Ao Segundo Encontro Americano pela Humanidade
e contra o neoliberalismo.

Mas os homens e as mulheres de milho não mudaram a si mesmos para se tornarem sem cor. “Somos todas as cores” disseram entre si os homens e as mulheres de milho, e cometeram outro delito porque, logo em seguida, perguntaram “Por que devíamos perder nossas cores se através delas o mundo e o homem podem continuar girando, resta saber pra onde, mas têm que continuar girando?”.

“Que faremos?”, se perguntaram os homens e as mulheres de milho, “para nós só há a morte ou a prisão?” De longe, os homens armados do Poder ouviram estas perguntas e começaram a perseguir os homens e as mulheres de milho. Prepararam um grupo especial que se dedicava a rastrear as pegadas que as perguntas deixavam na terra e no céu do mundo. Os homens e as mulheres de milho fugiram para não serem agarrados, mas, como sempre, iam fazendo perguntas, e, obviamente, iam deixando pegadas em seu caminho; e os homens armados do Poder os seguiam por toda parte.

Foi assim que os homens e as mulheres de milho chegaram a um grande rio. Esse rio era todos os rios do mundo. Chegavam até ele todas as águas que caminham sobre a terra e dele partiam outra vez. Era um rio e era também um oceano. Nele viviam todos os peixes do mundo e todos os animais da terra vinham até ele para beber de suas águas. Em suas margens crescia todo tipo de árvore e planta e todos os céus lhe serviam de telhado.

Quando os homens e as mulheres de milho, com seus mil rostos, línguas, tamanhos e cores, chegaram a este rio, despencou sobre a terra uma grande tormenta. Tamanha era a chuva que caía sobre o mundo, que se apagaram todas as pegadas das perguntas que os homens e as mulheres de milho haviam deixado; e entre os homens e as mulheres de milho e aqueles que os perseguiam se levantou uma espécie de parede. Os perseguidores, os homens armados do Poder, se confundiram e começaram a lutar entre si; muitos deles foram mortos por suas próprias armas. Mas ainda sobraram alguns. Pouco a pouco a tormenta parou e os homens armados do Poder que haviam sobrado avançaram contra os homens e as mulheres de milho. Os homens e as mulheres de milho procuraram entre as margens e encontraram uma balsa feita de troncos, que tinha um fardo coberto por uma pele pintada com muitas vespas e abelhas. Subiram logo na balsa e remaram até a outra margem. Os homens armados do Poder avisaram os grandes senhores sobre o que estava acontecendo e estes lhes mandaram um grande barco para que pudessem atravessar o rio, atacar e acabar com os homens e as mulheres de milho.

Os homens armados do Poder subiram em seu grande barco e começaram a atravessar o grande rio. Quando estavam na metade do caminho, uma luz de uma perna só, um relâmpago, saiu do leito do rio e quebrou o barco. O rio tragou os homens armados do Poder. Nossos mais antigos antepassados chamavam “Huracán” esta luz de uma perna só.

Do outro lado do rio, os homens e as mulheres de milho continuaram com suas perguntas.

“E agora?”; “Que faremos?”, se perguntavam. Uns diziam que era melhor ficar aí e construir um outro mundo, outros diziam que não, que deviam voltar e se juntar aos demais para libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios. Estes homens e estas mulheres de milho passaram um bom tempo discutindo e falando, porque falar, ouvir e discutir até chegar a um bom acordo entre todos os pensamentos era da sua maneira de ser. Então, o acordo a que chegaram era o de voltar ao mundo do qual vieram e lutar para torná-lo novamente um mundo com muitas cores e perguntas.

Os homens e as mulheres de milho chegaram a este acordo, ficaram contentes e organizaram uma de suas alegrias, ou seja, um de seus bailes, porque, apesar da dor que sentiam, tinham também a esperança da luta que estava pra começar.

Quando o baile acabou, os homens e as mulheres de milho voltaram às perguntas, e agora com uma vontade maior porque ninguém os perseguia e, então, perguntavam: “Como faremos para lutar? Com que meios poderemos enfrentar os homens armados do Poder? Como faremos para derrotar os grandes senhores? Como faremos para libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios? Como defenderemos as cores diante dos que não têm cor? Os homens e as mulheres de milho se faziam muitas perguntas como estas. Então, uma das anciãs disse que nos tempos antigos os mais velhos entre os velhos contavam que, no tempo em que o tempo não era tempo, o um que é dois, Tepeu, Gucumatz, havia dito que o mundo tem que ser feito girar até chegar sabe-se lá aonde, e que teria quem não quer que o mundo gire, mas que fique parado, sem que as coisas mudem, porque quando o mundo gira não há quem está em cima ou embaixo, mas se fica parado há sempre quem está em cima e quem está embaixo; e se o mundo não gira, os de cima e os debaixo são sempre os mesmos.

“Para que o mundo continue girando tem que lembrar do lugar do princípio” disse a anciã que assim havia dito Gucumatz, a maior das sabedorias de corpo longo e de plumas coloridas por vestido. “Sim”, disse a anciã que assim havia dito Tepeu, o guerreiro vencedor de todas as batalhas, “a resposta está neste ponto”. Foi isso que a anciã disse que assim haviam dito os dois que são um, Tepeu, Gucumatz.

“Mas qual é o lugar do princípio? Que ponto é esse?”, se perguntavam os homens e as mulheres de milho. E começaram as falações e as discussões. Um dos anciãos entre os homens de milho disse que o princípio havia sido a água, porque, de início, havia só a água na qual vivia o dois que é um sete vezes, o que fez nascer o mundo. “É o rio”, disse o ancião. E todos e todas foram ao rio e aí encontraram a balsa com a qual haviam feito a travessia e tiraram a pele pintada de abelhas e vespas que cobria o fardo. Encontraram aí 7 espadas, 7 escudos, 7 lanças, 7 flechas, 7 punhos, 7 cascos e 7 botas.

Os homens e as mulheres de milho ficaram muito contentes. “Lutaremos com isso contra os homens armados do Poder!”, disseram e, felizes que estavam, fizeram um baile sem ter o cuidado de amarrar a balsa; o rio a levou embora, e quando se deram conta a balsa já não estava mais aí.“E agora, como atravessaremos o rio para lutar contra os homens armados do Poder e para libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios?”, se perguntavam angustiados os homens e as mulheres de milho. “Vamos procurar algo que nos ajude a fazer a travessia”, disseram os mais velhos. Pegaram, então, uma grande árvore que pudesse servir de ponte, mas o rio era muito largo e não havia árvore que fosse suficientemente grande para poder atravessar de um lado ao outro. Estavam assim quando viram que algumas crianças estavam brincando no rio com uma danta. Montados nela como se fosse um barco, as crianças navegavam pelo rio. Então os homens e as mulheres de milho disseram: “Vamos falar com a danta e vamos ver se ela quer nos levar até o outro lado do rio”.

Os homens e as mulheres de milho foram falar com a danta, contaram a ela o seu problema e a danta concordou em levá-los para o outro lado. Então, a danta, que era muito grande e uma boa nadadora, começou a levar os homens e as mulheres de milho para o outro lado do rio. Mas, como havia muitos homens e muitas mulheres de milho, ela demorou muito para levar todos e todas para o outro lado.

E aconteceu que por ter ficado na água por tanto tempo, a danta se tornou meio cavalo e meio peixe, ficou com esta forma e os homens e as mulheres de milho chamaram “manati” esta danta que serviu de ponte para voltar ao mundo e lutar pelo liberdade das perguntas.

Desde então, o manati anda pelos grandes rios para ver se alguém precisa de ajuda para passar ao outro lado, e é por isso que uma danta e um manati são tão parecidos.

E então, já com suas armas, os homens e as mulheres de milho marcharam contra os homens armados do Poder. Lutaram e venceram. Os homens e as mulheres de milho combateram em pé de igualdade. E os homens armados do Poder não queriam acreditar que também as mulheres de milho combatiam. Ficaram muito confusos e foram logo derrotados.

Os homens e as mulheres de milho foram embora e não atacaram os palácios dos grandes senhores; não, no lugar de fazer isso foram aos presídios e aos cemitérios e libertaram todas as perguntas que aí estavam presas e mortas. Livres e vivas, as perguntas destruíram o palácio dos grandes senhores. Por isso, dizem que os homens e as mulheres de milho não lutam pelo Poder, e sim para que o mundo deixe de ficar parado, com uns poucos em cima e muitos outros embaixo, lutam para que o mundo volte a girar e continue girando até chegar sabe-se lá aonde. Os homens e as mulheres de milho lutam para continuar empurrando o mundo e fazê-lo girar.

O Velho Antônio renova o seu cigarro e eu reabasteço o cachimbo. A mesma luz do fogo acende o cachimbo e o cigarro. O Velho Antônio continua:

Desde então, a história se repete. De vez em quando há quem se opõe a que o mundo gire e há quem luta para que entre os homens e as mulheres não exista o embaixo e o em cima.

Ninguém sabe onde está agora esse rio que é todos os rios, mas contam os velhos entre os mais velhos de nossos antepassados que nele se encontram a rebeldia e a dignidade, e que a ele chegam os sedentos que se vão igualmente sedentos, mas sabendo o porquê de sua sede e como saciá-la. Contam que o dois que é um sete vezes, tem muitos nomes neste rio que é todos os rios. Seus nomes são muitos e diferentes porque muitos e diferentes são os rios que a ele chegam e dele partem. Mas o um que é dois por sete vezes é o mesmo. Contam os mais velhos que o um é o humano, e que o humano é digno e rebelde e por isso é dois e um. Mas este um que é dois tem sete rostos por sete vezes sete.

O Velho Antônio se cala. A madrugada continua caminhando e uma nuvem desenha um ponto de interrogação no céu que vai logo clareando.

* * *

Irmãos e irmãs:

Lembrei desta história que o Velho Antônio me contou justo agora que preparo estas palavras para vocês, para os homens e as mulheres da América e de outros continentes que estarão presentes neste 2° Encontro Americano pela Humanidade e contra o neoliberalismo.

Volto a lembrá-la quando preparo estas palavras que serão ouvidas em Belém do Pará, no Amazonas, no Brasil.

Lembrei dela agora, quando ao ler alguma coisa para tentar imaginar o lugar que agora é a sede de um encontro de rebeldia e dignidade, encontrei que o nome de “Amazonas”, que se dá a este grande “rio-oceano” que deságua em Belém, pode vir de duas fontes.

A primeira é a história contada por Francisco de Orellana, conquistador às ordens de Pizarro, que chegou a este grande rio depois de atravessar os Andes e demorou 8 meses para chegar ao seu desaguadouro. Orellana contou que durante a viagem pelo rio foi atacado por uma tribo na qual as mulheres, como as guerreiras amazonas da mitologia grega, lutavam ao lado dos homens.

A outra é parte da mesma história que aconteceu com Francisco Orellana. Quando voltou à Espanha contou sobre as mulheres guerreiras deste grande rio, e contou também que havia muito ouro. Obteve a autorização para voltar e tentar conquistar este território. No grande rio, Orellana foi derrotado pelos indígenas e a sua embarcação foi destruída perto do desaguadouro do “rio-oceano”. Por isso, se diz também que “Amazonas” vem da palavra indígena “Amassona”, que significa “barco destruído”.

Leio também que no Brasil vivem Ogum, deus da guerra, e Xangô, deus da justiça. Que Ogum é sete: Ogum Beira-mar, Ogum Rompe-mato, Ogum Megê, Ogum Naruê, Ogum Matinata, Ogum Yaea e Ogundelê. E que tem um caboclo com 7 espadas, um com 7 lanças e outro com 7 escudos.

Não sei se o grande rio que era todos os rios é o rio “Sem Nome” ou é o “Amazonas”.

Tampouco sei se as mulheres de milho, as guerreiras, foram as que combateram com os homens que derrotaram Orellana.

Não sei se Tepeu assume o nome de Ogum e Gucumatz o de Xangô.

Não sei se o manati amazônico é muito parecido com a danta chiapaneca.

Não sei se todas estas são pontes e passagens que unem os povos deste grande continente, que unem o México ao Brasil, Chiapas a Belém do Pará, a Selva Lacandona com a Selva Amazônica.

Sei o que me disse o Velho Antônio, que o rio que é todos os rios tem muitos nomes, e que são muitos e diferentes os dois que são um por sete vezes.

Sei também que hoje, em Belém do Pará, Brasil, se fazem presentes alguns dos melhores homens e algumas das melhores mulheres deste continente.

Sei que mesmo sendo todos e todas diferentes e distintos, são convocados pela mesma dignidade rebelde.

E sei que todos e todas têm o mesmo compromisso: empurrar o mundo para que continue girando e não fique parado, para que não continue tendo uns poucos em cima e muitos embaixo.

Sei, e todos eles e todas elas também sabem, que a nossa luta é pela humanidade e contra o neoliberalismo.

Saúdo vocês irmãos e irmãs do continente americano!

Com vocês, nós zapatistas lutamos novamente para exigir que, em toda a América, para todos e todas existam ...

JUSTIÇA!
LIBERDADE!
DEMOCRACIA!
Na América que pergunta, dezembro de 1999.

 

EZLN - Chiapas, México; Belém do Pará, Brasil, dezembro de 1999.