O Episódio da Rua Frei Caneca: 70 anos

Pode-se dizer que tudo começou em meados de 1921, quando chegou na redação do diário anarquista A Vanguarda, em São Paulo, o delegado do governo soviético para a América do Sul, Ramison Soubiroff. Veio oferecer a Edgard Leuenroth, editor daquele jornal, plenos poderes para a organização do partido bolchevique no Brasil. Após uma reunião amigável no Palace Hotel, Edgard recusa o convite e indica para a incumbência o já “vacilante anarquista” Astrogildo Pereira, que morava no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Poucos dias depois, Astrogildo chega a São Paulo e, encaminhado por seu (até então) amigo Leuenroth, é recebido por Soubiroff no mesmo hotel, onde aceitaria a tarefa de organizar o Partido Comunista.

Após as inúmeras greves da década de 10, que culminaram com a grande greve de 1917 e a tentativa de insurreição no Rio de Janeiro (1918), o movimento anarquista sofreu por parte do governo Epitácio Pessoa uma feroz perseguição, quando foram deportados entre 1919 e 1921 centenas de ativistas libertários estrangeiros. Os sindicatos sofreram forte pressão por parte da polícia, sendo que muitos foram fechados, e seus integrantes presos. Apesar de toda a repressão, organizou-se no Rio no final de abril de 1920, o 3° Congresso Operário Brasileiro, na Rua do Acre, n° 19, sede da União dos Operários em Fábricas de Tecidos.

Em março de 1922, Astrogildo Pereira e mais 11 militantes, fundam o Partido Comunista do Brasil (PCB). A reação inicial da maioria dos anarquistas do Rio de Janeiro foi de cautela, visto que a maioria dos fundadores do PC era oriunda do anarco-sindicalismo. Alguns libertários, entretanto, reagiram enfurecidos à traição, entre esses o sapateiro Galileu Sanchez, mais conhecido como Pedro Bastos, que chamou os integrantes da Seção Brasileira da III Internacional de “ratazanas de capas vermelhas”. Talvez tenha sido a última coisa certa que ele disse na vida...

Não demorou muito para os ânimos entre os ativistas das duas tendências se acirrassem. Os anarquistas eram bem mais numerosos, hegemônicos em diversos sindicatos, sendo os principais a União dos Operários em Construção Civil (UOCC), a União Geral dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Cafés e Similares (os “gastronômicos”) e a Alliança dos Operários em Calçados e Classes Anexas (os “sapateiros”). Desde 1921, a imprensa libertária vinha publicando notícias sobre as perseguições, fuzilamentos e deportação dos anarquistas na União Soviética, fazendo com que aquela ilusão inicial de muitos libertários perante à Revolução Russa fosse desmoronando. Já em 1923, os bolchevistas (como os anarquistas os chamavam), controlavam duas ou três organizações sindicais, sendo a principal a União dos Alfaiates. Já praticavam, com aquela falta de ética que sempre lhes foi peculiar, atos de provocação, calúnia e difamação contra militantes anarquistas, chegando ao ponto de perpetrar emboscadas, como as agressões sofridas por Marques da Costa e Izidoro Augusto, em 1923. Os anarquistas, no entanto, estavam mais preocupados com a forte repressão exercida pela polícia do Marechal Carneiro da Fontoura (o “Marechal Escuridão”), que constantemente prendia seus ativistas, invadia as sedes sindicais e impedia suas manifestações. Mesmo assim, reorganizou-se a Federação Operária do Rio de Janeiro (FORJ) a partir do segundo semestre de 1923, que veio a reunir mais de uma dezena de organizações de tendência anarco-sindicalista até o ano seguinte.

Em março de 1924, foi fechada a sede da UOCC na Rua Barão de São Félix, no 119. A sede, da UOCC, da FORJ, dos “gastronômicos”, dos “sapateiros” e dos “tanoeiros” foi, então, reunida na Praça da República, no 42/3°andar. As prisões de ativistas ácratas se sucedem e, nesse mesmo mês, o jornal anarquista A Plebe, de São Paulo, é proibido de circular nas repartições postais do Brasil. No dia 5 de julho, ocorre em São Paulo uma sublevação militar liderada pelo General Isidoro Dias Lopes, contra o governo ditatorial de Artur Bernardes. Diversos libertários paulistas assinaram uma moção de apoio a sublevação e solicitaram armas para a formação de um batalhão ácrata, que evidentemente foram recusadas. A derrota da sublevação é a “deixa” para o governo Bernardes desencadear uma feroz perseguição aos anarquistas, especialmente aqueles que haviam assinado a moção. As sedes das organizações libertárias do Rio e São Paulo foram saqueadas e fechadas pela polícia e, centenas de ativistas foram encarcerados nos presídios estaduais ou deportados para as ilhas Rasa, das Flores e do Bom Jesus, ou para a distante “Colônia Agrícola” da Clevelândia, na fronteira com a Guiana Francesa, onde morreram vários companheiros.

Enquanto isso, os “valorosos” bolchevistas se faziam de mortos, aproveitando o desmantelamento do movimento libertário para captar novos integrantes e fazer crescer sua influência nos sindicatos. Cresceu também a influência dos sindicatos colaboracionistas (“amarelos”), que viriam a se tornar a base de todo o sindicalismo oficial de Getúlio Vargas, na década de 30.

Com o fim do governo Bernardes e do Estado de Sítio no início de 1927, grande parte dos militantes libertários foram soltos e retornaram à luta nos sindicatos e na campanha pró-Sacco e Vanzetti. O movimento renasce e, evidentemente, voltam a se acirrar as relações com os bolchevistas. Em agosto desse ano, outro duro golpe para os anarquistas foi a prisão e o desaparecimento em São Paulo do grande militante Domingos Passos, conhecido como o “Bakunin brasileiro”.

Em 1928, os militantes bolchevistas no país eram cerca de 1.250 segundo Leôncio Basbaum, o que discorda Edgar Rodrigues, que aponta para um número bem inferior em seu livro Novos Rumos. Haviam candidatado-se a vereadores pelo Bloco Operário e Camponês os dirigentes bolchevistas Octávio Brandão e Minervino de Oliveira e, no ano anterior, o PCB apoiou a eleição para deputado federal do Dr. Azevedo Lima. A luta pelo controle dos sindicatos era intensa entre os anarquistas, bolchevistas e amarelos. Os bolchevistas, ainda mais intensamente, promoviam atos de provocação durante as reuniões dos sindicatos por eles não controlados produzindo, quando as deliberações não eram encaminhadas segundo os seus desígnios, tumultos através dos famigerados “rapazes da Tcheka”. Os libertários, mesmo nas categorias onde eram minoritários, estavam lá para se fazer ouvir e acusar as práticas ditatoriais e aéticas dos estalinistas.

Em conferência eleitoreira de Azevedo Lima na sede dos “marinheiros remadores”, na Praça Harmonia, José Oiticica e outros libertários lá estavam para desmascarar os bolchevistas, sendo violentamente ameaçados pela claque “de capas vermelhas”. Ficou marcada outra conferência para a sede dos “tecelões”, na Rua do Acre, n° 19, onde a polêmica anarquistas-bolchevistas prosseguiu mais pesada, quando os candidatos do PC defenderam suas candidaturas e racionalizaram sobre os crimes de Stalin. Como não conseguiram um resultado satisfatório, acusaram de agente policial o então presidente da União dos Operários em Fábricas de Tecidos, Joaquim Pereira de Oliveira, que tinha derrotado a chapa bolchevista nas eleições sindicais. Azevedo Lima afirmou poder provar a acusação e desafiou o acusado e demais contendores para um novo debate na sede dos “gráficos” e “marceneiros”, na Rua Frei Caneca, n° 4 (hoje o prédio da Gafieira Elite), no dia 14 de fevereiro. Segundo depoimentos de velhos companheiros presentes a reunião (vide Edgar Rodrigues in Novos Rumos, p.296), “essa reunião (...) foi uma descarada chantagem armada para provocar a desordem, que daria motivo ao assassinato dos anarquistas José Oiticica, João Perez, Albino de Barros, Joaquim Pereira de Oliveira, Antonino Dominguez e outros marcados para morrer”. Após Azevedo Lima ter feito todas as acusações a Pereira de Oliveira este, ao tentar se defender, foi impedido por uma claque comandada por Roberto Morena e Octávio Brandão. Feito o tumulto, entram no recinto Eusébio Manjon e Galileu Sanchez (o mesmo Pedro Bastos das “ratazanas de capas vermelhas”) e descarregam os revólveres sobre a assistência, buscando atingir os anarquistas já relacionados. Foram atingidos mortalmente o sapateiro anarquista e grande militante social Antonino Dominguez e, devido a falta de mira dos assassinos, o gráfico bolchevista Damião José da Silva. Foram feridos diversos outros operários que, se esvaindo em sangue, tiveram que fugir para não morrerem nas celas da polícia carioca.

Em plena segunda-feira de Carnaval, um longo cortejo fúnebre saiu da Praça da República em direção ao cemitério São Francisco Xavier, onde foi enterrado por seus familiares, amigos e companheiros o operário Antonino Dominguez, assassinado pelas “ratazanas vermelhas”.

Renato Ramos - CELIP - Rio de Janeiro, 1998.