Esta
entrevista realizada por J. M. Carvalho Ferreira a Jaime Cubero tinha
como grande objectivo dar a conhecer a vida de um grande homem e sua
articulação com o movimento anarquista no Brasil. Embora sabendo da
sua fragilidade física, a sua morte em Maio de 1998 não era de todo
previsível. Foi uma enorme perda para o anarquismo no Brasil e, porque
não dizê-lo, para o pulsar das ideias e das práticas acratas no mundo.
Com esta entrevista procura-se tão-só compreender a evolução do anarquismo
no Brasil nas últimas décadas e revelar a figura do homem que nos
deixou.
Estamos
hoje a 28 de Maio de 1997 para entrevistar um grande amigo e companheiro
- Jaime Cubero - figura sobejamente conhecida no Brasil dispensando
quaisquer adjectivos, para a revista UTOPIA. Vamos tentar fazer aqui
algo que fique para a história. Vamos tentar dialogar no sentido de
articular a figura de Jaime Cubero com as ideias e práticas do anarquismo
no Brasil e mesmo no mundo. Assim, a minha primeira pergunta é: Como
é que enquanto pessoa, enquanto ser humano, emergiu para a prática
e as ideias do anarquismo?
Eu comecei
muito jovem. Eu tinha um vizinho espanhol que era anarquista e os
filhos dele conviviam connosco. Jogávamos todos juntos na rua. Isto
era na altura em que ainda não tinha dez anos, hoje tenho 70. Vejam
só quanto tempo já passou! Estávamos mais ou menos em 1936/1937, ou
seja antes de 1940. Esse meu amigo chama-se Liberto - hoje por acaso
é meu cunhado, porque casou com uma irmã gémea. Esse meu amigo visitava-me
quando eu estava doente e conversávamos muito. Como na altura eu era
católico por causa das aulas que recebia no grupo escolar nós conversávamos
muito sobre religião - nós ficamos órfãos quando morreu meu pai, com
33 anos. Éramos seis irmãos, a menor com dois meses e o maior com
8 anos, e no intervalo nasceram os gémeos: eu e minha irmã Aurora.
É a partir daqui que uma série de fatos irão influir no meu pensamento.
Dividiram
os irmãos de tal forma que 3 foram para a avó materna (o avô já tinha
falecido) e 3 vieram para São Paulo para a avó materna. Minha mãe
não casou de novo, daí as dificuldades que tinha para sustentar seis
pessoas. Na altura a miséria era muita. Quando venho para São Paulo,
minha avó matricula-me na escola, mas no 2º ano porque no primeiro
já não havia vaga. Foi assim que eu só fiz três anos de escolaridade:
do 2º ao 4º ano. Nesta fase é que eu começo a estabelecer relações
com outros vizinhos nossos, de entre os quais o Liberto de que já
falei, que marcarão profundamente a minha vida. No grupo escolar era
obrigatório o ensino religioso (religião católica) - para me matricular
minha avó teve de dizer que eu era católico senão não me aceitavam.
Nessas aulas de religião (tinha eu 7 anos) esse meu amigo Liberto
que tinha outra formação (anticlerical), começa a fazer a minha cabeça.
Comecei a Ter uma curiosidade enorme pela religião. Logo depois começamos
a fazer debates com o padre, com católicos etc. Começou tudo aqui.
Nesse tempo, já depois de Ter saído da escola e estar a trabalhar
numa fábrica (com 11 anos) onde trabalhava 10 horas por dia, no fim
do dia nós nos reuníamos. Ia Ter a casa desse meu amigo e do irmão
dele (que era sapateiro que trabalhava em casa) onde fazíamos leituras
em conjunto e comentávamos tudo o que líamos. Um dos livros que viria
a marcar a minha formação foi o livro chamado "Manolim" (livro muito
divulgado nos meios anarquistas na 1ª e 2ª década deste século) Foi
com este livro que eu aprendi o espanhol porque estava escrito em
espanhol. Discutíamos bastante, fazíamos frequentemente leituras comentadas
por todos.
A partir
daí, desenvolvemos essas actividades de leituras comentadas e resolvemos
um dia, já adolescentes com 16/17 anos, criar (sem contactos nenhum
com o movimento anarquista) o que pomposamente resolvemos chamar de
"Centro Juvenil de Estudos Sociais". Convidávamos para aí conviver
todas as moças das nossas relações. As pessoas diziam que o que queríamos
era "paquerar" (namorar) as raparigas. E de facto, dali saíram algumas
uniões, inclusive a minha com a Maria (companheira da minha vida),
a do Liberto com minha irmã e outras. Foi aí que começou tudo.
Depois
disso, quando é que entras em relação estreita com o movimento anarquista?
Em 1945
no fim da Segunda Guerra Mundial e com a queda do Getúlio Vargas,
reabrem-se as portas do Centro. O nosso grupo é descoberto por alguém
que pertencia ao Centro e que nos propõe que o Centro possa participar
nos nossos debates. Foi assim que tivemos a presença, numa das nossas
reuniões, do Edgar Leuenroth, anarquista destacado, e a partir daí
entrámos em contacto frequente com o Centro de Cultura Social . Fomos
convidados para participar nas múltiplas actividades do Centro de
Cultura Social em 1945.
Quais
as principais actividades que desenvolveram nessa altura?
No seio
do nosso grupo fazíamos essencialmente estudos, distribuíamos livros
e fazíamos com que as pessoas emitissem/escrevessem as suas opiniões
sobre os livros que tinham lido, o que faziam muitas vezes nas nossas
reuniões. Quando passámos a fazer parte do Centro de Cultura Social
as actividades multiplicaram-se. Passámos a participar nas reuniões
do Centro, nas conferências, enfim em todas as actividades. Foi assim
que um irmão meu que tinha aptidão para o teatro entra para um grupo
de teatro do Centro.
No casamento
do meu cunhado Liberto com minha irmã Aurora estiveram presentes muitos
companheiros que pertenciam ao Centro, incluindo Edgar Leuenroth e
o director do Jornal "A Plebe". Na altura fiz um discurso sobre o
"amor livre" e foi então que Edgar me convidou para fazer parte da
Comissão de Gestão do Centro de Cultura Social e participar em todas
as actividades do Centro e do próprio movimento. Nessa ocasião tínhamos
já bem a noção das iniciativas do movimento anarquista e tínhamos
a consciência de que tinha de ser um movimento específico organizado
por companheiros convictos. Para alguém entrar para o movimento tinha
de ser conhecido de alguém, isto é, tinha de ser apresentado por dois
companheiros por uma questão de confiança.
Logo
após a queda da ditadura de Getúlio organizou-se a União Anarquista
de São Paulo. Faziam-se conferências ao sábado. Comemorávamos datas,
por exemplo a da revolução espanhola. O local do Centro de Cultura
Social passou a ser ocupado também pelo Movimento espanhol no exílio,
o qual passou a participar bastante nas actividades do Centro. Criámos
mesmo dois grupos de teatro, um português e outro espanhol.
Houve
uma reanimação do Centro de Cultura Social, do Movimento Libertário
Anarquista após a 2ª guerra mundial e a queda da ditadura em 1945..
Sabemos que o Centro teve muita importância para o movimento libertário
no Brasil nos anos 10 e 20. Após a ditadura quais as articulações,
quais as incidências das actividades do Centro no movimento operário?
Discutíamos
bastante a directriz do movimento, a participação do movimento operário
etc. Fazíamos congressos para reanimar a actividade do centro e para
aumentar a participação operária. Num desses congressos, que foi muito
divulgado na revista "Cruzeiro", conseguiu-se uma entrevista de Roberto
das Neves, português militante muito importante e muito conhecido
no Brasil pelos seus livros e editora (de livros anarquistas) que
os publicava "Germinal". Na sua luta salazarista foi vítima de fortes
perseguições, chegando inclusive a ser torturado (simularam um acidente
mas o que houve foi uma tentativa de assassinato) porque essas pessoas
que ele hostilizava com uma linguagem muito dura não o deixavam. Articulámos
também as nossas actividades com as do Movimento do Rio de Janeiro.
Logo a seguir à ditadura havia uma série de pessoas como Edgar Rodrigues
de entre muitos outros que faziam parte do movimento e que passaram
a ser contactadas para reuniões. Fazíamos várias reuniões entre vários
estados mas de carácter eminentemente anarquista. Editámos mesmo um
jornal, no pós ditadura, "Relações Anarquistas" no Rio de Janeiro,
vindo depois o "Acção Directa". Depois ainda fiz parte também do jornal
"A Plebe". Tínhamos uma actividade tremenda. Não havia descanso. Trabalhávamos
de segunda a segunda. Fazíamos a nossa propaganda via teatro, jornais
e comícios que convocávamos para recintos mais ou menos fechados porque
nessa altura e ainda hoje só se pode falar em local público pedindo
autorização/alvará de ordem política e social. Na onda política do
pós ditadura os anarquistas procuraram ocupar um espaço de destaque
e conseguiram-no consideravelmente.
Do
que tenho lido do Jaime Cubero é que nas primeiras décadas do nosso
século havia uma actividade essencialmente operária, que se circunscrevia
às fábricas: greves, escolas, teatro e toda uma série de práticas
operárias. Após a queda de Getúlio e o fim da Segunda Guerra Mundial
há um ressurgimento do movimento anarquista embora as práticas estejam
agora mais circunscritas a publicações, mais circunscritas aqui em
São Paulo e no Rio de Janeiro, não estando tão ligadas ao mundo fabril.
Será assim?
Fizemos
de facto várias tentativas no sentido de fazer participar o movimento
operário. Cada qual procurou ingressar num sindicato.. Eu, que era
sapateiro, assistia a reuniões do sindicato onde estava presente um
membro do Ministério do trabalho para fiscalizar. As discussões nestas
reuniões eram muito difíceis porque os comunistas queriam impor-se,
queriam fazer sempre tudo de acordo com a lei. Nós queríamos lutar
num espaço público, nas ruas, lugar sempre ocupado pelos anarquistas.
O movimento anarquista aqui no Brasil tem tradição de estar sempre
muito ligado ao operariado. Chegou a ter proporções gigantescas. O
movimento anarquista foi um poderoso instrumento histórico no Brasil.
Todas as leis trabalhistas condensadas na legislação no pós ditadura
foram conquistas, práticas concretas dos anarquistas sempre em prole
do movimento operário. Como exemplo disso vou falar de uma tese de
doutoramento que foi defendida aqui há cerca de 4 meses e que era
sobre a greve de 1917. A proporção dessa greve foi enorme. Após a
morte de um operário espanhol chamado José Martinez, assassinado pela
polícia, no seguimento do enterro dele foi aí que eclodiu o movimento.
Chegaram a participar nessa greve mais de 200 mil pessoas quando a
cidade pouco mais tinha que 400 mil. Logo, mais de metade da população
da cidade envolveu-se na greve. Foi a maior greve geral da história
do Brasil.
O movimento
operário, após a queda da ditadura do Getúlio, procurou implantar-se
em todos os lugares. O Herbert Marcuse, considerado um guru do Maio
de 68 em Paris, dizia que os elementos de contestação do sistema acabariam
por ser coarctados pelo sistema e passariam a fazer parte do sistema.
Ora
já no Brasil, Florentino de Carvalho, um dos grandes militantes do
Brasil que tem um livro famoso "Da escravidão à liberdade" discutia
com Edgar Leuenroth sobre estas questões: preconizava que o sindicalismo
acabaria como uma extensão do Estado; que as reivindicações seriam
tomadas como elementos de rentabilidade dos sindicatos.
Quando
se chega aos anos 50 Edgar preocupa-se muito com o movimento operário.
Organizámos então o Movimento de Orientação Sindical (MOS) que promoveu
uma série de actividades tendo durado até ao golpe militar que instaura
a nova ditadura em 1964. A posição do MOS era combater o sindicalismo
fascista.
Não
tiveram também uma nova concorrência que foi, em certa medida, também
ela a causa da perca de influência do movimento anarquista nas suas
múltiplas vertentes, concorrência essa que adveio do advento histórico
da revolução russa. Será que este acontecimento teve importância na
"derrocada" do anarco-sindicalismo?
A minha
visão do problema é a seguinte. Para determinado evento histórico
é comum procurar uma causa. E às vezes delimitar essa causa. Muita
gente imputa ao Partido Comunista essa perca de influência. O Partido
Comunista é fundado em 1922 e a partir daí o movimento anarquista
começa a perder influência. Na década 30, já toda uma série de legislação
trabalhista tinha cariz fascista. Os sindicatos que surgiram eram
fascistas. Então qualquer sindicato de organização operária que não
pertencesse ao estado era combatido como clandestino. Estes não podiam
organizar-se em liberdade. Mas os anarquistas resistiram bastante.
Em 1934, quando houve um grande confronto no centro da cidade de São
Paulo entre anarquistas e fascistas - nome dado aos integralistas
aqui no Brasil - na Praça da Sé, os trabalhadores que pertenciam à
Federação Operária de São Paulo resolveram enfrentar os integralistas
(fascistas) que se propunham fazer uma marcha integralista na cidade
de S. Paulo à semelhança da marcha que havia tido lugar em Roma no
tempo do Moussoulini.
Essa
marcha integralista estava marcada para o dia 7 de Outubro de 1934.
Os anarquistas organizaram-se para os enfrentar e combinaram também
um acto para a Praça da Sé nesse mesmo dia. O Jornal "A Plebe" que
divulgava já a ascensão do fascismo divulgou também esse acto anarquista.
Para esse confronto, os companheiros anarquistas disseram que estariam
lá nem que fossem mortos. Chegado o dia os companheiros colocam-se
em lugares estratégicos na Praça da Sé e armados (porque a época não
era para brincadeiras, era de luta).
Quando
os fascistas chegaram, todos de camisas verdes (em Itália eram os
camisas pretas), começaram a concentrar-se esperando 500 mil pessoas
que não chegaram a tantas, colocando na frente da marcha mulheres
e crianças por pensarem que ninguém dispararia contra mulheres e crianças.
Os anarquistas esperaram que mulheres e crianças passassem e depois…
tendo um dos companheiros - Simão Rodovich percebido que havia metralhadoras
que estavam prontas a disparar sobre os operários, ele toma conta
de uma delas e começa então um tiroteio enorme. Morreram 6 pessoas,
muitas delas ficaram feridas e algumas morrendo depois devido aos
ferimentos, mas o que é de salientar é que houve uma debandada enorme,
a passeata dos fascistas abortou. Isto para demonstrar que o movimento
anarquista não morreu, a manifestação de 1934 demonstra que ele estava
bem vivo.
Havia
uma revista do Partido Comunista da época "Divulgação Marxista", que
era suspeita quando dava dados. O Partido Comunista não chegava na
altura a ter 1000 filiados no partido, contudo chegaram quase a dizer
que tinham sido eles a enfrentar os integralistas. Irónico não é?
Em contrapartida a Federação Operária de São Paulo tinha mais de 80
sindicatos que não pertenciam ao Estado.
Pôr
tudo isto não podemos dizer que houve só um factor que tivesse contribuído
para o refluxo do movimento anarquista tendo antes havido uma conjugação
de factores. O Movimento não foi capaz de reflectir sobre o que se
estava a passar a nível mundial. Deixou-se ultrapassar pelos acontecimentos.
Mas durante muito tempo teve superioridade face ao Partido Comunista,
partido este que em 1922 já pertencia ao governo. Nessa conjugação
de factores inclui-se não só o Partido Comunista como também todos
os outros partidos que aderiram ao governo, ou seja, ao sindicalismo
oficial (menos os anarquistas que o não fizeram). Mas... na minha
opinião o principal factor foi a repressão da época. Foi um fenómeno
mundial. Basta pensar nas ditaduras de Salazar em Portugal, Peron
na Argentina, Franco em Espanha, Hitler na Alemanha, Mussolini em
Itália, etc… Se pensarmos no período histórico em que as ditaduras
imperaram podemos Ter aqui o principal factor causal do refluxo da
importância do movimento anarquista.
Tendo
a noção que se registou um refluxo, há uma tentativa após a 2ª guerra
mundial para activar de novo o movimento. Como o fizeram? Circunscreveram-se
apenas a publicações? Que actividades desenvolveram?
Muitas
actividades como conferências, cursos e outras. Em São Paulo chegámos
a ter milhares de alunos. Procurámos ocupar espaços físicos novos.
Na Universidade de S. Paulo havia um Conselho de que fazia parte Edgar
Leuenroth e muitos outros de grande projecção. Passámos a ter uma
actividade considerável tendo em conta o período de repressão que
tínhamos vivido e ainda se vivia. Qualquer actividade de teatro juntava
sempre centenas de pessoas. Editámos uma série de jornais, mesmo depois
do jornal "Acção Directa" e nos anos que antecederam a nova ditadura.
O movimento anarquista, como todos os outros, tem momentos, circunstâncias
em que consegue grande projecção e outros momentos menos áureos. Existe
contudo um meio anarquista que gravita em torno de um grupo que vai
crescendo e alargando-se por várias zonas.
Em
1964 instala-se uma nova ditadura, não é?
Em 1954
eu pertencia ao teatro do Centro de Cultura Social e o Edgar tratava
das conferências, reuniões do centro etc. É preciso não esquecer que
o movimento específico anarquista não é público, é clandestino. O
Estado jamais daria autorização para combater o Estado, só deu licença
para se ter o espaço físico do Centro. Mas desenvolvemos sempre actividades
específicas pertencentes a um meio anarquista. Criámos mesmo a União
Anarquista de São Paulo. Nos dias de reunião da União apareciam sempre
muitas pessoas. Mas mesmo com os cuidados todos que tínhamos em relação
às pessoas que queriam assistir, acabavam sempre por se infiltrar
policiais que faziam depois verdadeiras actas das nossas reuniões.
Quer
dizer que a actividade clandestina afinal não chega?
Claro
que não chega. Tanto não chega que, uma tese recente investigou sobre
as pessoas que pertenceram ao Centro de Cultura Social, e muitas foram
descobertas através desses registos policiais. Nesses registos aparece
o nome de Mário Santos, que era um orador ímpar.
Quais
os efeitos negativos para o movimento anarquista da ditadura instalada
em 1964?
A ditadura
de 1964 foi terrível. Praticamente anulou tudo. Nós resistimos até
1968 quando foi instituído o Acto Constitucional, que foi a lei mais
repressiva que a ditadura promulgou. Foi um aperto. Eliminou-se toda
e qualquer actividade pública que vinha sendo exercida. Tudo o que
se podia fazer era na clandestinidade., correndo todos os riscos inerentes
às circunstâncias. Quando soubemos da Revolução, isto é, do golpe
militar de 1964 conseguimos resistir até 1968, ou seja, até à dita
lei. Tínhamos ainda um jornal e todas as actividades do Centro. Uma
forma de poder continuar em actividade e resistindo foi criando o
Centro de Cultura Social a que nós chamávamos o "Laboratório de Ensaio",
onde com marceneiros, carpinteiros e outros operários construímos
um pequeno teatro de arena, que levava cerca de 60 pessoas bem instaladas.
Levávamos á cena peças inseridas nas circunstâncias políticas. Um
exemplo foi uma peça chamada "Os Generais", cujo tema era como transformar
um general num ser humano. Por aqui pode ver-se a nossa actuação.
O nosso
teatro foi registado como uma escola de teatro. A polícia aparecia
muito mas dizíamos que estávamos numa aula e assim lá íamos correndo
os nossos riscos, mas sempre desenvolvendo as nossas actividades culturais
--exposições de arte, recitais de poesia, etc. - sob uma repressão
tremenda mas sempre, sempre resistindo. Com a instituição desse Acto
político, a repressão intensificou-se e encerrámos provisoriamente
- que durou 16 anos, só reabrimos em 1985 - algumas das actividades
do laboratório mas fomos desenvolvendo acções na mesma como seminários
sobre racismo, sindicalismo e outros temas. Fazíamos também comemorações
de datas, relativas à revolução espanhola por exemplo e outras.
Entre
1954 e 1964 esteve no Rio de Janeiro. Em 1964 estava em São Paulo
mas antes esteve no Rio de Janeiro. Fale-me um pouco da greve em que
participou dentro do Jornal o Globo.
Trabalhei
no Jornal o Globo durante 10 anos. Eu antes trabalhava como sapateiro,
sendo conhecido pela minha capacidade intelectual. Eu não fiz curso
nenhum, como disse antes, só tenho 3 anos de curso primário. O resto
se deve ao meu autodidatismo, sendo o Centro de Cultura Social a minha
grande escola. Eu consegui registar-me como jornalista profissional
no Rio de Janeiro para trabalhar no jornal o Globo. Eu fui demitido
na sequência do apoio a uma greve de solidariedade que o sindicato
dos jornalistas profissionais resolveu apoiar a greve dos jornalistas
gráficos. Como a nossa negociação salarial estava quase na hora, decidimos
apoiar os gráficos e depois eles apoiar-nos-iam a nós. Foi assim que
entrámos na greve directa e que tivemos uma participação muito importante
porque montámos piquetes para não deixar os jornais sair. Estávamos
praticamente 24 horas acordados para desenvolver toda uma série de
actividades. Depois de a greve terminar, só no Rio foram demitidos
cerca de 80 jornalistas. O representante do nosso sindicato marcou
um encontro com o Roberto Marinho com o objectivo de sermos readmitidos.
Alguns colegas, instruídos por advogados, negaram a sua participação
na greve, dizendo que tinham ficado em casa e….. Eu fiquei um pouco
revoltado e então eu disse: eu não sei o que cada companheiro fez
mas eu participei plenamente em tudo, eu participei na greve, eu fiz
as actas do sindicato porque o nosso salário é incompatível com a
nossa profissão, etc. Disse ainda que não me eximia de participar
nesta luta porque era uma luta importante. Roberto Marinho não estava
habituado a lidar com tanta franqueza.
Eu voltei
ao jornal, não espontaneamente. Eles mandaram-me chamar , por parte
do sindicato, e soube então que Roberto Marinho tinha ficado surpreendido
comigo e com o meu discurso, propondo-se então a aceitar-me no jornal.
Eu disse que sim mas com uma condição: que todos os outros demitidos
fossem também admitidos, que todos voltassem ao trabalho. Eles não
aceitaram e esta foi a primeira vez.
Mas
mandaram-me chamar uma segunda vez. Nesta segunda vez Roberto Marinho
disse-nos e impôs: vocês estão aqui mas concordo que voltem com uma
condição: assinando uma carta, individual ou colectiva, declarando
que estão de acordo com a orientação do Globo, se arrependem de ter
feito greve, que nunca mais farão e prometo não utilizar esta carta
no Ministério do Trabalho.
Nesta
segunda vez, neste encontro entre sindicato e jornal, mandei dizer
que eu só voltava a trabalhar no jornal se Roberto Marinho escrevesse
uma carta em que declarasse que estava arrependido de me ter demitido,
que nunca mais iria incorrer no mesmo risco, e que eu prometia nunca
usar esta carta etc… Não aceitou e foi o fim. Não voltei mais.
A
greve durou quantos dias?
Durou
4 dias.
Foi
então para São Paulo e as actividades, para além daquelas do Centro
Cultural, quais eram? Qual a diferença entre os dois tipos de resistência?
Quando
foi promulgado o Acto da ditadura nós procurámos o Pedro Catarro e
dissemos que tínhamos uma edição do jornal que não conseguíamos editar
porque se o fizéssemos éramos presos. Ele a princípio não acreditou,
mas depois lá o convencemos e o jornal foi editado e distribuído.
Como ficámos reduzidos a um grupo muito pequeno, resolvemos cancelar
as actividades do centro, mas muitos eram de opinião que era impossível
fechar o Centro. Havia um Centro no Rio de Janeiro que foi fechado
e contaram-nos o que lá se tinha passado. A polícia invadiu o Centro,
pensando que tinha apanhado peixe graúdo, faziam então inquéritos
policiais. Prenderam uma série de companheiros nossos, alguns muito
jovens. O nível policial era muito baixo. Mas os que faziam os inquéritos
eram de nível mais elevado militarmente. O Roberto das Neves uma vez
que era conduzido para o "Galeão", vira-se para um polícia e diz-lhe
que apesar da sua cara siamesa tinha um ar de pessoa. O polícia diz-lhe
que apesar do elogio não se "safava daquela".
Conte-me
um pouco o que pensa sobre o Roberto das Neves.
O caso
do Roberto das Neves é paradigmático. O Roberto das Neves, em Portugal
escreveu um livro sobre as profecias onde dizia que o Hitler, o Franco,
o Salazar morreriam. Escreveu o livro com o nome de Ernesto, espécie
de profeta alemão. Ele era uma figura incrível. Hostilizava os racistas
portugueses, que estavam, via consulados portugueses, numa série de
instituições que ele hostilizava. Utilizava poesias satíricas, utilizando
uma linguagem muito forte. Teve consequências numa série deles, deram-lhe
mesmo uma surra. Ele publicou muitos livros aqui no Brasil, na editora
Germinal. Ele mandava os livros para as pessoas mesmo que não lhos
pedissem. Uma vez devolvi uma colecção que ele me enviou. Quando esteve
preso no "Galeão" exigiu comida vegetariana, dizia que não era devorador
de cadáveres e acabavam por lhe fazer a vontade.
Após
1964, a ditadura desenvolve-se, ganha força. Mas a partir de certa
altura começa a decair em 1984/85. Como é que a partir daí o Centro
Cultural volta a ganhar força?
O ex-Secretário-Geral
do Centro esteve a trabalhar no Chile como tradutor. Quando veio foi
preso e levado para o Galeão também. Um polícia sargento vira-se para
ele e diz-lhe que pode começar a falar porque já tinham prendido mais
de 80 anarquistas. Ele pergunta como é que isso era possível se ele
nunca tinha conseguido juntar mais de 10 em dez anos.
Encontrámo-nos
depois na Praça da República quando ele estava em fase de processo.
Ele disse-me que se ia embora e foi.
Após
1984 começámos a desenvolver novamente uma série de actividades, em
vários lugares. Organizámos seminários sobre racismo, sindicalismo,
etc. Fazíamos comícios. Mas não tínhamos uma sede. Estávamos numa
fase de distensão. Tentámos encontrar um espaço para reabrir o Centro.
Reunimos com várias pessoas e neste período coincidiu o facto de a
TV Cultura na altura estar a fazer uma série de programas sobre teatro.
Nesse contexto queriam fazer um programa sobre o teatro operário que
era o teatro libertário. Procuraram-me para dar uma entrevista e perguntaram-me
onde era o Centro. Disse onde tinha sido e qual não foi o meu espanto
que quando lá chegámos o Centro estava para alugar e nós alugámos
logo a sede, aproveitando o papel ainda existente e tudo o que lá
havia. Fomos ao cartório para reiniciar a actividade. Com a inauguração
do Centro, recebemos muitas cartas de todo o lado. Aparecemos nas
revistas de grande saída. Começamos depois a articular o movimento
com actividades múltiplas, tendo os media dado uma grande cobertura
à reabertura do Centro.
A COB(Confederação
Operária Brasileira) surgiu. Durante a clandestinidade continuávamos
a reunir. Mesmo durante o período de ditadura chegávamos a encontrarmo-nos
cerca de 90 pessoas. Tudo na clandestinidade, mas conseguíamos resistir.
Só não editávamos nada. Começámos a interessar-nos pelo sindicalismo
e inclusive criámos, no Centro, uma Comissão Sindical, criando mesmo
comissões específicas: comissão sindical; comissão do teatro, agora
temos a comissão de cinema. A comissão sindical começou então a encetar
contactos com os sindicatos. A CNT(Confederação Nacional do Trabalho)
tinha sede em Espanha. Quando viram que nos interessávamos pelo sindicalismo
vieram cá e preparámos um encontro nacional. Quiseram reconstruir
a COB. Quanto a mim, já não será mais o que foi. O sindicato hoje
tem que se preocupar mais com a apropriação do conhecimento do que
com as reivindicações salariais. Uma representação da Baía propõe
também a reconstrução da COB. Como criar uma Federação sem sindicatos?
Primeiro há que criar sindicatos de ofícios vários, por ramos de actividade
só depois virá a Federação.
Veio
uma proposta de novo da Baía no sentido de se criar um núcleo. Criaram-se
Núcleos pró-COB com representações em muitos estados do Brasil. Foi
mesmo lançado um jornal "A Voz do Trabalhador" que conquistou a confiança
de todos. Leonardo Moreli, hoje aliado político da extrema direita
no Brasil foi na altura enviado como representante (delegado brasileiro)
ao congresso AIT(Associação Internacional dos Trabalhadores). Ali
enrolou toda a gente (os espanhóis). Mas ele, Leonardo, só estava
interessado no dinheiro. Foi uma pessoa que prejudicou demais o movimento
anarquista. Eu fui nomeado secretário dos Grupos pró-COB. Tínhamos
a intenção de levar para a frente uma Federação. Por outro lado, na
reabertura do Centro (1985) estiveram presentes muitos canais de TV,
que deram uma cobertura incrível, fazendo uma série de entrevistas.
O que
fizemos de importante foi um curso de anarquismo onde se apresentaram
mais de 50o pessoas (apesar dos custos de inscrição). A partir daí
passámos a fazer cursos de anarquismo universitários.
Outro
curso que lançámos foi "As ideias libertárias na Revolução Francesa"
que foi muito divulgado no meio universitário. Temos uma relação importante
com a Universidade.
Em 1974,
a família de Edgar vende o Arquivo, o Acervo Colectivo para o Unicamp,
porque pensavam que tinham ali uma fortuna. Mas, o Edgar antes de
morrer deixou anotado uma espécie de testamento dedicado aos seus
companheiros no sentido de ser criado um Arquivo da Questão Social.
Mas estavam muito interessados neste Arquivo (comunistas com medo
de serem comprometidos). Mas aí a família continuava a querer vender.
Quando abriram o testamento, a família soube que não podia vender
para alguém dos EUA que lhe oferecia muito dinheiro por ele. Resolveram
criar um memorial Edgar Leuenroth em plena ditadura, o que nos impossibilitava
de fazer algo.
O
Arquivo do Edgar na Universidade de Campinas não irá só servir para
os intelectuais?
Começou
de facto a surgir um interesse universitário pelo Arquivo. Descobriram
um filão para fazer pós-graduações em História e outras Ciências Sociais.
Muitas editoras passaram a criar colecções sobre o Anarquismo. A Contexto
criou uma colecção enorme. A uma dada altura, o Jorge perguntou-me
se podia fazer um levantamento exaustivo sobre o Anarquismo. Foram
feitas pesquisas de investigação sobre o Anarquismo e mesmo teses
de doutoramento. O Arquivo do Edgar foi importantíssimo nesse aspecto.
Eu próprio fui convidado para o visitar.
Há
uma grande difusão do anarquismo em termos académicos, através de
doutoramentos, palestras…
Desculpe
interromper, mas a difusão do anarquismo foi mesmo muito grande. Fomos
convidados para fazer cursos nas Universidades, palestras, etc… Foram
abertos espaços grandes neste campo na Universidade de São Paulo.
O trabalho na universidade para nós foi muito importante. Havia quem
não o considerasse como tal. Temos tido muita adesão a este campo.
Os auditórios têm estado sempre lotados.
A
actividade universitária está a desenvolver-se. Mas noutros espaços,
como os anarco-punks, o que tem acontecido?
Os punks
aqui têm criado muita confusão, de forma algo violentos. Chegaram
a promover acções muito violentas e a confrontar-se, hostilizando
mesmo os militares em parada. Só que, quando o fizeram, em dada altura
chegou a polícia e prendeu mais de 300. Sobre este assunto eu dei
uma entrevista para a folha de São Paulo. Hoje, o néo-nazismo, cabeças
rapadas geram muita confusão, muita violência entre eles e os anarco-punks.
Houve mesmo mortes. Parece-me haver falta de informação. Mas, com
mais informação, alguns deles estão desenvolvendo acções mais positivas,
em cooperativas operárias. Com o desemprego imenso que crassa o Brasil,
todos os que sabem de uma profissão é positivo. Contribuem para melhorar
a imagem deles. É parecido com o Movimento dos Sem Terra. Estes estão
construindo casas, semeando, conseguem autosustentar-se. Temos acções
a vários níveis com os anarco-punks que são cada vez mais positivas.
E aqui
terminamos a última entrevista dada pelo nosso companheiro Jaime Cubero,
ainda no ano passado, à revista UTOPIA. Um obrigado póstumo, mas não
morto de todos nós que temos o privilégio único de ouvir a sua voz
uma vez mais. Até sempre companheiro.
José
Maria Carvalho Ferreira
Revista
utopia # 8