Durante
a sua mais recente estadia em Portugal, tivemos ocasião de conversar
com Edgar Rodrigues e ouvir dele imensas histórias da actividade do
movimento anarquista brasileiro - movimento em que ele participou
desde a sua chegada ao Brasil, nos anos 50 - e da sua longa História
e antecedentes, à qual ele dedicou anos e anos de um estudo meticuloso
e incansável. Esta entrevista revela um pouco da importância social
que o movimento anarquista atingiu no Brasil, aflora algumas razões
do seu declínio e aborda as suas expectativas de ressurgimento.
Entrevista
conduzida por José Maria Carvalho Ferreira
UTOPIA
- Como foi que começou a escrever, como é que deu início a uma obra
tão vasta, de dezenas de livros publicados, sobretudo em Portugal
e no Brasil, sobre a questão social?
Edgar
Rodrigues - Aqui em Portugal, eu ia juntando papéis. Assim, quando
fui para o Brasil, levava metade do livro "Na Inquisição do Salazar"
já rascunhada. Ao chegar, encontrei liberdade, encontrei companheiros
muito cultos, com muita projecção na vida brasileira, como o José
Oiticica, e tive oportunidade de assistir a reuniões da "Ação Direta".
Aí surgiu a ideia de começar a escrever para os jornais, antes [ainda
da publicação] do livro, a contar alguma coisa da ditadura portuguesa.
E uma coisa que eu notei é que no Brasil não existia nenhum livro
de História sobre a questão social, apenas algumas obras romanceadas.
Por exemplo, Fábio Luz tinha publicado, em 1903, uma novela chamada
"Emancipação", que era uma obra anarquista. Depois, publicou, a seguir,
uma outra, e existiam umas poucas obras também com carácter social,
mas fora isso, não existia mais nada. Então, como achei aquilo um
absurdo, comecei a juntar não só coisas de Portugal como também do
Brasil. E um dia mandei um artigozinho denunciando a morte do Arnaldo
Simões Januário no Tarrafal. Era uma pessoa da qual eu tinha bastantes
dados; mandei-o para um jornal do Uruguai, chamado "Volontá". E eles
receberam-no, publicaram-no e escreveram-me uma cartinha pedindo-me
para eu fazer uma série de trabalhos que demonstrasse como se desenvolvia
o movimento anarquista no Brasil. E porque o fizeram? Porque ignoravam
que eu não era brasileiro. Eles admitiam, pelos dados que eu lhes
estava ali a adiantar, que eu seria um militante já antigo, e eu,
com a vaidade do jovem que pretende intervir nas coisas, também não
disse que não conhecia. Então, principiei a escrever. E cheguei a
cinquenta artigos, com o título "A Questão Social no Brasil" (subsídios
para a história do movimento operário), e isto foi evoluindo assim,
até que a certo ponto, um companheiro de São Paulo me disse: «Mas
isto dá um livro!». Isto é, eu fui assim, digamos, empurrando as coisas,
fazendo uns trabalhos, sem nenhum plano, sem nenhuma ordem, às vezes
nem sequer cronológica, inclusive usando documentos que, mais tarde,
vinha a perceber que eu próprio já tinha comigo coisa melhor [mas
já não tinha, entretanto, meios de os usar antes de publicação].
Nos livros que já publicou, sempre foi dada muita
importância às lutas sociais, às greves travadas pelo movimento social
no Brasil e em Portugal, quer inclusive ao aspecto comunitário, autogestionário
dessas batalhas. Qual a importância das lutas que começa a descrever,
logo a partir do século XVII, e inclusivamente qual a importância
da colónia Cecília? Porque é que dá uma importância tão especial a
esses episódios nos seus livros sobre a questão social?
Bom, eu
comecei a escrever sobre ocorrências vindas até de mais longe. Porque
no primeiro livro que dediquei a essa questão, e que se chama "Socialismo
e Sindicalismo no Brasil", eu o iniciei pelas lutas dos escravos.
Porque não concebo que o trabalhador negro, que foi para o Brasil
como escravo, não fosse considerado trabalhador. Todos os livros escritos
no Brasil até aquela época não incluíam as lutas dos escravos entre
as dos trabalhadores, apesar de, desde o meu livro, se terem feito
já muitas abordagens nesse sentido. Eu achava que o escravo foi para
o Brasil para trabalhar, não foi especificamente para ser escravo,
foi uma forma que encontraram para o obrigar a trabalhar, pela comida
e pela roupa. Foi então por aí que eu comecei, pelos chamados quilombos.
E dei grande destaque ao quilombo de Palmares, por muitas razões:
porque foi uma comunidade que conseguiu reunir 20 mil pessoas, que
durou quase um século, derrotou o exército brasileiro 17 vezes, e
sobreviveu sozinho sem leis, sem Estado e sem religião. Eles tinham
lá as místicas deles, é verdade, mas conseguiram viver sem dinheiro,
fabricavam a sua própria roupa, plantavam, colhiam e fiavam algodão,
e conseguiram criar uma verdadeira comunidade socialista libertária.
Eu, naturalmente,
abordei profundamente esses aspectos, e então, foi por aí que comecei,
em 1673. A partir dessa altura, fui acompanhando todas as comunidades
de trabalhadores negros e de toda a gente que tinha ideias [de emancipação
social] e que veio depois, como a comunidade do Said, de Santa Catarina,
que foi antes da colónia Cecília, e depois a própria colónia Cecília
e os primórdios da propaganda num sentido político-social. Os imigrantes
que vieram de Itália, uns poucos de Portugal, outros de Espanha, começaram
a publicar pequenos jornais também falando dessas ideias. Quer dizer,
eu percorri esse trajecto até chegar, naturalmente, ao sindicalismo,
tal como ele se veio a apresentar já na última década do século XIX.
A colónia
Cecília foi uma experiência anarquista, especificamente, ao contrário
do quilombo de Palmares, que era anarquista, mas onde não havia uma
consciência disso. À parte desse aspecto cooperativo, houve um facto
curioso e importante, é que o Zumbi, talvez o homem que mais se evidenciou
no quilombo de Palmares, foi o primeiro sujeito que tentou criar um
país, atingir uma comunidade independente, antecipando-se assim a
Tiradentes, a figura central da luta pela independência do Brasil,
em mais de dois séculos. Ora, isso, para mim, é uma coisa muito importante.
Os ex-escravos formaram uma comunidade muito grande em território,
que seria, geograficamente, quase do tamanho de Portugal. Essa experiência
socialista libertária, mesmo na ausência duma consciência assumida
dessa ideia, realizou coisas interessantíssimas. Eles travaram, continuamente,
uma luta contra a escravatura. Através duma produção maciça de alimentos,
que conseguiam escoar e vender nos mercados no sul do Brasil, no Paraná,
no norte, em Pernambuco, e noutras regiões a que chegavam, financiavam
as fugas do campo. Estabeleceram uma luta contra os fazendeiros, quer
económica, porque faziam concorrência com os seus produtos nos mercados,
quer social, porque organizavam a fuga dos escravos. No começo, os
fugitivos eram quase só homens e não havia portanto mulheres no quilombo,
por isso nem procriação, nem prática sexual. Eles tiveram, então,
de patrocinar as fugas, e fizeram-no até ao ponto de terem atingido
uma família de 20 mil pessoas.
A colónia
Cecília surgiu em 1894, ali no desabrochar da República do Brasil.
Teve os seus percalços mas também teve coisas muito interessantes.
É bastante difícil, em números, falar, de memória, de coisas que eles
fizeram, mas deixou uma obra de grande importância, até porque parte
das pessoas que viveram na colónia Cecília, quando não tiveram condições
de viver lá mais, pois a polícia ia prendê-las, fugiram para o Paraná
e aí deram início à publicação de vários jornais anarquistas; um dos
primeiros jornais publicados no Paraná chamava-se "O Despertar", e
teve como director o Giggio Damiani, que depois, em 1919, acabou por
ser expulso de São Paulo, e tornou-se, com o decorrer do tempo, num
grande jornalista; era também pintor de cenários para teatro; "O Despertar"
era publicado semanalmente, em Português, com parte em Italiano; esses
anarquistas, vindos da colónia Cecília, conseguiram também fundar
a Federação Operária e realizar o I Congresso logo em 1907…
Justamente! Uma terceira
pergunta vem na calha do que está a dizer agora. No princípio do século,
até aos anos 20-30, em termos de movimento operário, em termos da
luta social, da criação do que podemos dizer uma escola emancipalista,
como é que vê toda a influência anarquista, ou libertária, nesse processo?
Ora, ela
teve algumas facetas curiosas, alguns pontos altos e também alguns
pontos baixos. É preciso considerar que o Brasil era um país de imigrados
e esse facto prejudicou muito o movimento anarquista no Brasil. Por
ali passaram imigrantes vindos de muitos países e alguns dos que agitaram
e semearam mais ideias, mas por razões de falta de documentação e
pela sua posição ideológica, acabaram por ser expulsos, ou tiveram
que fugir, foram presos, deportados, etc.. E essa mudança fazia com
que, quando existia um núcleo aqui, que estava a fazer um movimento
bonito, a espalhar as ideias, de repente vinha a polícia, mandava-os
embora e aquilo morria. Depois surgia um outro ali, recomeçava de
novo… Quer dizer, houve vários inícios, porque o anarquista brasileiro,
nessa época, em 1920, era uma minoria; a maioria dos militantes eram
estrangeiros, eram italianos, portugueses, espanhóis, havia também
alguns franceses, houve alguns russos (mas poucos), argentinos, uruguaios
e paraguaios, mas esses eram também meio emigrantes, que fugiam para
o Brasil quando lá sofriam perseguição, mas depois, quando as coisas
se acalmavam, retornavam. E com essa história, naturalmente, o movimento
sofreu altos e baixos. Até 1920, o Brasil chegou a ter quatro jornais
anarquistas diários, em períodos diferentes. Mas todos esses jornais
morreram pelas mesmas razões. Alguns tinham brasileiros como directores
- outros nem brasileiros eram (houve muitos italianos) -, mas por
vezes eram presos e roubavam-lhes as máquinas. E acontecia isso, porque
se tinha criado, em 1907, a chamada lei Adolfo Gordo, do nome de um
deputado, fazendeiro paulista, também formado em Direito, que foi
eleito deputado várias vezes (para defender o capitalismo); e ele
elaborou uma lei, que tinha apenas quatro artigos, cujo objectivo
era prender ou expulsar todo o estrangeiro que falasse de anarquismo,
anarco-sindicalismo, de greves; não era preciso participar, bastava
falar ou escrever sobre isso. Não havia julgamentos, sequer. Posteriormente,
houve muitos protestos, de Portugal, de Itália, da Espanha, de França,
que choveram no Brasil, e foram então obrigados a alterar essa lei.
O próprio Adolfo Gordo foi chamado para redigir mais uns artigozinhos,
e então passaram a estabelecer a obrigação de julgar as pessoas antes
de expulsá-las. Mas a polícia, como o Brasil é muito grande, fazia
assim: por exemplo, ela prendia em Santos um sujeito, e quando chegava
lá a ordem de julgamento, ele já não estava lá, mas preso no Rio de
Janeiro, que já era outro Estado; se naquele tempo, um cidadão tivesse
um problema num Estado, transferia-se para outro e naquele Estado
o processo ficava sem efeito, porque como o Brasil era um país federativo,
então regia-se quase como os Estados Unidos. Então aconteceram casos
curiosos. Por exemplo, numa das comunidades de que eu também falei
[nos meus livros], a comunidade de Guararema, que foi também fundada
por um italiano, Artur Campagnol, houve uma dificuldade imensa de
prosperar, porque eles prenderam Campagnol várias vezes, uma vez em
1894, juntamente com mais seis pessoas (dois socialistas e o resto
anarquistas - um espanhol, um brasileiro e os outros italianos) e
resolveram mandá-los para o Rio de Janeiro; foram presos em São Paulo,
numa rua chamada Libero Badaró, um dos primeiros revolucionários italianos
que foi para o Brasil, e foi morto a tiro, em São Paulo, logo no começo
do século, porque fazia muita agitação; então deram o nome dele a
essa rua, e precisamente no seu número 110 reuniam-se um grupo de
italianos e espanhóis para comemorar, pela primeira vez, o 1º de Maio
no Brasil. Prenderam esses cidadãos porque o Consulado italiano soube
dessa comemoração e a comunicou à polícia. Esta trouxe alguns dos
militantes para a Prisão Central do Rio de Janeiro; o Artur Campagnol,
que eles consideravam o cérebro, pela sua actividade na comunidade
de Guararema, foi levado para Santos para o jogarem nos porões de
um navio, porque era assim que a polícia fazia, levava de noite os
presos, enfiavam-nos num cargueiro, e mandavam-nos embora; mas no
caminho, ele meteu conversa com os agentes que o levavam, se eles
gostavam de ir à praia, se nadavam muito, etc., e foi conversando
com eles, que a certa altura soube que não sabiam nadar. Quando chegou
perto do cais do porto onde havia de ser embarcado - naquele tempo
ainda não existia o cais tal como ele existe hoje, em que isso seria
mais difícil -, ele, ao sentir que os policiais se descuidaram um
pouquinho, atirou-se ao mar, mergulhou, andou lá por baixo por trás
dos muitos barcos miúdos, escondendo-se - já era perto da noite -,
e no dia seguinte, de manhã, foi para casa de uns companheiros, voltou,
e acabou por morrer [muito depois] em São Paulo, em 1944. Ora durante
o governo paulista - que quem o estava a condenar era o governo do
Estado de São Paulo - ele não pôde ir mais à comunidade, que continuou
por lá, meio atrapalhada, meio funcionando. E só depois que mudou
o governo é que ele apareceu de novo, porque como não havia processo
(ele estava a ser expulso sem processo), no governo seguinte já não
tinham por que prendê-lo. Mas depois, ainda foi preso duas ou três
vezes. De maneira geral, acontecia isto. Portanto, a participação
dos anarquistas foi muito intensa mas teve altos e baixos. Apesar
disso, teve uma influência muito grande e não foi só nas comunidades.
Quem primeiro introduziu a questão social no romance, na literatura,
foram os anarquistas, e até hoje, existem alguns romances, a partir
do começo do século, que têm todas as características do anarquismo,
ao ponto de chegarmos agora, a uma época mais recente, sem uma grande
organização anarquista, mas em que [mesmo assim], se realizaram vários
filmes anarquistas, de curta metragem, como "O Sonho Não Acabou",
"Libertários" e "Sacco e Vanzetti", sendo este último feito parte
fora, mas em parte, também no Brasil, e principalmente "A Colónia
Cecília", um filme de longa metragem, feito por um realizador francês
mas cujas filmagens decorreram no Paraná.
O
impacto do triunfo soviético
Diz-se que com a Revolução
Russa e o surgimento do Partido Comunista no Brasil, também aí os
anarquistas perderam o seu impacto na revolução social e nos trabalhadores.
Acha que isso é verdade ou não, e o que é que se fez a partir daí,
como é os anarquistas se organizaram, em termos de centros, jornais,
sindicatos, etc.?
Muitas
pessoas tentam interpretar as coisas dessa maneira. Num dos meus livros
mais recentes, eu tentei explicar as razões do enfraquecimento do
movimento libertário no Brasil. Uma delas foi, realmente, a expulsão
dos anarquistas. Para se ter uma ideia, eu consegui chegar, em números
aproximados, a cerca de mil militantes expulsos, dos mais destacados
que o movimento anarquista teve; isto num período mais ou menos de
15 a 20 anos, desde o começo do século, até cerca de 1920. Bom, este
é um aspecto. Outro aspecto foi o problema colocado pelos presidentes
do Brasil, Epitácio Pessoa, que governou até 1922 (de 18 a 22) e Artur
Bernardes, que governou de 1922 a 1926. E porquê estes dois? Porque
foram estes homens que aperfeiçoaram a lei de expulsão, e o Artur
Bernardes principalmente, porque criou um campo de concentração -
e pouca gente fala nisso - que se chamou o Campo de Concentração de
Oiapoque, que é lá na fronteira do Brasil com a Guiana francesa, e
para ali ele mandou uma grande parte dos militantes anarquistas mais
destacados, inclusive, o director da "Plebe", de São Paulo, Augusto
Mota, um militante muito culto, e ali quase todos morreram. Durante
os quatro anos de Artur Bernardes (que eu por vezes até chamo o reinado
de Artur Bernardes), o Brasil funcionou em estado de sítio. Ele prorrogou-o
indefinidamente, não apenas pelos anarquistas, mas porque, logo em
1922, por altura da tomada de posse, houve uma revolução, a chamada
Revolução do Forte de Copacabana, em que jovens militares discordantes
já do regime anterior, acabaram por fazer um movimento e foram presos;
isso aparece na História do Brasil como "os 19 do Forte de Copacabana";
já nessa ocasião, o governo aproveitou para bombardear, com peças
de artilharia, o Sindicato da Construção Civil, que era o mais forte
naquela época, no Rio de Janeiro. Em seguida, em 1924, houve a chamada
Revolta dos Tenentes, que era outro grupo de militares, que acabando
por discordar do regime, também se revoltou. Com estas duas revoltas,
Artur Bernardes aproveitou para criar o campo de concentração e então
mandou para lá anarquistas, prostitutas e os militares rebeldes. Ao
todo, estiveram por lá cerca de 3.400 deportados. Dos anarquistas
só saíram de lá três para contar a história, porque fugiram. Conseguiram-no
através da selva amazónica, andaram por lá meses e meses, a alimentar-se
de raízes e coisas do género. Este período de estado de sítio, deu
também ao Artur Bernardes a oportunidade de fazer o seguinte: assaltou
todas as sedes do sindicato, não só deportou os militantes mais destacados
dessa época, mas fechou também todos os sindicatos, todos os jornais
- não se pôde publicar até 1925 nenhum jornal -, expulsou o Marques
da Costa, que veio a morrer em Lisboa, e era director de um jornal,
e da Federação Operária do Rio de Janeiro. Ora, foram estes aspectos,
juntamente com a luta entre anarquistas e comunistas que aplainou
a possibilidade da ditadura de 30, que veio mais adiante um pouco
e, ao mesmo tempo, arrasou o movimento. Na minha interpretação, estas
foram as razões principais. As pessoas, por vezes atribuem essa quebra
a outras razões. Mas nessa altura, os comunistas eram 12 (!), doze
militantes, sendo um dos fundadores do Partido Comunista, um militante
que também era anarquista, homem muito inteligente, chamado Octávio
Brandão, que chamava a esse grupo "Os Doze Astrogildistas", porque
o Astrogildo Pereira é que era o cérebro daquela coisa, daquele grupo…
E desse grupo de fundadores, onze eram anarquistas e só um socialista.
No começo nem havia assim tanta distinção, como aliás aconteceu também
em Portugal. Os anarquistas e os comunistas tratavam-se de primos.
Os próprios anarquistas fizeram uma campanha para arranjar dinheiro
para ajudar os flagelados russos, em 1923, já o Partido Comunista
estava embrionariamente em construção. E não se tratava de anarquistas
duvidosos: o Oiticica, que continuou anarquista até morrer, Fábio
Luz, que era um médico muito famoso no Rio de Janeiro - inclusive
existe uma rua com o nome dele -; ora esses homens fizeram essa campanha
porque acreditavam que a Revolução Russa seria uma revolução de cunho
social; então, antes de se darem conta [do seu verdadeiro carácter],
estava tudo misturado, mas o grupo de comunistas mesmo, era muito
pequeno e não tinha força. Eu até já disse isto algumas vezes: os
comunistas ajudaram Artur Bernardes a preparar o terreno para a ditadura
de Getúlio Vargas…
Durante a ditadura
de Getúlio Vargas e a ditadura dos militares, é evidente que, quer
se queira quer não - os factos mostram-no, e aliás a História e os
seus livros demonstram-no -, os anarquistas perderam peso; ora, nesse
período, que podemos dizer que vai desde o final dos anos 20 até,
sobretudo, o final da ditadura militar, quais foram as modalidades,
os grupos, se quiser, que tentaram, mesmo assim, nesse período histórico
que é grande, remar contra a maré, ou seja, fazer avançar as ideias
e as práticas?
Eu dividiria
isso em vários períodos, o primeiro a partir de Março de 1922, quando
o Partido Comunista nasceu, e aqui eu queria referir uma coisa curiosa
sobre a fundação do Partido Comunista. Primeiro, como já disse, ele
nasceu pela mão dos anarquistas, como também nasceu em Portugal, e
o primeiro convidado a fundar o Partido foi Edgar Leuenroth. Era um
homem muito destacado, jornalista profissional, e tinha muita projecção
nos meios operários, pois falava muito bem. Foi contactado em São
Paulo, quando era director de um diário anarquista chamado "A Vanguarda
Operária". Quem o procurou foi o delegado da III Internacional para
a América Latina e os Países de Língua Portuguesa, que aparecia ali
como vendedor de casimira inglesa, e usava o pseudónimo de Ramizon
Subirov. Este cidadão levava a credencial bordada em seda vermelha
por dentro da manga do casaco, para se poder identificar. Então, o
Edgar Leuront não aceitou - e veja-se a ingenuidade -, mas passou
o contacto do Astrogildo Pereira, que também era anarquista e estava
mais afeiçoado à Rússia, para fundar esse partido. Eles acreditavam
que dali viria a revolução social…
Nesse período até 1935, quando
Getúlio Vargas amarrou totalmente a ditadura que nasceu na revolução
de Outubro de 1930 - curiosamente também em Outubro - os anarquistas
ainda publicaram o jornal anti-clerical "A Lanterna", que chegou a
sair semanalmente e, posteriormente, passou a quinzenal, criaram ligas
anti-clericais em todo o país, inclusivamente no Rio de Janeiro, faziam
palestras quase diariamente, criaram um grupo de teatro, que representou
peças revolucionárias no Rio de Janeiro e em São Paulo - houveram
diversas, talvez cerca de uns vinte ou mais -, conseguiram ainda manter
algumas escolas livres em São Paulo e fizeram ainda um Congresso,
em 1934, para remodelar a Confederação Operária brasileira, a COB.
Foi então nesse período que surgiram algumas lutas, inclusive com
mortes, entre anarquistas e comunistas, em 1927. Nesse ano, os comunistas
assassinaram um anarquista chamado Antonino Domingues, no Rio de Janeiro,
por causa da polémica da adesão à III Internacional. Eles fizeram
vários debates, durante algumas semanas, foram mudando de sindicato
para sindicato, na tentativa de convencer os trabalhadores a aderir
à Internacional Sindical Vermelha, que seria o braço sindical da III
Internacional. O movimento [anarquista] ainda continuou pujante, quer
queiram quer não as pessoas que se opõem e tentam negar isso. Mas,
a partir de 1935, o Getúlio fechou tudo; deportou, prendeu, e muitas
pessoas acabaram novamente deportadas, fuziladas, jogadas na selva
- mais de trinta anarquistas foram deixados na selva amazónica e lá
morreram, nunca mais se soube o que foi feito deles! De 30 a 45, o
movimento anarquista limitou-se ao mesmo que acontecia em Portugal,
os companheiros iam a casa deste ou daquele, reuniam-se periodicamente
e, de vez em quando, publicavam um panfletozinho, faziam uma coisa
clandestina, mas não conseguiam nada, porque também nessa altura se
declarou a Grande Guerra.
Em 1945, um pouquinho antes
de cair a ditadura, surgiu um sujeito que era anarquista já dos tempos
de 1917/18 - andava no Ceará fazendo propaganda anarquista, chamado
Moacir Caminha, e que veio para o Rio de Janeiro e aí arranjou um
financiamentozinho num negócio de corridas de cavalos, tendo lançado
um jornal anarquista intitulado "Remodelações". E editava aquilo semanalmente,
tendo provocado uma onda tremenda. Numa parte, ele anunciava as corridas
de cavalos e na outra parte fazia propaganda do anarquismo. Bom, os
velhos anarquistas que andavam por lá, uns fugidos, outros que tinham
ido para fora, foram todos atrás do Moacir Caminha, e começaram a
reunir-se. Mas o Moacir Caminha colocava o anarquismo numa posição
com que alguns não concordavam e então eles passaram a publicar o
jornal "Ação Direta". Então, no período de 1945 - um pouquinho antes
da queda da ditadura do Getúlio, que já estava enfraquecida - até
aos militares, havia um movimento bastante intenso.
Chegada
ao Brasil
Eu cheguei
ao Brasil em 50, e participei ainda em sete congressos anarquistas,
a nível nacional, inclusive com a participação de estrangeiros. Nós
tínhamos então uma propriedade que era a nossa chácara, em São Paulo,
que agora passou para outro lugar e numa área maior, e ali se reuniam
clandestinamente os companheiros do Brasil. Publicaram-se ao todo,
nessa época, 145 números do "Ação Direta". "A Plebe", criada em 1917
e que já tinha sido interrompida várias vezes, voltou a sair a partir
de 1947 e veio até 1955, mais ou menos; depois acabaram por chegar
à conclusão que o melhor era fundir "A Plebe" e "Ação Direta" para
não dispersar a actividade. E voltaram a surgir livros anarquistas,
o que não acontecia até então. Que me recorde, no Brasil tinham sido
editados "A Dor Universal", de Sebastien Faure, "O Anarquismo", de
Kropotkine, na Bahia, e mais uns dois ou três livros de autores clássicos;
dos anarquistas brasileiros, existiam umas novelas, do Fábio Luz (entretanto
falecido, em 1937) e de outros, e a coisa ficava por aí. O Oiticica
aproveitou então esse impulso e escreveu aquele livro que se chama
"A Doutrina Anarquista ao Alcance de Todos", e depois acabou até por
sair uma edição em Portugal. Desse livro publicaram-se umas seis edições.
E desde aí até à ditadura dos militares, publicaram-se cerca de quinze
a vinte livros anarquistas. Mas veio a ditadura militar em seguida.
Nós tínhamos um centro de cultura no Rio de Janeiro, que levava o
nome José Oiticica, e que era a própria sala onde o Oiticica dera
os seus cursos, e com a qual nós ficámos, de acordo com a família.
Desenvolvíamos ali uma série de actividades anarquistas, registamos
uns estatutos, etc.. Mas com a revolução dos militares, eles fecharam
aquilo, prenderam vários militantes, e 17 deles foram envolvidos num
processo na II Auditoria da Aeronáutica. Desse processo eu falo num
livrinho chamado "Os Anarquistas no Banco dos Réus". Alguns detalhes
eu não conto, porque seria um pouco perigoso, mas na maior parte das
coisas, ali se conta o que aconteceu. Entrou a corrupção no meio.
Eu acabei corrompendo dois oficiais, chefes do inquérito - porque
naquela época eu tinha uma firma, com mais dois, mas eu é que tinha,
mais ou menos, a gerência daquilo - e tinha um certo relacionamento,
um certo prestígio, e consegui retirar do processo parte das coisas.
Na noite de Natal de 1959 eu fui ao quartel de Aeronáutica onde decorria
o processo, com o próprio chefe do inquérito, para retirar o meu livro
(que ainda era original, nessa ocasião) "Nacionalismo e Cultura Social"
e que fazia parte desse processo, e uns filmes - que nós tínhamos
filmado vários congressos -, e assim pudemos aliviar um pouco a carga
que pesava sobre os militantes do Centro José Oiticica e acabamos
por ser todos absolvidos. Em São Paulo existia também um centro social
com muita actividade, muito mais do que agora, e existia a chácara
onde se realizavam os congressos. Com o problema da prisão dos militantes
no Rio, o pessoal de São Paulo resolveu entregar a sala e passar a
reunir-se unicamente na chácara, que era um local mais afastado. Então,
o movimento, ali, funcionou clandestinamente. Mas os anarquistas do
Brasil conseguiram então influenciar de tal maneira os intelectuais
das novas gerações que, há pouco tempo atrás eu assisti a uma palestra,
no Rio de Janeiro, do Maurício Tragtemberg, que revelou estarem a
defender-se cerca de 180 teses de doutoramento referentes a temas
anarquistas, e isso parece-me que não há nenhum país, mesmo em que
o movimento anarquista já tivesse tido mais pujança, que num período
tão curto, tivesse tantas teses universitárias sobre temas anarquistas.
E hoje, sinceramente, e fazendo a coisa por baixo, há mais de 300
títulos de livros publicados sobre anarquismo, as lutas sociais, alguns
às vezes um pouco desfocados, um pouco distorcidos em alguns temas,
porque são pessoas que não são anarquistas e foram ali colher material.
Então, durante a ditadura militar e a partir daí, o anarquismo, como
movimento, caiu, e caiu verticalmente, mas como propaganda a nível
intelectual, ele cresceu astronomicamente, porque nunca se publicaram
tantos livros anarquistas, como neste período, desde a ditadura militar.
A influência
dos anarquistas
portugueses
Em tudo o que está
a contar - também porque é português - existe uma relação com portugueses.
Há figuras emblemáticas de portugueses no Brasil, durante os anos
20 ou 30, que considere importantes e tivessem mantido uma relação
com o movimento anarquista em Portugal?
Os
portugueses tiveram uma influência muito grande. O primeiro português
que teve influência significativa no movimento operário, mais em particular
no movimento socialista, da escola de Fourier, já pela data de 1898,
foi Agostinho Guedes, lá no Rio Grande do Sul, que criou um jornal
intitulado "Echo Operário" - e ali colaboravam anarquistas italianos,
portugueses (de Portugal e do Brasil) e alguns socialistas (inclusive
Guerra Junqueiro, Maia Garção e outros). Esse homem desenvolveu, quase
a nível de todo o Brasil, um socialismo um tanto libertário naquele
jornal, que durou cerca de uns 10 anos.
A um nível anarquista, a pessoa que teve maior projecção foi o Neno
Vasco, que chegou a São Paulo no começo do século, e principiou a
organizar os anarquistas portugueses. Ele não era uma pessoa de tomar
a palavra, de fazer discursos, mas escrevia bem e era activo. E começou
a publicar, logo em 1902, o jornal semanário "O Amigo do Povo". Havia
muitos italianos a chegar ao Brasil nessa altura e, então, uma página
era publicada em Italiano. Em 1907, ele lançou um novo jornal, porque
"O Amigo do Povo" [atravessava dificuldades, já que] tinha sido várias
vezes apreendido. E nesse jornal, ele defendeu uma tese sobre a renovação
da literatura portuguesa no Brasil, o que criou uma polémica tremenda
junto dos académicos brasileiros. Ele escreveu artigos preciosos sobre
a Literatura e sobre a Língua Portuguesa e mexeu com toda a intelectualidade
daquela época, a tal ponto, que quando ocorreu a Revolução Russa de
1905, o próprio Neno Vasco e uma série de intelectuais brasileiros
criaram um movimento a favor dos revolucionários russos. Existe até
uma carta do próprio Kropotkine mencionando esse dinheiro que arrecadaram
no Brasil. Neno Vasco conseguiu juntar à volta dele alguns brasileiros
[que se notabilizaram], como Edgar Leuenroth, mas, entre eles havia
também um português, vindo do Porto, que era comerciante, chamado
Adelino Tavares de Pinho, sujeito inteligentíssimo, que acabou por
aderir ao movimento anarquista e perder tudo com a propaganda, pois
tinha por lá umas lojitas. E quando morreu era professor da Escola
Moderna, de que foi um dos primeiros introdutores no Brasil. [Este
é apenas um exemplo, pois] a partir do Neno Vasco, em São Paulo, surgiu
uma série de militantes anarquistas portugueses, e isso alargou-se
a outros Estados. Um dos anarquistas mais influentes foi o Marques
da Costa. Ele lançou um jornal chamado "O Trabalho", que teve uma
certa repercussão e o obrigou a ter de fugir para Manaus, depois de
ter estado preso por uns dias. Logo a seguir, apareceu com um novo
jornal, chamado "Despertar", começou a fazer propaganda e iniciou
outros portugueses, como Manuel Cunha. Depois desse problema, em 1919,
Marques da Costa veio para o Rio de Janeiro. Inicialmente teve uma
coluna sua no diário "A Vanguarda", depois n"A Pátria", jornais com
muita repercussão no Rio de Janeiro e noutros Estados, e isso atingiu
uma quantidade de intelectuais, não só porque ele escrevia muito bem,
mas também pelas notícias que ele incluía na sua coluna, entrevistas,
colaborações, com o Oiticica e outros militantes anarquistas de muita
projecção. E isso fez com que o Marques da Costa conseguisse, através
desse jornal, tornar-se uma pessoa também muito conhecida da polícia
e, por isso, muito vigiado, a ponto de, em 1925, num congresso de
comemoração do 1º de Maio, que se realizou na Praça Moá, no Rio de
Janeiro, os trabalhadores formaram um palanque aonde foram falar vários
trabalhadores, mas dois foram proibidos pela polícia de falar; um
deles era o Marques da Costa. Então o Marques da Costa ficou ali por
perto - naquela época ele era relativamente novo -, os outros foram
falando e, então, quando chegou a vez dele de falar, deu um salto
para cima do palanque, com a Praça Moá apinhada de gente e disse:
«Apesar da polícia me proibir de falar, eu vou falar, e fez um discurso
tremendo; a polícia tentou alcançá-lo, mas a multidão era tanta que
o Marques da Costa acabou por concluir o seu discurso muito acalorado.
Em seguida saiu, não foi logo para casa, deu umas voltas pelo Rio
de Janeiro, a polícia sempre vigiando, mas no dia seguinte prenderam-no
e mandaram-no logo para Lisboa.
Além do Marques da Costa, sobressaíram uma série de outros militantes,
como Diamantino Augusto, Amílcar dos Santos, Raúl Pereira dos Santos
(este era de Lisboa), José Romero - que nasceu em Espanha, mas que
veio de lá logo com 2 anos de idade -, que foi expulso para Espanha,
mas como não sabia nem sequer falar Espanhol, acabou por não se adaptar,
também por causa do clima, e voltou para Portugal e lá fez parte da
CGT, trabalhou como jornalista n "A Batalha" e acabou por fugir para
o Brasil no começo de 1926, logo quando a ditadura [foi imposta]).
E então, como trazia toda uma gama de conhecimentos adquiridos em
Portugal, ele foi um grande militante também no Brasil. Além desse,
eu colhi os nomes, só no Rio de Janeiro, de mais de 200 militantes
portugueses, alguns que já vieram anarquistas de Portugal e outros
que se fizeram anarquistas, como aconteceu também com alguns espanhóis
e italianos que tomaram no Brasil conhecimento com o anarquismo, também
porque eram operários, tinham problemas sociais, contactaram o sindicato
- é o caso do barbeiro Amílcar dos Santos, de que já falei: ele chegou,
leu num jornal alguma coisa sobre a classe dos barbeiros, interessou-se,
foi à União dos Barbeiros, como se chamava na época, assistiu a uma
palestra e ficou admirado como os trabalhadores conseguiam falar tão
bem e ter tanta cultura social, e acabou por se tornar um verdadeiro
militante; escrevia muito bem, inclusive escreveu umas memórias que
não conseguiu publicar e de que muitos episódios estão, até, em meu
poder.
E
o Sindicato da Construção Civil no Rio de J.?
O Sindicato da Construção Civil, foi, podemos dizer, o esteio do movimento
anarco-sindicalista no Rio de Janeiro, porque criou na sua sede, que
era na Rua Barão de S. Félix, nº 119, um centro de cultura, criou
um grupo de teatro social, criou uma orquestra - que aqui se chamaria
uma banda de música -, tudo com anarquistas (e a maioria eram portugueses);
um sapateiro português fazia parte e foi maestro dessa orquestra,
chamado António Correia; outro português que também fez parte desse
movimento, no teatro social, foi Manuel Lopes, que morreu com 98 anos.
Todas as semanas ali realizavam uma conferência sobre anarquismo.
Além disso, tiveram o que se chamava a escola de militantes (o que
também existiu em Portugal), em que eles treinavam os militantes para
falar em público, no 1º de Maio, nas datas históricas, e onde ensinavam
também a escrever. Por exemplo, o Fábio Luz deu lá aulas. Ele, que
era médico, mesmo assim conseguiu passar fome, porque no consultório
dele, as pessoas que iam à consulta e não tinham dinheiro para pagar,
ele não só não cobrava, como ainda dava dinheiro para comprar remédios.
Então, o que é que ele fez? Foi para professor no Pedro II e era com
o salário de professor que ele vivia, e o trabalho médico dele era
para dar consultas de graça. Fábio Luz deu no Sindicato da Construção
Civil aulas de Italiano, Português e Espanhol e fizeram-se assim militantes
valorosíssimos. A maior parte destes militantes do Sindicato foi morrer
no Oiapoque, inclusive um português chamado Pedro Carneiro, de que
eu incluí, num dos meus livros uma memória manuscrita sua, muito bem
feita, onde descreve toda a trajectória da sua deportação, o tempo
que andou lá pelos alagados do Brasil. Esse sindicato foi o que mais
resistiu à influência dos comunistas. Depois da Rua Barão de S. Félix,
ele conseguiu ter uma sede na Praça da República e alugar um prédio
de quatro andares, e ali organizaram todas as associações operárias,
grupos de teatro, grupos de música, e conseguiram nesse prédio, que
é, salvo erro, no nº 16 ou 17 - ainda existe esse prédio, que eu já
fotografei mais do que uma vez -, levar esse movimento até ao Getúlio
Vargas fechar as organizações operárias livres para formar os sindicatos
verticais - os chamados sindicatos fascistas brasileiros. Eu creio
que os portugueses tiveram aí, nesse sindicato, uma importância muito
grande.
A
luta contra o fascismo em Portugal
Nos
livros e artigos, vários, há um denominador comum, uma posição de
luta, no Brasil, contra a ditadura instalada em Portugal, de Salazar
e Caetano. Como é que viu essa conjugação de esforços no sentido de
derrubar a ditadura aqui em Portugal?
Isso também tem a ver com os próprios portugueses refugiados. Quando
eu cheguei ao Brasil, levava muitas anotações, jornais, recortes,
o que eu pude juntar aqui, na clandestinidade. E o meu propósito inicial
era o de denunciar a ditadura portuguesa, denunciar a situação dos
companheiros que estavam presos, deportados no Tarrafal, nas outras
prisões, os que tinham sido mortos, enfim o mal que a PIDE vinha fazendo.
E assim como eu, chegaram outros, como Manuel António Vinhais, que
teve uma grande participação no movimento anarquista, em São Paulo,
e que no jornal "A Plebe" denunciou bastante a situação. Os anarquistas
portugueses, ao chegar ao Brasil, no Rio e em São Paulo, sobretudo,
envolveram-se no movimento anarquista local, mas não esqueceram os
companheiros que deixaram presos por aqui. E fizeram essa denúncia.
Certos anarquistas brasileiros, principalmente o Oiticica, demonstraram
um interesse imenso em conhecer as coisas que estavam a acontecer
em Portugal, ao contrário de outros brasileiros, anarquistas também,
que nunca se preocuparam muito, alguns até oferecendo uma certa resistência
em publicar artigos nos jornais anarquistas sobre a luta [contra a
ditadura], em Portugal. Mas o Oiticica sempre se interessou. Tanto
que eu, que não pretendia fazê-lo inicialmente - a minha pretensão
era escrever um livrinho, que depois vim a publicar -, comecei a escrever
no "Ação Direta" uma série de pequenos artigos chamados "No Paraíso
de Salazar", que saíram sucessivamente, com ilustrações mostrando
presos políticos portugueses, falando do Tarrafal, da situação de
alguns militantes, etc.. E mandava depois essas notícias, e outras
para jornais na Argentina, no Uruguai, na França, na Costa Rica -
onde tinha um amigo cubano refugiado, um advogado, que aí havia iniciado
a publicação de um jornal ("El Sol"), no qual eu publiquei uma quantidade
de coisas.
Outros fizeram também a mesma coisa. E havia, paralelamente a esse
trabalhos de denúncia dos anarquistas, que não era uma denúncia em
separado do movimento anarquista, era uma denúncia inserida no movimento,
porque nos preocupávamos com os anarquistas e anarco-sindicalistas
portugueses presos e deportados e com as organizações que haviam desaparecido.
E havia um relacionamento, uma troca de correspondência com os companheiros
portugueses, aqueles que tinham coragem de fazer isso. Bom!… De repente,
surgiu em São Paulo um grupo de democratas, alguns exilados, outros
que tinham ido para ali como emigrantes mas que eram anti-fascistas,
e iniciaram a publicação de um jornal chamado "O Portugal Democrático".
E aí havia duas correntes, havia alguns comunistas, do Partido Comunista
Português, que começaram a puxar para o lado da Rússia, e os outros,
que eram mais democratas, defendiam uma posição independente anti-fascista.
Com isso, acabou "O Portugal Democrático". E os democratas passaram
a publicar "A Semana Portuguesa". Eu colaborei, também, nesse jornal,
com alguns artigos anti-fascistas denunciado a ditadura.
Quando os políticos portugueses começaram a pedir asilo político nas
embaixadas, nós aliciámos os anarquistas brasileiros, na sua quase
totalidade, para uma campanha a favor do direito de asilo político
a quem quer que fosse, ao sujeito [anónimo], ao democrata, ao militar…
Naquela época, o Delgado já era um dos refugiados na Embaixada, o
Galvão também - mas havia outras pessoas que não eram militares -,
e fizemos discursos, campanhas, na União Nacional dos Estudantes do
Rio de Janeiro, na de São Paulo, na Bahia, fez-se palestras em vários
lugares, deu-se entrevistas aos jornais diários, criámos um movimento
de oposição e acabamos por conseguir fazer um congresso latino-americano
em São Paulo, com anti-fascistas portugueses e espanhóis, e aí estavam
integrados homens da CNT, alguns exilados em São Paulo e outros que
vieram da América Latina. Foi um movimento bastante forte, e acabou
por fazer com que o governo brasileiro (do Juscelino Kubitschek de
Oliveira) pressionasse de tal forma o Salazar, que ele se viu obrigado
a dar os vistos de saída aos exilados. Aí cresceu enormemente esse
movimento de oposição, com gente que já não eram só os anarquistas.
Criou-se no Rio de Janeiro uma associação chamada Associação General
Humberto Delgado, quando ele ainda estava refugiado na Embaixada,
em Lisboa. Essa associação começou com alguns intelectuais portugueses,
alguns brasileiros também - uma das pessoas que participou muito nisso
foi um embaixador que estava em Portugal na época, o Álvaro Lins,
um intelectual bastante conhecido, que se apaixonou por aquilo e acabou,
inclusivamente por deixar o governo de Juscelino, porque achou que
este não tomou a atitude mais enérgica em relação ao direito de asilo
dos portugueses. Nesse compasso de tempo, surgiu o [caso do] "Santa
Maria". E os portugueses continuaram com aquele movimento e ele cresceu
tanto que se não fosse isso, aquela gente tinha sido toda entregue
à PIDE, o "Santa Maria" acabava por vir para Portugal com o Galvão
e todo aquele pessoal, os espanhóis e os portugueses - e os espanhóis
certamente acabariam por ir parar ao garrote vil…
À
parte disso, ocorreram muitos factos curiosos: aí envolvemos o Centro
José Oiticica, o Centro de Cultura Social de São Paulo, a chácara
que, depois, serviu de abrigo aos refugiados sequestradores do "Santa
Maria" e houve algumas pessoas desse grupo que depois acabaram por
ir trabalhar para os diários "Folha de São Paulo" e "O Estado de São
Paulo". E as coisas foram-se abrindo. Os anarquistas nunca estiveram
muito ligados com os políticos, mas participavam, às vezes, em conjunto.
Por exemplo, o Centro de Estudos José Oiticica, numa época em que
teve como presidente um professor do Pedro II, um catedrático, Serafim
Porto, que era filho de portugueses, conseguiu sensibilizar os estudantes
do Secundário brasileiros, e faziam semanalmente um comício dentro
da própria sede da União Nacional dos Estudantes, que era na praia
do Flamengo, ali no coração do Rio de Janeiro. E apareciam os jornais
diários, colavam-se cartazes de parede, com recortes de denúncias
sobre os presos políticos, etc.. E a Associação General Humberto Delgado,
que tinha nascido naquela época, também participou nesses comícios,
embora sem nenhum vínculo de ideias. Eles continuavam a fazer a propaganda
política deles sobre o direito de asilo, etc..
A actividade dos anarquistas foi mais no sentido de libertar os anarquistas
portugueses presos e de conseguir ajudar a derrubar a ditadura, nunca
se comprometeu muito com o movimento político.
O
futuro do anarquismo no Brasil
,Mas
depois de tudo o que já disse, de tudo o que já viveu, quais são as
potencialidades do movimento social, em geral, e do movimento anarquista
no Brasil?
Eu estou um pouco céptico em relação ao movimento anarquista no Brasil.
E por uma razão simples - aliás parece-me que esse mesmo fenómeno
está a acontecer aqui -, é que existem dezenas, poderia até dizer
uma centena ou mais de grupos anarquistas, de grupos de jovens que
se dizem anarquistas, mas são movimentos que duram pouco; forma-se
um grupo, começam a publicar um boletinzinho, fazem lá uns desenhos,
uns macaquinhos, põem por baixo umas frases, alguns confundem anarquismo
com comunismo - há pouco tempo atrás recebi até um prospecto bem feitinho
graficamente, que trazia uma bandeira preta e vermelha e dum lado,
da parte preta, trazia o A do anarquismo e na parte vermelha a foice
e o martelo do comunismo; há, portanto, uma confusão tremenda na juventude,
uns mais esclarecidos, outros menos, e eu vejo isso com grande preocupação.
No fim da ditadura de Getúlio Vargas e no fim da ditadura militar,
no começo, foi possível reunir - porque ainda existiam algumas pessoas
velhas - os velhos e os novos que foram surgindo naquela época, e
publicar jornais com algum conteúdo anarquista, jornais que faziam
propaganda, que chegavam aos meios intelectuais, que fizeram com que
os professores e outros intelectuais fossem buscar matéria-prima para
as suas teses de doutoramento, mas actualmente, este pessoal mais
jovem, está a fazer uma confusão desgraçada, que me parece que é muito
mais negativa para o anarquismo.
A minha esperança, por outro lado - tenho uma grande esperança no
reflorescimento do anarquismo no Brasil - vem dessa grande quantidade
de livros que se publicaram, alguns até em segunda, terceira e quarta
edição, e que foram por lá distribuídos, vendidos, chegados às universidades,
às bibliotecas, e que ninguém queimou. Esses livros existem lá no
Brasil, em grande quantidade, e hoje, amanhã, daqui a meio ano, daqui
a um ano, daqui a meio século, alguém vai acabar por ler esses livros
e acabar por fazer propaganda do anarquismo. O anarquismo vai voltar
a florescer com gente mais madura; ou, na melhor das hipóteses, talvez
alguns destes jovens acabem por amadurecer. Há esforços importantes
em Santa Catarina (mas com dificuldade), em São Paulo (aqui com uma
dificuldade tremenda). Tenho fé que os livros que estão por lá espalhados,
nas bibliotecas, cheguem a sensibilizar gente, e [surja alguém] dos
intelectuais que defenderam teses de doutoramento - alguns chegaram
a dizer-se anarquistas, em palestras que fizeram no Centro de Cultura
Social de São Paulo. Mas, concretamente, militando no movimento, não
conheço nenhum. Por isso, vamos ver. Eu tenho as minhas preocupações,
estou um pouco céptico, porque quando a gente começa a ficar velho,
talvez também seja um pouco mais impertinente quando começamos a ver
que os novos não fazem aquilo que a gente gostaria que eles fizessem.
Não é que eles devessem fazer como nós, porque cada pessoa é uma individualidade,
cada um faz as coisas a seu modo, a época hoje é diferente. Antigamente,
um jornalzinho faziase à base de um linótipo, hoje faz-se até
por computador, há outros processos muito mais rápidos, as coisas
mudaram.
E também a interpretação de uma série de factores. A ecologia entrou
muito no meio do anarquismo, principalmente no Brasil, porque há uma
certa preocupação com a preservação da Natureza, uma coisa que os
anarquistas, no passado, não tiveram assim tanta preocupação, porque
havia muita mata e pouca gente e hoje existe muita gente e a mata
está a queimar-se. De forma que estou bastante preocupado com isso.
Vamos ver se ainda surge, antes de eu morrer, alguém para tomar conta
das coisas, porque de momento não vejo isso.
Revista
Utopia #5 (Portugal)