Mas
os homens e as mulheres de milho não mudaram a si mesmos para
se tornarem sem cor. “Somos todas as cores” disseram entre
si os homens e as mulheres de milho, e cometeram outro delito porque,
logo em seguida, perguntaram “Por que devíamos perder
nossas cores se através delas o mundo e o homem podem continuar
girando, resta saber pra onde, mas têm que continuar girando?”.
“Que
faremos?”, se perguntaram os homens e as mulheres de milho,
“para nós só há a morte ou a prisão?”
De longe, os homens armados do Poder ouviram estas perguntas e começaram
a perseguir os homens e as mulheres de milho. Prepararam um grupo
especial que se dedicava a rastrear as pegadas que as perguntas deixavam
na terra e no céu do mundo. Os homens e as mulheres de milho
fugiram para não serem agarrados, mas, como sempre, iam fazendo
perguntas, e, obviamente, iam deixando pegadas em seu caminho; e os
homens armados do Poder os seguiam por toda parte.
Foi
assim que os homens e as mulheres de milho chegaram a um grande rio.
Esse rio era todos os rios do mundo. Chegavam até ele todas
as águas que caminham sobre a terra e dele partiam outra vez.
Era um rio e era também um oceano. Nele viviam todos os peixes
do mundo e todos os animais da terra vinham até ele para beber
de suas águas. Em suas margens crescia todo tipo de árvore
e planta e todos os céus lhe serviam de telhado.
Quando
os homens e as mulheres de milho, com seus mil rostos, línguas,
tamanhos e cores, chegaram a este rio, despencou sobre a terra uma
grande tormenta. Tamanha era a chuva que caía sobre o mundo,
que se apagaram todas as pegadas das perguntas que os homens e as
mulheres de milho haviam deixado; e entre os homens e as mulheres
de milho e aqueles que os perseguiam se levantou uma espécie
de parede. Os perseguidores, os homens armados do Poder, se confundiram
e começaram a lutar entre si; muitos deles foram mortos por
suas próprias armas. Mas ainda sobraram alguns. Pouco a pouco
a tormenta parou e os homens armados do Poder que haviam sobrado avançaram
contra os homens e as mulheres de milho. Os homens e as mulheres de
milho procuraram entre as margens e encontraram uma balsa feita de
troncos, que tinha um fardo coberto por uma pele pintada com muitas
vespas e abelhas. Subiram logo na balsa e remaram até a outra
margem. Os homens armados do Poder avisaram os grandes senhores sobre
o que estava acontecendo e estes lhes mandaram um grande barco para
que pudessem atravessar o rio, atacar e acabar com os homens e as
mulheres de milho.
Os
homens armados do Poder subiram em seu grande barco e começaram
a atravessar o grande rio. Quando estavam na metade do caminho, uma
luz de uma perna só, um relâmpago, saiu do leito do rio
e quebrou o barco. O rio tragou os homens armados do Poder. Nossos
mais antigos antepassados chamavam “Huracán” esta
luz de uma perna só.
Do
outro lado do rio, os homens e as mulheres de milho continuaram com
suas perguntas.
“E
agora?”; “Que faremos?”, se perguntavam. Uns diziam
que era melhor ficar aí e construir um outro mundo, outros
diziam que não, que deviam voltar e se juntar aos demais para
libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios.
Estes homens e estas mulheres de milho passaram um bom tempo discutindo
e falando, porque falar, ouvir e discutir até chegar a um bom
acordo entre todos os pensamentos era da sua maneira de ser. Então,
o acordo a que chegaram era o de voltar ao mundo do qual vieram e
lutar para torná-lo novamente um mundo com muitas cores e perguntas.
Os
homens e as mulheres de milho chegaram a este acordo, ficaram contentes
e organizaram uma de suas alegrias, ou seja, um de seus bailes, porque,
apesar da dor que sentiam, tinham também a esperança
da luta que estava pra começar.
Quando
o baile acabou, os homens e as mulheres de milho voltaram às
perguntas, e agora com uma vontade maior porque ninguém os
perseguia e, então, perguntavam: “Como faremos para lutar?
Com que meios poderemos enfrentar os homens armados do Poder? Como
faremos para derrotar os grandes senhores? Como faremos para libertar
as perguntas dos presídios e dos cemitérios? Como defenderemos
as cores diante dos que não têm cor? Os homens e as mulheres
de milho se faziam muitas perguntas como estas. Então, uma
das anciãs disse que nos tempos antigos os mais velhos entre
os velhos contavam que, no tempo em que o tempo não era tempo,
o um que é dois, Tepeu, Gucumatz, havia dito que o mundo tem
que ser feito girar até chegar sabe-se lá aonde, e que
teria quem não quer que o mundo gire, mas que fique parado,
sem que as coisas mudem, porque quando o mundo gira não há
quem está em cima ou embaixo, mas se fica parado há
sempre quem está em cima e quem está embaixo; e se o
mundo não gira, os de cima e os debaixo são sempre os
mesmos.
“Para
que o mundo continue girando tem que lembrar do lugar do princípio”
disse a anciã que assim havia dito Gucumatz, a maior das sabedorias
de corpo longo e de plumas coloridas por vestido. “Sim”,
disse a anciã que assim havia dito Tepeu, o guerreiro vencedor
de todas as batalhas, “a resposta está neste ponto”.
Foi isso que a anciã disse que assim haviam dito os dois que
são um, Tepeu, Gucumatz.
“Mas
qual é o lugar do princípio? Que ponto é esse?”,
se perguntavam os homens e as mulheres de milho. E começaram
as falações e as discussões. Um dos anciãos
entre os homens de milho disse que o princípio havia sido a
água, porque, de início, havia só a água
na qual vivia o dois que é um sete vezes, o que fez nascer
o mundo. “É o rio”, disse o ancião. E todos
e todas foram ao rio e aí encontraram a balsa com a qual haviam
feito a travessia e tiraram a pele pintada de abelhas e vespas que
cobria o fardo. Encontraram aí 7 espadas, 7 escudos, 7 lanças,
7 flechas, 7 punhos, 7 cascos e 7 botas.
Os
homens e as mulheres de milho ficaram muito contentes. “Lutaremos
com isso contra os homens armados do Poder!”, disseram e, felizes
que estavam, fizeram um baile sem ter o cuidado de amarrar a balsa;
o rio a levou embora, e quando se deram conta a balsa já não
estava mais aí.“E
agora, como atravessaremos o rio para lutar contra os homens armados
do Poder e para libertar as perguntas dos presídios e dos cemitérios?”,
se perguntavam angustiados os homens e as mulheres de milho. “Vamos
procurar algo que nos ajude a fazer a travessia”, disseram os
mais velhos. Pegaram, então, uma grande árvore que pudesse
servir de ponte, mas o rio era muito largo e não havia árvore
que fosse suficientemente grande para poder atravessar de um lado
ao outro. Estavam assim quando viram que algumas crianças estavam
brincando no rio com uma danta. Montados nela como se fosse um barco,
as crianças navegavam pelo rio. Então os homens e as
mulheres de milho disseram: “Vamos falar com a danta e vamos
ver se ela quer nos levar até o outro lado do rio”.
Os
homens e as mulheres de milho foram falar com a danta, contaram a ela
o seu problema e a danta concordou em levá-los para o outro lado.
Então, a danta, que era muito grande e uma boa nadadora, começou
a levar os homens e as mulheres de milho para o outro lado do rio. Mas,
como havia muitos homens e muitas mulheres de milho, ela demorou muito
para levar todos e todas para o outro lado.
E
aconteceu que por ter ficado na água por tanto tempo, a danta
se tornou meio cavalo e meio peixe, ficou com esta forma e os homens
e as mulheres de milho chamaram “manati” esta danta que
serviu de ponte para voltar ao mundo e lutar pelo liberdade das perguntas.
Desde
então, o manati anda pelos grandes rios para ver se alguém
precisa de ajuda para passar ao outro lado, e é por isso que
uma danta e um manati são tão parecidos.
E
então, já com suas armas, os homens e as mulheres de
milho marcharam contra os homens armados do Poder. Lutaram e venceram.
Os homens e as mulheres de milho combateram em pé de igualdade.
E os homens armados do Poder não queriam acreditar que também
as mulheres de milho combatiam. Ficaram muito confusos e foram logo
derrotados.
Os
homens e as mulheres de milho foram embora e não atacaram os
palácios dos grandes senhores; não, no lugar de fazer
isso foram aos presídios e aos cemitérios e libertaram
todas as perguntas que aí estavam presas e mortas. Livres e
vivas, as perguntas destruíram o palácio dos grandes
senhores. Por isso, dizem que os homens e as mulheres de milho não
lutam pelo Poder, e sim para que o mundo deixe de ficar parado, com
uns poucos em cima e muitos outros embaixo, lutam para que o mundo
volte a girar e continue girando até chegar sabe-se lá
aonde. Os homens e as mulheres de milho lutam para continuar empurrando
o mundo e fazê-lo girar.
O
Velho Antônio renova o seu cigarro e eu reabasteço o
cachimbo. A mesma luz do fogo acende o cachimbo e o cigarro. O Velho
Antônio continua:
Desde
então, a história se repete. De vez em quando há
quem se opõe a que o mundo gire e há quem luta para
que entre os homens e as mulheres não exista o embaixo e o
em cima.
Ninguém
sabe onde está agora esse rio que é todos os rios, mas
contam os velhos entre os mais velhos de nossos antepassados que nele
se encontram a rebeldia e a dignidade, e que a ele chegam os sedentos
que se vão igualmente sedentos, mas sabendo o porquê
de sua sede e como saciá-la. Contam que o dois que é
um sete vezes, tem muitos nomes neste rio que é todos os rios.
Seus nomes são muitos e diferentes porque muitos e diferentes
são os rios que a ele chegam e dele partem. Mas o um que é
dois por sete vezes é o mesmo. Contam os mais velhos que o
um é o humano, e que o humano é digno e rebelde e por
isso é dois e um. Mas este um que é dois tem sete rostos
por sete vezes sete.
O
Velho Antônio se cala. A madrugada continua caminhando e uma
nuvem desenha um ponto de interrogação no céu
que vai logo clareando.
*
* *
Irmãos
e irmãs:
Lembrei
desta história que o Velho Antônio me contou justo agora
que preparo estas palavras para vocês, para os homens e as mulheres
da América e de outros continentes que estarão presentes
neste 2° Encontro Americano pela Humanidade e contra o neoliberalismo.
Volto
a lembrá-la quando preparo estas palavras que serão
ouvidas em Belém do Pará, no Amazonas, no Brasil.
Lembrei
dela agora, quando ao ler alguma coisa para tentar imaginar o lugar
que agora é a sede de um encontro de rebeldia e dignidade,
encontrei que o nome de “Amazonas”, que se dá a
este grande “rio-oceano” que deságua em Belém,
pode vir de duas fontes.
A
primeira é a história contada por Francisco de Orellana,
conquistador às ordens de Pizarro, que chegou a este grande
rio depois de atravessar os Andes e demorou 8 meses para chegar ao
seu desaguadouro. Orellana contou que durante a viagem pelo rio foi
atacado por uma tribo na qual as mulheres, como as guerreiras amazonas
da mitologia grega, lutavam ao lado dos homens.
A
outra é parte da mesma história que aconteceu com Francisco
Orellana. Quando voltou à Espanha contou sobre as mulheres
guerreiras deste grande rio, e contou também que havia muito
ouro. Obteve a autorização para voltar e tentar conquistar
este território. No grande rio, Orellana foi derrotado pelos
indígenas e a sua embarcação foi destruída
perto do desaguadouro do “rio-oceano”. Por isso, se diz
também que “Amazonas” vem da palavra indígena
“Amassona”, que significa “barco destruído”.
Leio
também que no Brasil vivem Ogum, deus da guerra, e Xangô,
deus da justiça. Que Ogum é sete: Ogum Beira-mar, Ogum
Rompe-mato, Ogum Megê, Ogum Naruê, Ogum Matinata, Ogum
Yaea e Ogundelê. E que tem um caboclo com 7 espadas, um com
7 lanças e outro com 7 escudos.
Não
sei se o grande rio que era todos os rios é o rio “Sem
Nome” ou é o “Amazonas”.
Tampouco
sei se as mulheres de milho, as guerreiras, foram as que combateram
com os homens que derrotaram Orellana.
Não
sei se Tepeu assume o nome de Ogum e Gucumatz o de Xangô.
Não
sei se o manati amazônico é muito parecido com a danta
chiapaneca.
Não
sei se todas estas são pontes e passagens que unem os povos
deste grande continente, que unem o México ao Brasil, Chiapas
a Belém do Pará, a Selva Lacandona com a Selva Amazônica.
Sei
o que me disse o Velho Antônio, que o rio que é todos
os rios tem muitos nomes, e que são muitos e diferentes os
dois que são um por sete vezes.
Sei
também que hoje, em Belém do Pará, Brasil, se
fazem presentes alguns dos melhores homens e algumas das melhores
mulheres deste continente.
Sei
que mesmo sendo todos e todas diferentes e distintos, são convocados
pela mesma dignidade rebelde.
E
sei que todos e todas têm o mesmo compromisso: empurrar o mundo
para que continue girando e não fique parado, para que não
continue tendo uns poucos em cima e muitos embaixo.
Sei,
e todos eles e todas elas também sabem, que a nossa luta é
pela humanidade e contra o neoliberalismo.
Saúdo
vocês irmãos e irmãs do continente americano!
Com
vocês, nós zapatistas lutamos novamente para exigir que,
em toda a América, para todos e todas existam ...
JUSTIÇA!
LIBERDADE!
DEMOCRACIA!
Na América que pergunta, dezembro de 1999.