Local
de trabalho e comunidade são os pólos em que se tem
centrado, ao longo da história, a teoria e pratica social radical.
Com o aparecimento do Estado-Nação e da revolução
industrial, a economia adquiriu proeminência sobre a comunidade,
não só na ideologia capitalista como também nas
várias modalidades de socialismo libertário e autoritário
surgidas no século passado. Esta mudança de tônica
do pólo ético para o econômico foi de enorme alcance,
conferindo aos diversos socialismos inquietantes atributos burgueses.
Tal evolução foi particularmente nítida no conceito
marxista de emancipação humana através do domínio
da natureza, projeto que implicando o domínio do homem pelo
homem, justificava o aparecimento da sociedade de classes como condição
prévia dessa emancipação.
Infelizmente,
a ala libertaria do socialismo não propôs com a necessária
coerência, o primado da moral sobre o econômico, provavelmente
em razão do nascimento do sistema de fábrica ( lugar
clássico da exploração capitalista) e do proletariado
industrial como agente de uma nova sociedade. O próprio sindicalismo
revolucionário, apesar de todo o seu fervor moral, concebeu
a organização social sindicalista pós-revolucionária
nos moldes da sociedade industrial, o que testemunha bem a mudança
de tônica do comunitarismo para o industrialismo, dos valores
comunitários para os da fábrica. Obras que gozaram de
prestigio quase sagrado no meio sindicalista revolucionário,
como “O organismo econômico da revolução”
de Santillan, exaltam o significado da fábrica e do posto de
trabalho, para não falar já do papel messiânico
do proletariado. Todavia, o local de trabalho ( a fábrica na
sociedade industrial) foi, ao longo da história, não
só lugar de exploração, mas de subordinação
hierárquica. Não serviu para “disciplinar”,
“unir” e “organizar” o proletariado para mudança
revolucionária mas, pelo contrario, para acostumar à
obediência. O proletariado, como qualquer setor oprimido da
sociedade, liberta-se abandonando os hábitos industriais e
participando ativamente na vida comunitária.
Da
Tribo à cidade
O
município é espaço econômico e espaço
humano de transformação do grupo quase tribal em corpo
político de cidadãos. A política – gestão
da cidade (polis) – tem sido desvirtuada em governo do estado
tal como a palavra polis tem sido impropriamente traduzida por estado.
Esta degradação da cidade em estado repugna aos antiautoritários,
dado que o estado é instrumento das classes dominantes, monopólio
institucionalizado da violência necessária para assegurar
o domínio e a exploração do homem pelo homem.
O estado desenvolveu-se lentamente a partir de base mais ampla de
relações hierárquicas até se converter
no Estado-Nação e, mais modernamente, no estado totalitário.
Por outro lado, a família, o local de trabalho, as associações,
as relações interpessoais e, de modo geral, a esfera
privada da vida, são fenômenos especificamente sociais,
distintos do âmbito estatal. O social e o estatal misturam-se;
os despotismos arcaicos não foram senão ampliação
da estrutura familiar patriarcal e, na atualidade, a absorção
do social pelo estado totalitário nada mais é que o
alargamento da burocracia a esferas não meramente administrativas.
Esta mistura do social e do estatal apenas prova que os modos de organização
social não existem em formas puras. A “pureza”
é termo que só pode ser introduzido no pensamento social
a expensas da realidade concreta. A História na apresenta a
categoria política como forma pura,m assim como não
oferece qualquer exemplo de relações sociais não
hierárquicas (acima do nível do bando ou aldeia) ou
de instituições estatais puras (até época
recente). O aparecimento da cidade abre espaço a uma humanidade
universal distinta da tribo agro-pastoril, a um civismo inovador distinto
da comunidade fechada na tradição e que exprime na gestão
da polis por um corpo de cidadãos livres. Aproximações
a uma política não estatal encontram-se na democracia
ateniense, no town meetings da Nova Inglaterra ou nas assembléias
de seção da comuna de Paris de 1793,. Experiências
por vezes duradouras, por vezes efêmeras, que embora inquinada
por traços opressivos característicos das relações
sociais do seu tempo, permitem conceber um modelo político
não parlamentar (burocrático e centralizado), mas cívico.
A
Cidade e a Urbe
A
era moderna caracteriza-se pela urbanização, degradação
do conceito de cidade (civitas, corpo político de cidadãos
livres) em urbe (conjunto de edifícios, praças, isto
é, o fato físico da cidade). Os dois conceitos foram
distintos em Roma até a época imperial e é elucidativo
que a sua confusão corresponda ao declínio da cidadania.
Os Gracos tinham procurado transformar a urbe em cidade, dar primazia
ao cidadão, ao político sobre o econômico. Fracassaram
e, sob o império, a urbe devorou a cidade. A distinção
entre os conceitos de cidade e urbe encontra-se em outros países
como a França, onde Rousseau já assinalava que “as
casas fazem o aglomerado urbano (ville) mas só os cidadãos
fazem a cidade (cité)”. Vistos como simples eleitores
ou contribuintes – quase um eufemismo para súditos –
os habitantes da urbe tornam-se abstrações, meras criaturas
do estado. Um povo cuja única função política
é eleger deputados não é, de fato povo, mas “massa”.
A politica entendida como categoria distinta do estatal, implica a
reencarnação das massas num sistema articulado de assembléias,
a constituição de um corpo político atuando num
espaço de livre expressão, de racionalidade comum e
de decisão radicalmente democrática. Sem autogestão
nas esferas econômicas, ética e política, não
será possível transformar os homens de objetos passivos
à sujeitos ativos. O espaço cívico (bairro, cidade)
é o berço em que o homem se civiliza e civilizar é
sinônimo de politizar, de transformar a “massa”em
corpo político deliberativo, racional e ético. Formando
e fazendo funcionar tais assembléias, os cidadãos formam-se
a si mesmos, porque a política nada é se não
for educativa e não promover a formação do caráter.
O
município não é apenas o local onde se vive,
a casa, serviços de higiene e salubridade, de previdência,
emprego e cultura. A passagem da tribo à cidade representa
uma transformação radical da sociedade primitiva ( de
caça e colheita)à sociedade agrícola e desta
à de manufatura,. A revolução urbana não
foi menos profunda que a revolução agrícola ou
que a industrial.
Município
e democracia direta
Ao
exaltar a atividade legislativa e executiva por delegados na comuna
de Paris de 1871, Marx prestou um péssimo serviço ao
pensamento social radical. Já Rousseau afirmava que o poder
popular não pode se delegado sem ser destruído. Ou há
assembléia popular dotada de plenos poderes ou o poder pertence
ao estado. A delegação deturpou a comuna de Paris de
1871, os sovietes e, mais geralmente, os sistemas republicanos em
nível municipal e nacional. A expressão democracia representativa
é, em si mesma, contraditória. O povo, ao delegar em
órgãos que o excluem da discussão e decisão
e definem o âmbito das funções administrativas,
lança as bases do poder estatal. A supremacia da assembléia
sobre os órgãos administrativos é a única
garantia da supremacia do cidadão sobre o estado, crucial numa
sociedade como a nossa, repletos de peritos que a extrema especialização
e complexidade torna indispensáveis. A supremacia da assembléia
é particularmente importante no período de transição
de uma sociedade administrativamente centralizada para uma sociedade
descentralizada. A democracia libertária só é
concebível se assembléias populares, em todos os níveis,
mantiverem sob a maior vigilância e escrupuloso controle os
seus órgãos federais ou confederais de coordenação.isto
não suscita problemas importantes do ponto de vista estrutural.
Desde tempos remotos que as comunidades utilizam peritos e administradores
sem perda da sua liberdade. A destruição das comunidades
teve em geral origem estatal e não administrativa. Corporações
sacerdotais e chefes serviram –se da ideologia e da ingenuidade
publica, mais que da força, para reduzir primeiro e depois
eliminar o poder popular.
O
estado nunca absorveu, no passado, a totalidade da vida social. Fato
que Kropotkin assinalou implicitamente em O apoio mutuo, ao descrever
a rica e complexa vida cívica das comunidades medievais. A
cidade foi a principal força de oposição aos
estados imperiais e nacionais, da antiguidade aos nossos dias. Augusto
e seus sucessores fizeram da supressão da autonomia municipal
a chave da administração imperial romana e o mesmo fizeram
os monarcas absolutos da época da reforma. “Abater os
muros da cidade” foi uma constante da política de Luis
XIII e de Richelieu, política que ressurge em 1793-94, com
a progressiva e implacável restrição dos poderes
da Comuna pelo Comitê de Salvação Publica robespierrista.
A “revolução urbana”, enquanto poder alternativo,
isto é, desafio potencial ao poder central, foi uma obsessão
do estado ao longo da história. Esta tensão subsiste
ainda, como o demonstram os conflitos entre o estado e as municipalidades
na Inglaterra e América. Quando a urbanização
tiver anulado a vida da cidade a ponto de sta não ter mais
identidade, cultura e espaço associativos próprios,
as bases para uma democracia terão desaparecido e a questão
das formas revolucionárias será mero jogo de sombras.
Qualquer perspectiva radical em moldes libertários perderá
significado. Por outro lado, é ingênuo supor que assembléias
populares (de aldeia, de bairro, de cidade) possam alcançar
o nível de uma vida publica libertária sem a existência
de um movimento libertário consciente, bem organizado e com
programa claro. E este não poderá surgir sem a contribuição
de uma intelectualidade radical, vibrante de vida comunitária,
como a intelectualidade francesa do Iluminismo, com a sua tradicional
presença ns cafés e bairros de Paris. Intelectualidade
bem diversa da que povoa academias e outras instituições
culturais da sociedade ocidental. Se os anarquistas não reforçarem
esse extrato de pensadores em declínio, com vida publica vivaz,
em comunicação ativa com o ambiente social, terão
de enfrentar o risco de uma transformação das idéias
em dogmas e de si próprios em herdeiros presunçosos
das grandes personalidades vivas do passado.
As
Classes Sociais em Reformulação
Pode-se
jogar com palavras como município, comunidade, assembléia
e democracia direta, negligenciando diferenças de classes,
étnicas e de sexo, que fizeram de termos como povo abstrações
insignificantes. As assembléias de secção parisienses
de 1793 não só estavam em oposição à
comuna e à convenção mais burguesas, como eram,
internamente campo de batalha entre assalariados e proprietário,
democratas e realistas, radicais e moderados. Reduzir esta conflitualidade
a meros interesses econômicos é tão incorreto
como ignorar diferenças de classe e falar de fraternidade,
liberdade e igualdade como se estas fossem meras expressões
retóricas, esquecendo sua dimensão populista e utópica.
Tanto se escreveu já sobre os conflitos econômicos nas
revoluções inglesa, americana e francesa, que os historiadores
futuros fariam melhor serviço se revelassem o medo burguês
da revolução o seu conservadorismo inato e sua tendência
para o compromisso com a ordem instituída. Mais útil
ainda seria revelar como as classes oprimidas da era revolucionária
empurraram as revoluções “burguesas” para
fora das balizas estabelecidas pela burguesia, para espaços
de democracia a que esta sempre se acomodou com dificuldade e suspeição.
Os vários “direitos” então alcançados
foram-no apesar da burguesia e não graças a ela; graças
sim aos agricultores americanos de 1770 e aos sans-culottes parisienses
de 1790. E o futuro destes direitos torna-se cada vez mais incerto.
A
recente evolução tecnológica, social e cultural
e seu desenvolvimento futuro poderá alterar a tradicional estrutura
de classes criada pela revolução industrial e permitir
que, da redefinição do interesse geral daí resultante,
possa emergir novamente a palavra Povo no vocabulário radical.
Não como abstração obscurantista, mas como expressão
extratos desenraizados, fluídos e tecnologicamente deslocados,
não integrados numa sociedade cibernética e automatizada.
A estas camadas desprezadas pela tecnologia poderão juntar-se
os idosos e os jovens, para que o futuro se apresenta incerto por
difícil definição do seu papel na economia e
na cultura. Estas camadas já não se enquadram na elegante
e simplista divisão de classes correspondente ao trabalho assalariado
e ao capital.
O
povo pode voltar, ainda, como referência ao interesse geral
que se criou em torno de mobilizações publicas sobre
temática ecológica, comunitária, moral, de igualdade
de sexos ou cultural. Seria insensato subvalorizar o papel crucial
destes problemas ideológicos, aparentemente marginais. Há
50 anos, já Borkenau fazia notar que a história do ultimo
século mostrava que o proletariado podia enamorar-se mais do
nacionalismo que do socialismo e ser mais facilmente conduzido pelo
interesse patriótico que pelo de classe. Note-se também
que a ideologia como o cristianismo e o islamismo ainda hoje mantém
frente a ideologia sociais progressistas, nomeadamente ecológicas,
feministas, étnicas, morais e contraculturais em que navegam
elementos pacifistas e de cariz anárquico que aguardam ser
integrados numa perspectiva coerente. Estão a desenvolver-se
à nossa volta novos movimentos sociais que ultrapassam as tradicionais
fronteiras de classe. Deste fermento pode nascer um interesse geral
mais amplo pela sua finalidade, novidade e criatividade que os interesses
economicamente orientados do passado.
O
“1984” Orwelliano traduz-se hoje pela megalópole
de um estado muito centralizado e de uma sociedade profundamente institucionalizada.
É nossa obrigação tentar opor a esta evolução
social estatizante a ação política municipal.
A revolução tradus-se sempre pelo aparecimento de um
poder alternativo – sindicato, soviete, comuna – orientado
contra o estado. O exato atento da história mostra que a fábrica,
produto da racionalização burguesa, deixou de ser o
local da revolução. Os operários mais revolucionários
(espanhóis, russos, franceses e italianos) pertenceram sobretudo
a estratos em transição, estratos agrários tradicionalmente
em decomposição submetidos ao impacto corrosivo de uma
cultura industrial. A luta operaria de hoje, que reflete os últimos
sobressaltos de uma economia em extinção, é sobretudo
defensiva, visando conservar um sistema industrial que esta sendo
substituído por uma tecnologia de capital intensivo e cada
vez mais cibernética. A fábrica deixou de ser o reino
da liberdade (de fato foi sempre o reino da necessidade, da sobrevivência).
Ao seu nascimento opuseram-se os setores artesanais, agrícolas
e, em geral,o mundo comunitário. Obcecados pela idéia
de socialismo cientifico e pela ingênua concepção
de Marx e Engels, segundo a qual a fábrica servia para disciplinar,
unir e organizar o proletariado, muitos radicais ignoraram o seu papel
autoritário e hierarquizaste. A abolição da fábrica
e sua substituição por uma ecotécnica (caracterizada
por trabalho criativo e aparelhos cibernéticos projetados para
responder às necessidades humanas) é auspiciosa na perspectiva
do socialismo libertário.
A
revolução urbana desempenhou um papel bem diferente
do da fábrica. Criou a idéia de uma humanidade universal
e da sua socialização segundo linhas racionais e éticas.
Removeu as limitações ao seu desenvolvimento decorrentes
dos vínculos do parentesco e do peso sufocante do costume.
A dissolução do município representaria grave
regressão social, pela destruição da vida civil
e do corpo de cidadãos que confere sentido ao conceito de política.
Para
Um Municipalismo libertário
O
anarquismo sempre sublinhou a necessidade de uma regeneração
moral e de uma contracultura (no melhor sentido do termo), antagônica
da cultura dominante. Daí a importância a.ética,
a coerência entre meios e fins e à defesa dos direitos
humanos e cívicos contra qualquer forma de opressão
e em qualquer aspecto da vida. A idéia de contra-instituíção
é mais problemática. Vale a pena relembrar que no anarquismo
houve sempre a par das tendências individualista e sindicalista,
uma tendência comunalista. Esta ultima com forte orientação
municipalista, como se depreende das obras de Proudhon e Kropotikin.
Todas
as tendências radicais sofrem de certa dose de inércia
intelectual, a libertária não menos que a socialista
autoritária. A segurança da tradição pode
ser suficientemente reconfortante para bloquear qualquer possibilidade
inovadora. O anarquismo tem estado obcecado pelo problema do parlamentarismo
e do estatismo, preocupação historicamente justificada
mas que pode conduzir a uma mentalidade de estado de sítio,
de cariz dogmático.
O
municipalismo libertário pode ser o ultimo reduto de um socialismo
orientado para instituições populares descentralizadas.
É curioso que muitos anarquistas que se entusiasma com qualquer
chácara coletivizada no contexto de uma economia burguesa encare
com desgosto uma ação política municipal que
comporte qualquer tipo de eleições, mesmo se estruturadas
em assembléias de bairro e com mandatos revogáveis,
radicalmente democráticos. Se anarquista viessem a integrar
conselhos comunais, nada obrigaria a que sua politica se orientasse
para um modelo parlamentar, sobretudo se confinada ao âmbito
local, em oposição consciente ao estado e visando a
legitimação de formas avançadas de democracia
direta. A cidade e o estado não se identificam. As suas origens
são diversas e os seus papeis históricos diferentes.
O fato de o estado permear hoje todos os aspectos da vida, da família
à fábrica, do sindicato à cidade, não
significa que se deva abandonar toda e qualquer forma de relação
humana.
Os
fantasmas que devemos temer são os do dogmatismo e do imobilismo
ritualístico.estes representam para a autoridade sucesso mais
completo que o obtido através da coação, pois
significariam que o seu controle está próximo de bloquear
a capacidade de pensar livre e criticamente e de resistir com as idéias,
mesmo quando a capacidade de agir se encontra bloqueada pelos acontecimentos.
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