Chavismo e Anarquismo hoje na Venezuela (2007) * Desde os editores de EL LIBERTÁRIO, eis nossa resposta às habituais críticas que nos fazem amiúde a direita rústica ou essa esquerda pseudo-revolucionária do chavismo. Deveríamos/poderíamos/gostaríamos de dizer mais sobre este tema, mas no momento condensamos e atualizamos aqui o essencial de nossa perspectiva, exprimida antes mas que vale a pena ser repetida. P. Hugo Chavez fala de socialismo, soberania popular, participação. Por que estar em desacordo se isto corresponde ao ideal anarquista? R. As diatribes de Chavez são abundantes. Mas ele próprio reiterou que não se deveria confiar no que ele fazia ou dizia. Assim, seu "socialismo do século XXI", na realidade, não ultrapassou o simples paternalismo e o capitalismo de Estado, tendo por base a abundância dos petrodólares. A soberania popular é a soberania de uma elite de militares, de empresas transnacionais e da "burguesia popular" nascente. Basta ver a recente concessão de poderes extraordinários à Presidência, ou a maneira como zombam dos aliados que exprimiram reservas ante a decisão de construir um partido oficial único, para ter uma idéia do que o "Comandante" entende por participação. No anarquismo, não aceitamos liderança permanente e onipotente, exceto unicamente aquelas que são constantemente autenticadas por aqueles a quem, em uma circunstância particular, eles representam, e isso é a expressão da soberania e da participação, e esse processo não significa, nem de uma maneira nem de outra, que não nos afastamos do poder hierárquico e do Estado. P. A intenção proclamada do governo é fazer uma revolução pacífica e democrática. Por que não esperar que a revolução aprofunde-se para emitir juízos sobre o processo? R. Chavez fala de revolução, mas sua palavra não é suficiente para crer que ele a faça e que deva ser apoiado. Muitos tiranos e demagogos neste continente disseram a mesma coisa, sem que houvesse razões para apoiá-los. Em nosso caso, há uma "revolução" no sentido que nosso modo de vida foi desarticulado em muitos sentidos, mas o que vemos de construção não nos inclina a apoiá-lo. Permitir sua consolidação é tornar as coisas mais difíceis para mudar, porque as mudanças que os anarquistas propõem vão em uma direção muito diferente daquela tomada pelo "processo", que, com mais de oito anos de existência, mostra-se repleto de autoritarismo, burocraticamente ineficaz, infectado pela corrupção de maneira estrutural, com orientações, pessoas, atitudes que não podemos apoiar. P. Ainda que seu projeto não seja libertário, o chavismo faz apelo ao confronto com a oligarquia e com o imperialismo. Por que não estabelecer relações estratégicas com eles e mais tarde, uma vez destronada a oligarquia e a agressão imperialista, tentar fazer a revolução anarquista? R. As alianças estratégicas são um modo de ação política para ganhar o controle do Estado por um grupo de aliados, enquanto nós, anarquistas, buscamos dissolver o Estado graças à participação de todos e todas. O fracasso do que se chama reação e oligarquia (apelidos com vistas claramente propagandistas) servirá unicamente para consolidar no interior do poder aqueles que ganham, aqueles que necessariamente formarão a nova oligarquia porque assim impõe a lógica estatista, assim como se produziu na URSS, China ou Cuba. Isso tornará a revolução anarquista mais difícil, e a Espanha de 1936 foi um bom exemplo. Também é inexato identificar o projeto chavista como estando em oposição ao golpe de Estado, quando, de fato, seu objetivo original era fazer um golpe de Estado militar, e que ele gaba constantemente em sua identificação com a linguagem e as práticas de caserna. A luta contra o governo da minoria (oligarquia) no interior dos regimes estatistas reduz-se a substituir alguns por outros. No que concerne o combate contra o imperialismo, se prestarmos atenção ao que eles propõem e aplicam em matéria de petróleo, de minerais, de agricultura, de indústria, de plano de trabalho etc., eles mostram-se continuar a ser os serviçais do Império e não seus inimigos (Para mais detalhes sobre os eixos estratégicos ante o capital transnacional e os interesses imperialistas, ver as publicações do El Libertário: www.nodo50.org/ellibertario P. Agora, o governo venezuelano anuncia uma explosão do poder comunal, com a implantação maciça e autonomia de poder aos Conselhos Comunais, organizações comunitárias e horizontais de participação popular. Os anarquistas apóiam essas estruturas de base? R. O que começamos a ver da instauração e do funcionamento dos conselhos comunais indica que sua existência e sua capacidade de ação dependerão de sua lealdade ao aparelho governamental, o qual se afirma ao deixar nas mãos do Presidente a faculdade jurídica de aprovar ou não as ditas organizações, como o descreve a lei correspondente. Nesse âmbito, há experiências na Venezuela, onde muitos agrupamentos de base (como os sindicatos, para não se ir mais longe) assemelham-se aos tramways, que recebem a corrente elétrica a partir de cima. Certamente, há tentativas para um real agrupamento de baixo para cima, e isso acontece no âmbito da vizinhança, operários, camponeses, indígenas, ecologistas, estudantes, setores culturais etc., malgrado o fato de não contar com a simpatia oficial. Parece-nos que a submissão legal, funcional e financeira dos conselhos comunais ante o poder estatista será um severo obstáculo para servir de base a um movimento autônomo. Isso vale também para os anunciados conselhos de trabalhadores nas empresas, nos quais se entrevê um meio de anular um sindicato independente. P. Por que os anarquistas criticam as Forças Armadas Venezuelanas - de origem claramente populares e nacionalistas - e sua capacidade de apoiar um projeto revolucionário? R. Em todo exército moderno, desde a Europa dos séculos XVII e XVIII até a América Latina de hoje, a maior parte das tropas é recrutada nos setores populares. Excetuando a origem social da maioria dos integrados, a razão de ser do exército é a defesa de uma estrutura de poder e de seus detentores, eis por que ele jamais poderá apoiar uma revolução em favor dos oprimidos. Trata-se apenas de trocar uma pessoa por uma outra e algumas regras da estrutura do poder, mas este não será eliminado porque o comando e a obediência são sua essência. Por isso não apoiamos nenhum exército, nenhuma polícia ou privilegiados que possam utilizar para seu benefício a força ou as armas contra outras pessoas. O nacionalismo não é uma posição que o anarquismo aprove, porque implica circunscrever os interesses de certas pessoas, encerradas artificialmente por um Estado em um certo território-nação, as quais consideram-se diferentes e inclusive superiores às outras. Somos inimigos de todos os tipos de privilégios por nascimento, raça, cultura, religião ou local de origem. Além disso, a história nefasta da estrutura militar venezuelana fala por si mesma: institucionalizada pelo tirano Gómez para liquidar as aspirações federais regionais; consolidada em sua vocação repressiva durante a luta contra a insurreição de esquerda durante os anos 60; e executora do massacre de fevereiro de 1989. P. No caso de os anarquistas venezuelanos serem descarnados – “escuálidos” (apelido pelo qual o chavismo faz alusão a seus opositores) suportarão, por isso, a oposição social-democrata e de direita? R. Descarnados é uma qualificação claramente midiática [...]. Em todo o caso, se querem com isso nomear aqueles que não admitem que se atente contra a liberdade e a autonomia para submeter-lhes uma imposição autoritária de uma pessoa, de um partido, de uma ideologia, então, somos descarnados. E se, com isso, querem dizer que apoiamos correntes identificadas com o liberalismo econômico, com a desqualificação quase racista das elites em relação à maioria da população, com a escroqueria da democracia representativa ou com o retorno às formas de organização sociopolíticas ultrapassadas pela história, não somos descarnados. Na realidade, não apoiamos o regime de Chavez nem seus opositores eleitorais; podemos estar de acordo com algumas ações de uns e dos outros, com algumas declarações de uns e dos outros, entretanto, fundamentalmente, criticamos a maioria dos fatos e dos discursos de uns e dos outros. Repudiamos a frustração reiterada das esperanças das pessoas que apoiaram Chavez, mas recusamos confirmar as manobras politiqueiras da tropa de oportunistas que se dizem oposição institucional. E, sobretudo, não podemos, por razões de princípio, apoiar aqueles que fundam a busca de uma vida melhor em qualquer tipo de subordinação das pessoas à hierarquia estatista, como querem fazê-lo os dois lados. P. Os anarquistas apenas criticam, sem contribuir para mudar essa situação. Qual é a vossa proposição para transformar positivamente a realidade venezuelana atual? R. Nossa luta não é conjuntural ou circunstancial, é por uma nova sociedade que devemos optar; pela vida coletiva e individual. É a luta pela existência de uma sociedade sem classes, a qual é indubitavelmente veiculada, pelo anarquismo, para abolição do Estado. Por esta razão, segundo o nosso critério, a autenticidade de qualquer revolução que seja deve ser feita pela real e efetiva liquidação ? a partir do momento em que ele se produz ? do aparelho estatista e de todo o poder hierárquico. Não cessamos de insistir sobre a exigência de começar a liquidação do Estado com, e não depois, a demolição da estrutura clássica da sociedade. Entendemos a revolução não como conquista do Estado mas como a supressão dele. Nesse sentido, cremos na tomada de posse da terra e dos meios de produção, diretamente pelos trabalhadores, incluindo a necessidade de defender por qualquer meio, como a expropriação, ou melhor, a restituição de toda a riqueza àqueles que são seus legítimos proprietários, aqueles que a criaram. Defendemos, portanto, que uma proposição positiva para a atual realidade venezuelana venha pela promoção da autonomia dos movimentos sociais do país, pois neles encontra-se o espaço de tensão necessária para o desenrolar e a influência dos princípios de base do ideal anarquista: ação direta, autogestão, liberdade e igualdade na solidariedade.