronáutica. Desse processo eu falo num livrinho chamado "Os Anarquistas no Banco dos Réus". Alguns detalhes eu não conto, porque seria um pouco perigoso, mas na maior parte das coisas, ali se conta o que aconteceu. Entrou a corrupção no meio. Eu acabei corrompendo dois oficiais, chefes do inquérito - porque naquela época eu tinha uma firma, com mais dois, mas eu é que tinha, mais ou menos, a gerência daquilo - e tinha um certo relacionamento, um certo prestígio, e consegui retirar do processo parte das coisas. Na noite de Natal de 1959 eu fui ao quartel de Aeronáutica onde decorria o processo, com o próprio chefe do inquérito, para retirar o meu livro (que ainda era original, nessa ocasião) "Nacionalismo e Cultura Social" e que fazia parte desse processo, e uns filmes - que nós tínhamos filmado vários congressos -, e assim pudemos aliviar um pouco a carga que pesava sobre os militantes do Centro José Oiticica e acabamos por ser todos absolvidos. Em São Paulo existia também um centro social com muita actividade, muito mais do que agora, e existia a chácara onde se realizavam os congressos. Com o problema da prisão dos militantes no Rio, o pessoal de São Paulo resolveu entregar a sala e passar a reunir-se unicamente na chácara, que era um local mais afastado. Então, o movimento, ali, funcionou clandestinamente. Mas os anarquistas do Brasil conseguiram então influenciar de tal maneira os intelectuais das novas gerações que, há pouco tempo atrás eu assisti a uma palestra, no Rio de Janeiro, do Maurício Tragtemberg, que revelou estarem a defender-se cerca de 180 teses de doutoramento referentes a temas anarquistas, e isso parece-me que não há nenhum país, mesmo em que o movimento anarquista já tivesse tido mais pujança, que num período tão curto, tivesse tantas teses universitárias sobre temas anarquistas. E hoje, sinceramente, e fazendo a coisa por baixo, há mais de 300 títulos de livros publicados sobre anarquismo, as lutas sociais, alguns às vezes um pouco desfocados, um pouco distorcidos em alguns temas, porque são pessoas que não são anarquistas e foram ali colher material. Então, durante a ditadura militar e a partir daí, o anarquismo, como movimento, caiu, e caiu verticalmente, mas como propaganda a nível intelectual, ele cresceu astronomicamente, porque nunca se publicaram tantos livros anarquistas, como neste período, desde a ditadura militar.

A influência dos anarquistas portugueses

Em tudo o que está a contar - também porque é português - existe uma relação com portugueses. Há figuras emblemáticas de portugueses no Brasil, durante os anos 20 ou 30, que considere importantes e tivessem mantido uma relação com o movimento anarquista em Portugal?

Os portugueses tiveram uma influência muito grande. O primeiro português que teve influência significativa no movimento operário, mais em particular no movimento socialista, da escola de Fourier, já pela data de 1898, foi Agostinho Guedes, lá no Rio Grande do Sul, que criou um jornal intitulado "Echo Operário" - e ali colaboravam anarquistas italianos, portugueses (de Portugal e do Brasil) e alguns socialistas (inclusive Guerra Junqueiro, Maia Garção e outros). Esse homem desenvolveu, quase a nível de todo o Brasil, um socialismo um tanto libertário naquele jornal, que durou cerca de uns 10 anos.

A um nível anarquista, a pessoa que teve maior projecção foi o Neno Vasco, que chegou a São Paulo no começo do século, e principiou a organizar os anarquistas portugueses. Ele não era uma pessoa de tomar a palavra, de fazer discursos, mas escrevia bem e era activo. E começou a publicar, logo em 1902, o jornal semanário "O Amigo do Povo". Havia muitos italianos a chegar ao Brasil nessa altura e, então, uma página era publicada em Italiano. Em 1907, ele lançou um novo jornal, porque "O Amigo do Povo" [atravessava dificuldades, já que] tinha sido várias vezes apreendido. E nesse jornal, ele defendeu uma tese sobre a renovação da literatura portuguesa no Brasil, o que criou uma polémica tremenda junto dos académicos brasileiros. Ele escreveu artigos preciosos sobre a Literatura e sobre a Língua Portuguesa e mexeu com toda a intelectualidade daquela época, a tal ponto, que quando ocorreu a Revolução Russa de 1905, o próprio Neno Vasco e uma série de intelectuais brasileiros criaram um movimento a favor dos revolucionários russos. Existe até uma carta do próprio Kropotkine mencionando esse dinheiro que arrecadaram no Brasil. Neno Vasco conseguiu juntar à volta dele alguns brasileiros [que se notabilizaram], como Edgar Leuenroth, mas, entre eles havia também um português, vindo do Porto, que era comerciante, chamado Adelino Tavares de Pinho, sujeito inteligentíssimo, que acabou por aderir ao movimento anarquista e perder tudo com a propaganda, pois tinha por lá umas lojitas. E quando morreu era professor da Escola Moderna, de que foi um dos primeiros introdutores no Brasil. [Este é apenas um exemplo, pois] a partir do Neno Vasco, em São Paulo, surgiu uma série de militantes anarquistas portugueses, e isso alargou-se a outros Estados. Um dos anarquistas mais influentes foi o Marques da Costa. Ele lançou um jornal chamado "O Trabalho", que teve uma certa repercussão e o obrigou a ter de fugir para Manaus, depois de ter estado preso por uns dias. Logo a seguir, apareceu com um novo jornal, chamado "Despertar", começou a fazer propaganda e iniciou outros portugueses, como Manuel Cunha. Depois desse problema, em 1919, Marques da Costa veio para o Rio de Janeiro. Inicialmente teve uma coluna sua no diário "A Vanguarda", depois n"A Pátria", jornais com muita repercussão no Rio de Janeiro e noutros Estados, e isso atingiu uma quantidade de intelectuais, não só porque ele escrevia muito bem, mas também pelas notícias que ele incluía na sua coluna, entrevistas, colaborações, com o Oiticica e outros militantes anarquistas de muita projecção. E isso fez com que o Marques da Costa conseguisse, através desse jornal, tornar-se uma pessoa também muito conhecida da polícia e, por isso, muito vigiado, a ponto de, em 1925, num congresso de comemoração do 1º de Maio, que se realizou na Praça Moá, no Rio de Janeiro, os trabalhadores formaram um palanque aonde foram falar vários trabalhadores, mas dois foram proibidos pela polícia de falar; um deles era o Marques da Costa. Então o Marques da Costa ficou ali por perto - naquela época ele era relativamente novo -, os outros foram falando e, então, quando chegou a vez dele de falar, deu um salto para cima do palanque, com a Praça Moá apinhada de gente e disse: «Apesar da polícia me proibir de falar, eu vou falar, e fez um discurso tremendo; a polícia tentou alcançá-lo, mas a multidão era tanta que o Marques da Costa acabou por concluir o seu discurso muito acalorado. Em seguida saiu, não foi logo para casa, deu umas voltas pelo Rio de Janeiro, a polícia sempre vigiando, mas no dia seguinte prenderam-no e mandaram-no logo para Lisboa.

Além do Marques da Costa, sobressaíram uma série de outros militantes, como Diamantino Augusto, Amílcar dos Santos, Raúl Pereira dos Santos (este era de Lisboa), José Romero - que nasceu em Espanha, mas que veio de lá logo com 2 anos de idade -, que foi expulso para Espanha, mas como não sabia nem sequer falar Espanhol, acabou por não se adaptar, também por causa do clima, e voltou para Portugal e lá fez parte da CGT, trabalhou como jornalista n "A Batalha" e acabou por fugir para o Brasil no começo de 1926, logo quando a ditadura [foi imposta]). E então, como trazia toda uma gama de conhecimentos adquiridos em Portugal, ele foi um grande militante também no Brasil. Além desse, eu colhi os nomes, só no Rio de Janeiro, de mais de 200 militantes portugueses, alguns que já vieram anarquistas de Portugal e outros que se fizeram anarquistas, como aconteceu também com alguns espanhóis e italianos que tomaram no Brasil conhecimento com o anarquismo, também porque eram operários, tinham problemas sociais, contactaram o sindicato - é o caso do barbeiro Amílcar dos Santos, de que já falei: ele chegou, leu num jornal alguma coisa sobre a classe dos barbeiros, interessou-se, foi à União dos Barbeiros, como se chamava na época, assistiu a uma palestra e ficou admirado como os trabalhadores conseguiam falar tão bem e ter tanta cultura social, e acabou por se tornar um verdadeiro militante; escrevia muito bem, inclusive escreveu umas memórias que não conseguiu publicar e de que muitos episódios estão, até, em meu poder.

E o Sindicato da Construção Civil no Rio de J.?

O Sindicato da Construção Civil, foi, podemos dizer, o esteio do movimento anarco-sindicalista no Rio de Janeiro, porque criou na sua sede, que era na Rua Barão de S. Félix, nº 119, um centro de cultura, criou um grupo de teatro social, criou uma orquestra - que aqui se chamaria uma banda de música -, tudo com anarquistas (e a maioria eram portugueses); um sapateiro português fazia parte e foi maestro dessa orquestra, chamado António Correia; outro português que também fez parte desse movimento, no teatro social, foi Manuel Lopes, que morreu com 98 anos. Todas as semanas ali realizavam uma conferência sobre anarquismo. Além disso, tiveram o que se chamava a escola de militantes (o que também existiu em Portugal), em que eles treinavam os militantes para falar em público, no 1º de Maio, nas datas históricas, e onde ensinavam também a escrever. Por exemplo, o Fábio Luz deu lá aulas. Ele, que era médico, mesmo assim conseguiu passar fome, porque no consultório dele, as pessoas que iam à consulta e não tinham dinheiro para pagar, ele não só não cobrava, como ainda dava dinheiro para comprar remédios. Então, o que é que ele fez? Foi para professor no Pedro II e era com o salário de professor que ele vivia, e o trabalho médico dele era para dar consultas de graça. Fábio Luz deu no Sindicato da Construção Civil aulas de Italiano, Português e Espanhol e fizeram-se assim militantes valorosíssimos. A maior parte destes militantes do Sindicato foi morrer no Oiapoque, inclusive um português chamado Pedro Carneiro, de que eu incluí, num dos meus livros uma memória manuscrita sua, muito bem feita, onde descreve toda a trajectória da sua deportação, o tempo que andou lá pelos alagados do Brasil. Esse sindicato foi o que mais resistiu à influência dos comunistas. Depois da Rua Barão de S. Félix, ele conseguiu ter uma sede na Praça da República e alugar um prédio de quatro andares, e ali organizaram todas as associações operárias, grupos de teatro, grupos de música, e conseguiram nesse prédio, que é, salvo erro, no nº 16 ou 17 - ainda existe esse prédio, que eu já fotografei mais do que uma vez -, levar esse movimento até ao Getúlio Vargas fechar as organizações operárias livres para formar os sindicatos verticais - os chamados sindicatos fascistas brasileiros. Eu creio que os portugueses tiveram aí, nesse sindicato, uma importância muito grande.

A luta contra o fascismo em Portugal

Nos livros e artigos, vários, há um denominador comum, uma posição de luta, no Brasil, contra a ditadura instalada em Portugal, de Salazar e Caetano. Como é que viu essa conjugação de esforços no sentido de derrubar a ditadura aqui em Portugal?

Isso também tem a ver com os próprios portugueses refugiados. Quando eu cheguei ao Brasil, levava muitas anotações, jornais, recortes, o que eu pude juntar aqui, na clandestinidade. E o meu propósito inicial era o de denunciar a ditadura portuguesa, denunciar a situação dos companheiros que estavam presos, deportados no Tarrafal, nas outras prisões, os que tinham sido mortos, enfim o mal que a PIDE vinha fazendo. E assim como eu, chegaram outros, como Manuel António Vinhais, que teve uma grande participação no movimento anarquista, em São Paulo, e que no jornal "A Plebe" denunciou bastante a situação. Os anarquistas portugueses, ao chegar ao Brasil, no Rio e em São Paulo, sobretudo, envolveram-se no movimento anarquista local, mas não esqueceram os companheiros que deixaram presos por aqui. E fizeram essa denúncia. Certos anarquistas brasileiros, principalmente o Oiticica, demonstraram um interesse imenso em conhecer as coisas que estavam a acontecer em Portugal, ao contrário de outros brasileiros, anarquistas também, que nunca se preocuparam muito, alguns até oferecendo uma certa resistência em publicar artigos nos jornais anarquistas sobre a luta [contra a ditadura], em Portugal. Mas o Oiticica sempre se interessou. Tanto que eu, que não pretendia fazê-lo inicialmente - a minha pretensão era escrever um livrinho, que depois vim a publicar -, comecei a escrever no "Ação Direta" uma série de pequenos artigos chamados "No Paraíso de Salazar", que saíram sucessivamente, com ilustrações mostrando presos políticos portugueses, falando do Tarrafal, da situação de alguns militantes, etc.. E mandava depois essas notícias, e outras para jornais na Argentina, no Uruguai, na França, na Costa Rica - onde tinha um amigo cubano refugiado, um advogado, que aí havia iniciado a publicação de um jornal ("El Sol"), no qual eu publiquei uma quantidade de coisas.

Outros fizeram também a mesma coisa. E havia, paralelamente a esse trabalhos de denúncia dos anarquistas, que não era uma denúncia em separado do movimento anarquista, era uma denúncia inserida no movimento, porque nos preocupávamos com os anarquistas e anarco-sindicalistas portugueses presos e deportados e com as organizações que haviam desaparecido. E havia um relacionamento, uma troca de correspondência com os companheiros portugueses, aqueles que tinham coragem de fazer isso. Bom!… De repente, surgiu em São Paulo um grupo de democratas, alguns exilados, outros que tinham ido para ali como emigrantes mas que eram anti-fascistas, e iniciaram a publicação de um jornal chamado "O Portugal Democrático". E aí havia duas correntes, havia alguns comunistas, do Partido Comunista Português, que começaram a puxar para o lado da Rússia, e os outros, que eram mais democratas, defendiam uma posição independente anti-fascista. Com isso, acabou "O Portugal Democrático". E os democratas passaram a publicar "A Semana Portuguesa". Eu colaborei, também, nesse jornal, com alguns artigos anti-fascistas denunciado a ditadura.

Quando os políticos portugueses começaram a pedir asilo político nas embaixadas, nós aliciámos os anarquistas brasileiros, na sua quase totalidade, para uma campanha a favor do direito de asilo político a quem quer que fosse, ao sujeito [anónimo], ao democrata, ao militar… Naquela época, o Delgado já era um dos refugiados na Embaixada, o Galvão também - mas havia outras pessoas que não eram militares -, e fizemos discursos, campanhas, na União Nacional dos Estudantes do Rio de Janeiro, na de São Paulo, na Bahia, fez-se palestras em vários lugares, deu-se entrevistas aos jornais diários, criámos um movimento de oposição e acabamos por conseguir fazer um congresso latino-americano em São Paulo, com anti-fascistas portugueses e espanhóis, e aí estavam integrados homens da CNT, alguns exilados em São Paulo e outros que vieram da América Latina. Foi um movimento bastante forte, e acabou por fazer com que o governo brasileiro (do Juscelino Kubitschek de Oliveira) pressionasse de tal forma o Salazar, que ele se viu obrigado a dar os vistos de saída aos exilados. Aí cresceu enormemente esse movimento de oposição, com gente que já não eram só os anarquistas. Criou-se no Rio de Janeiro uma associação chamada Associação General Humberto Delgado, quando ele ainda estava refugiado na Embaixada, em Lisboa. Essa associação começou com alguns intelectuais portugueses, alguns brasileiros também - uma das pessoas que participou muito nisso foi um embaixador que estava em Portugal na época, o Álvaro Lins, um intelectual bastante conhecido, que se apaixonou por aquilo e acabou, inclusivamente por deixar o governo de Juscelino, porque achou que este não tomou a atitude mais enérgica em relação ao direito de asilo dos portugueses. Nesse compasso de tempo, surgiu o [caso do] "Santa Maria". E os portugueses continuaram com aquele movimento e ele cresceu tanto que se não fosse isso, aquela gente tinha sido toda entregue à PIDE, o "Santa Maria" acabava por vir para Portugal com o Galvão e todo aquele pessoal, os espanhóis e os portugueses - e os espanhóis certamente acabariam por ir parar ao garrote vil…

À parte disso, ocorreram muitos factos curiosos: aí envolvemos o Centro José Oiticica, o Centro de Cultura Social de São Paulo, a chácara que, depois, serviu de abrigo aos refugiados sequestradores do "Santa Maria" e houve algumas pessoas desse grupo que depois acabaram por ir trabalhar para os diários "Folha de São Paulo" e "O Estado de São Paulo". E as coisas foram-se abrindo. Os anarquistas nunca estiveram muito ligados com os políticos, mas participavam, às vezes, em conjunto. Por exemplo, o Centro de Estudos José Oiticica, numa época em que teve como presidente um professor do Pedro II, um catedrático, Serafim Porto, que era filho de portugueses, conseguiu sensibilizar os estudantes do Secundário brasileiros, e faziam semanalmente um comício dentro da própria sede da União Nacional dos Estudantes, que era na praia do Flamengo, ali no coração do Rio de Janeiro. E apareciam os jornais diários, colavam-se cartazes de parede, com recortes de denúncias sobre os presos políticos, etc.. E a Associação General Humberto Delgado, que tinha nascido naquela época, também participou nesses comícios, embora sem nenhum vínculo de ideias. Eles continuavam a fazer a propaganda política deles sobre o direito de asilo, etc..

A actividade dos anarquistas foi mais no sentido de libertar os anarquistas portugueses presos e de conseguir ajudar a derrubar a ditadura, nunca se comprometeu muito com o movimento político.

O futuro do anarquismo no Brasil

,Mas depois de tudo o que já disse, de tudo o que já viveu, quais são as potencialidades do movimento social, em geral, e do movimento anarquista no Brasil?

Eu estou um pouco céptico em relação ao movimento anarquista no Brasil. E por uma razão simples - aliás parece-me que esse mesmo fenómeno está a acontecer aqui -, é que existem dezenas, poderia até dizer uma centena ou mais de grupos anarquistas, de grupos de jovens que se dizem anarquistas, mas são movimentos que duram pouco; forma-se um grupo, começam a publicar um boletinzinho, fazem lá uns desenhos, uns macaquinhos, põem por baixo umas frases, alguns confundem anarquismo com comunismo - há pouco tempo atrás recebi até um prospecto bem feitinho graficamente, que trazia uma bandeira preta e vermelha e dum lado, da parte preta, trazia o A do anarquismo e na parte vermelha a foice e o martelo do comunismo; há, portanto, uma confusão tremenda na juventude, uns mais esclarecidos, outros menos, e eu vejo isso com grande preocupação. No fim da ditadura de Getúlio Vargas e no fim da ditadura militar, no começo, foi possível reunir - porque ainda existiam algumas pessoas velhas - os velhos e os novos que foram surgindo naquela época, e publicar jornais com algum conteúdo anarquista, jornais que faziam propaganda, que chegavam aos meios intelectuais, que fizeram com que os professores e outros intelectuais fossem buscar matéria-prima para as suas teses de doutoramento, mas actualmente, este pessoal mais jovem, está a fazer uma confusão desgraçada, que me parece que é muito mais negativa para o anarquismo.

A minha esperança, por outro lado - tenho uma grande esperança no reflorescimento do anarquismo no Brasil - vem dessa grande quantidade de livros que se publicaram, alguns até em segunda, terceira e quarta edição, e que foram por lá distribuídos, vendidos, chegados às universidades, às bibliotecas, e que ninguém queimou. Esses livros existem lá no Brasil, em grande quantidade, e hoje, amanhã, daqui a meio ano, daqui a um ano, daqui a meio século, alguém vai acabar por ler esses livros e acabar por fazer propaganda do anarquismo. O anarquismo vai voltar a florescer com gente mais madura; ou, na melhor das hipóteses, talvez alguns destes jovens acabem por amadurecer. Há esforços importantes em Santa Catarina (mas com dificuldade), em São Paulo (aqui com uma dificuldade tremenda). Tenho fé que os livros que estão por lá espalhados, nas bibliotecas, cheguem a sensibilizar gente, e [surja alguém] dos intelectuais que defenderam teses de doutoramento - alguns chegaram a dizer-se anarquistas, em palestras que fizeram no Centro de Cultura Social de São Paulo. Mas, concretamente, militando no movimento, não conheço nenhum. Por isso, vamos ver. Eu tenho as minhas preocupações, estou um pouco céptico, porque quando a gente começa a ficar velho, talvez também seja um pouco mais impertinente quando começamos a ver que os novos não fazem aquilo que a gente gostaria que eles fizessem. Não é que eles devessem fazer como nós, porque cada pessoa é uma individualidade, cada um faz as coisas a seu modo, a época hoje é diferente. Antigamente, um jornalzinho fazia­se à base de um linótipo, hoje faz-se até por computador, há outros processos muito mais rápidos, as coisas mudaram.

E também a interpretação de uma série de factores. A ecologia entrou muito no meio do anarquismo, principalmente no Brasil, porque há uma certa preocupação com a preservação da Natureza, uma coisa que os anarquistas, no passado, não tiveram assim tanta preocupação, porque havia muita mata e pouca gente e hoje existe muita gente e a mata está a queimar-se. De forma que estou bastante preocupado com isso. Vamos ver se ainda surge, antes de eu morrer, alguém para tomar conta das coisas, porque de momento não vejo isso.

Revista Utopia #5 (Portugal)