A Prática da Autogestão Econômico-Social na Espanha


Maurício Tragtenberg

Capítulo de “Reflexões sobre o Socialismo” de Maurício Tragtenberg – São Paulo, Editora Moderna, 1986, páginas 65 a 69

A Oposição Operária dos anos 20 na URSS, a Rebelião de Kronstadt (1921), a Revolução Makhnovista na Ucrânia (1918-1921) e as rebeliões na Hungria, Polônia e Tchecoslováquai representam a prática da autogestão das lutas pelo proletariado, nas quais sempre ressurgem as reivindicações de controle operário da produção, autonomia sindical e dos conselhos operários e rejeição da ditadura do partido único.

O movimento eurocomunista, no que tem de positivo, rechaça também a idéia da ditadura do partido único e do atrelamento dos sindicatos a um estado proletário futuro em nome da ditadura do proletariado. Nesse sentido representa uma continuidade das lutas referidas acima.

É na Espanha, no período 1936-39, que se dará, em 80% do país, a prática da autogestão das lutas operárias contra o fascismo e o capitalismo e da coletivização das fábricas e das terras. Porém essa pratica será esmagada pela ação combinada do fascismo espanhol com a política do PC espanhol de repressão à esquerda não-vinculada à URSS.

A ditadura de Primo de Rivera caiu em 1931, após anos de lutas das várias correntes de esquerda, anarquistas, socialistas e comunistas. É proclamada a república, caindo logicamente a monarquia.

Após estrondosa vitória eleitoral, o goerno republicano sente-se com apoio social para efetuar a reforma agrária, posi 1% da classe dominante (latifundiáriso e burguesia) detinha 51% da terra. A 19 de julho de 1936 se dá a reação da classe dominante através de um levante comandado por Franco. Imediatamente, os trabalhadores saem à rua e, através de suas organizações sindicais, armam-se para resistir ao golpe de Estado fascista.

A Espanha parte-se em duas: de um lado estão os nacionalistas, apoiados por Hitler e Mussolini; de outro, o governo republicano, abrangendo liberais, comunistas, socialistas e anarquistas, O golpe de Estado desfechado pela direita não consegue sucesso em metade da Espanha, notadamente na Catalunha.

Coloca-se, então, a questão: vitória na guerra civil contra Franco e posteriormente pensar-se em socialização, ou ao contrário, a socialização dos meios de produção, a revolução social como um istrimento de mobilização dos trabalhadores para a vitória contra Franco?

O proletariado espanhol não espera. Coletiviza a sterras, as fábricas e os meios de transporte, resultade da decisão de uma seção plenária regional da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), realizada em Madri a 30-10-1933: “Declaramos que se triunfarem as tendências fascistas e por esse ou outro motivo se produzir uma comoção popular, a CNT tem o dever de impulsionar os desejos populares para plasmar na realidade sua finalidade comunista-libertária”.

Mais ainda, essa seção plenária propõe “que se crie uma comissão de estudos econômicos que recolha toda documentação possível sobre a economia espanhola e elabore um plano construtivo imediato”.

Na época, a CNT possuía 2 milhões de trabalhadores filiados, e as Juventudes Libertárias contavam com 100 mil filidados.

O programa de coletivização das terras contou com a adesão de mais de 90% dos trabalhadores rurais, que se apossaram das terras, especialmente pelo fato de industriais e latifundiários terem se refugiado no Exterior. A 5 de setembor de 1936 realizou-se um congresso regional de camponeses, no qual se resolveu que a coletivização das terras seria dirigida pelos sindicatos. Os bens dos latifundiários e terras seriam coletivizados, Tais medidas transformaram-se em lei a 7-10-1936, quando o governo republicano confiscou sem indenização os bens dos proprietários comprometidos com o levante fascista.

A tradição de coletivosmo agrário na Espanha muito contribuiu para tais medidas. Desde o início, a grande maioria dos trabalhadores da terra integrou-se espontaneamente às coletivizações. Efetuou-se uma aliança de classe entre os camponeses que coletivizaram as terras – de fascistas e não-fascistas, desde que fossem proprietários – e oproletariado urbano, que começara a socializar os meios de produção e os transportes públicos.

Em cada aldeia, uma assembléia geral de camponeses elegia os membros do comitê administrativo. Todos os homens aptos entre 18 e 60 anos tinham de trabalhar. Os camponeses organizavam-se em grupos de doze, encabeçados por um delegado, também camponês, e cada equipe se respnsabilizava por uma zona de cultivo ou uma função, conforme o tipo de trabalho e didade de seus membros.

Todas as noites, o comitê administrativo se reunia com os delegados dos diversos grupos. Sobre assuntos de administracão local, a comuna reunia os trabalhadores numa assembléia geral, na qual tudo era discutido e resolvido.

Tudo era propriedade comum, exceto roupas, economias pessoais, animais domésticos, áreas de jardim e aves destinadas ao consumo. Coureiros, sapateiros e demais artesãos agrupavam-se em coletividades. As ovelhas da comunidade eram divididas em rebanhos de centenas de cabeças, confiadas a pastores e distribuídas pelas montanhas, racionalmente.

Estabeleceu-se uma remuneração fixa de acordo com as necessidades do grupo familiar. Cada chefe de família recebia por jornada de trabalho um bônus em pesetas que podia trocar por artigos de consumo nas lojas comunais. O saldo era depositado numa reserva individual e o interessado solicitava, se necessário, uma quantia limitada para gastos pessoais.

Assistência pública, eletricidade e medicamentos eram gratuitos, bem como o amparo à velhice. A escola era obrigatória aos menores de 14 anos, impedidos de trabalhar manualmente.

Camponeses que não quisessem integrar-se às coletividades não eram obrigados a fazê-lo; podiam participar dos trabalhos da comuna e enviar seus produtos aos armazéns comunais.

As comunas reuniram-se em federações cantonais e estas em federações regionais. Todas as terras de uma federacão cantonal formavam um só território. Foram criadas caixas de compensação para auxiliar as coletiv8idades mais atrasadas tecnológica e economicamente.

Esse sistema implantou-se de forma global em Aragão, Os trabalhadores agrícolas criaram, aí, um poder de base inédito na história da República, estimulados pelo avanço da Coluna Durruti, uma milícia libertária que combatia os fascistas na frente norte.

Constituíram-se em Aragão cerca de 450 coletividades que agrupavam 500 mil camponeses; na região do Levante, a mais rica da Espanha, formaram-se 900 coletividades; em Castilha foram criadas 300 coletividades integradas por 100 mil associados. O processo de coletivização atingia de Extremadura até parte da Andaluzia.

A autogestão agr[icola era praticada em grandes superfícies com a supervisão de engenheiros agrônmos, aumentando em 50% o rendimento da terra; diversificaram-se os cultivos, iniciaram-se obras de irrigação e criaram-se escolas técnicas rurais e granjas piloto.

Esboçou-se um planejamento econômico com base nas estatísticas de produção e consumo que as coletividades entregavam aos comitês cantonais e estas aos comitês regionais, que, por sua vez, integravam-se inter-regionalmente.

A autogestão industrial iniciara-se, especialmente na Catalunha, região mais industrializada da Espanha. As fábricas foram postas a funcionar pelos trabalhadores, que administravam as empresas formando comitês revolucionários, sem ajuda ou ingerência do Estado.

Contrariamente ao que se deu a Revolução Russa, a revoução na Espaha contou com a adesão livre dos técnicos. Daí realizar-se em Barcelona, em 1936, um congresso sindical, no qual estavam representados 600 mil operários, com a finalidade de ampliar a socialização da indústria. Um decreto de 24-10-36 do governo catalão oficializou a autogestão operária.

Foram socializadas as fábricas com mais de 100 pessoas, sendo os proprietários declarados “ociosos” por um tribunal popular. Cada empresa era dirigida por um comitê de administração, composto por 15 membros das diversas seções, eleitos pelos trabalhadors em assembléia geral, com mandato de dois anos. Esse comitê podia ser destituído pela assembléia geral e pelo conselho geral do setor industrial específico, este composto por quatro representantes dos comitês de administração, oito dos sindicatos operários e quatro técnicos nomeados pelo organismo tutelar.

Cabia ao comitê de administração a organização do trabalho e a fixação dos salários. O desajuste entre as empresas coletivizadas prósperas e as mais pobres em equipamento e em trabalhadores semi-qualificados ou qualificados era corrigido mediate a criação de uma casa de compensação à qual cabia a distribuição equitativa dos recursos.

Na Catalunha, trabalhadores e técnicos trabalhavam na criação de uma indústria de material bélico. As mulheres operárias constituíam a maioria da mão-de-obra, em razão de os homens válidos estarem incorporados, em sua maior parte, às milícias na frente de guerra.

Porém esse processo autogestionário começa a ser sabotado em plena guerra civil contra Franco. O Estado controlava os bancos e estes retiveram recursos de muitas coletividades.

O ministro da Agricultura, Uriba, do PC espanhol, ao mesmo tempo que legalizou as coletivizações das terras por decreto (16-3-36), incitou os camponeses a não entrarem nelas, em discurso de dezembro de 1936 dirigido aos pequenosproprietários agrícolas, assegurando que as armas do Estado e do PCE estava à disposição deles. Os fertilizantes importados, negados às coletividades, ele entregara aos pequenos proprietários. Transferira o abastecimento de Barcelona dos sindicatos aos comerciantes privados.

O PC da catalunha agrupo em sindicato único os pequenos proprietários de terra, aos quais uniram-se os comerciantes e latifundiários, aparentemente conformados com a nova situação.

A 11.ª Divisão, dirigida por Lister, do PCE, destruiu com seus tanques as coletividades rurais e dissolveu os comitês administrativos; dispersou tamb[em o gado.

A imprensa do PCE clamava conta a “coletivização forçada”! Na area industrial, a imprensa desenvolveu uma campaha colocando em dúvida a honestidade dos comitês de f[abrica nas empresas sociabilizadas; o governo republicano negou-se a conceder créditos às empresas autogeridas, chegando mesmo a privá-las de matérias primas, vitais a seu funcionamento.

O governo republicano, já dominado pelo PCE, importa os uniformes militares, em lugar de solicitá-los às coletividades têxteis da Catalunha. E com o decreto de 11-9-1938 dá o golpe final na autogestão, militarizando as empresas e colocando-as sob a direção de inspetores membros do PCE.

A autogestão, que dominara 70% do território espanhol, englobando empresas industriais e agrícolas e escolas, provara ser uma prática inerente à classe operária quando a autogestão das lutas desta atinge determinado estágio.

A repressão aos movimentos operários de autogestão das duas lutas e de autogestão econômico-social se dá através de partidos políticos ou sindicatos ou pelo aparelho do Estado, tenha este o nome que tiver, burguês, liberal, operário ou socialista.

Centro de Mídia Independente