Perspectivas para o Movimento Anarquista no século XXI



            Para responder à questão proposta pelo título desta palestra, posso dizer, sem pretensão alguma, que as soluções a serem encontradas e utilizadas para a ação do movimento anarquista neste novo século, deverão ser, fatalmente, as únicas que poderão salvar a humanidade do fio da navalha em que vivemos atualmente, devido aos extraordinários progressos tecnológicos e científicos alcançados e manipulados pelo capitalismo que se tornou hegemônico no mundo de hoje. Assim, antes de analisarmos as possíveis soluções, acho importante à realização de um diagnóstico, através de reflexões honestas e sinceras sobre a realidade atual.
            Acho necessário, para isso, iniciarmos levantando as reais ameaças para a humanidade nesta virada do século. A primeira e que encerra potencialmente a morte da humanidade, é a nuclear, se for desencadeada uma guerra. Armas nucleares se disseminam pelo mundo e isso é um perigo com que o próximo século vai se defrontar.
            Temos, a seguir, a ameaça ecológica, da degradação da biosfera, que o progresso científico e tecnológico agrava. Progresso que já havia organizado a ameaça nuclear. Agora novas ameaças despontam no horizonte, como a que surge do desenvolvimento da inteligência artificial, susceptível não apenas de parasitas, mas também de subjugar, dominar os seres humanos.
            A hipótese de que o robô suplantaria o homem não é absurda, sequer futurista. Na civilização contemporânea, a técnica e as máquinas foram concebidas para subjugar a energia – e nós vimos os operários sendo subjugados por tais máquinas nas cadências vertiginosas da produção industrial. Com os sucessivos experimentos, as máquinas se dotaram de uma lógica artificial bem mais elaborada, determinista, programada, estritamente monitorada e hiperespecializada, lógica que se aplica hoje ao conjunto da sociedade.
            Trata-se de uma lógica fundada unicamente no cálculo, que ignora tudo com o que se relaciona a vida humana, os sentimentos, as emoções, as paixões. Essa gente que chamamos de tecnocratas, que só trabalha com as variáveis do cálculo, que aplica a todos os problemas humanos e sociais essa lógica artificial. Pode-se dizer, portanto, que a inteligência artificial já se encontra transplantada para o fosso interior de certa categoria de seres humanos chamados de tecnocratas.
            Num futuro não muito distante, essa consciência artificial não somente adquirirá a autonomia como ainda poderá desenvolver seu poder com base nas contribuições que o homem lhe ofereceu. Mas é também possível que haja uma tomada de consciência que produza uma luta entre, digamos, o que é quantitativo e mensurável e a qualidade de vida. “Iremos escolher entre o melhor ou o menos inseguro, o biológico ou a vaca louca”, como exemplificou Edgard Morin. Temos que defender e desenvolver a qualidade de vida, eis um dos grandes desafios que nos interpelam.
            A estes se juntam ainda os antigos desafios que acompanham a humanidade, desde os seus primórdios, que se definem como barbárie humana e que se deflagram um pouco por toda à parte. Basta ver o teatro de operações no mundo, hoje, mais de 30 conflitos nos dez últimos anos. Mais inquietante ainda é a aliança da velha barbárie com a nova barbárie, a tecno científica. Essa se tornou incontrolável, ou quase, na medida em que o capitalismo, rompendo as barreiras que o regulavam, ficou praticamente absoluto a partir dos anos 90. No que vai desembocar o mundo no bojo da engrenagem formada pela técnica, a Ciência, o Capitalismo e o burocratismo desabridos? Eis aí a ameaça profunda que recai sobre a humanidade, para não falar de outras.
            Pode-se se supor que a tentação autoritária espreita o novo século... Até o presente, o totalitarismo tem sido um sistema monopolista de partido único, que controla a sociedade por meio da propaganda, da intimidação, da polícia e da prisão. O novo totalitarismo, se de fato se produzir, vai utilizar outros mecanismos de controle, ou seja, as manipulações genéticas e cerebrais. Eis aí um novo aspecto da luta entre a humanidade e os produtos que ela terá gerado e que alcançarão suas autonomias para satisfazer ambições de poder e de dominação.
            Por enquanto, a bioética se encontra em estado embrionário nos comitês de estudo e em algumas declarações de intenção. Seja como for, a bioética, uma vez sistematizada em leis, terá de considerar o aspecto positivo das intenções genéticas que viram os transplantes de órgãos, as reparações de tecidos do corpo humano, a substituição de genes deficientes. O problema grave é o das possíveis manipulações destinadas a “normalizar” as pessoas. Já a clonagem para a reprodução integral do homem tende a ser proibida. Mesmo se as ciências adquirirem enormes poderes de manipulação e de destruição, temos de reconhecer seus aspectos edificantes, igualmente incomensuráveis.
            Fala-se muito da necessidade de um novo contrato social capaz de conciliar o progresso técnico-científico com a inserção dos jovens na vida ativa. Mas, a verdade é que o contrato social nunca existiu. É um ideal. Os jovens aprendem facilmente o manejo das novas tecnologias. O verdadeiro problema é o da educação, que deveria sair desse esquema que fragmenta e segmenta os conhecimentos e fazer com que estes se integrem num conjunto global. Por outro lado, é preciso que os elementos da cultura científica sejam refletidos, tenham desdobramentos na cultura humanística.
            Entre os anos 60 e 70, os adolescentes começaram a lutar por sua autonomia dentro da sociedade. Hoje, com o essencial dessa autonomia garantida, eles querem saber se vão ser integrados na vida ativa e como. A inserção através de um trabalho tedioso e triste coloca um problema às vezes tão difícil quanto o desemprego. Eles se debatem entre aspiração e revoltas, sonham com uma outra vida, lembram Rimbaud, já num plano de cultura de massa, James Dean. Ao mesmo tempo, nos subúrbios pobres da Europa e da América do Sul, dos Estados Unidos e do Brasil, por exemplo, você vê a constituição de gangues de adolescentes que se entregam ao crime organizado na esteira da desintegração social e familiar. Estruturadas segundo o velho modelo das máfias ibero-americanas, essas gangues se deram idênticos códigos de conduta, fundados na noção de honra, vingança e respeito ao chefe, criaram um tipo de economia informal, à base de roubos e tráfico de drogas e fazem figura, em suma, de uma outra sociedade. Não se pode remediar essa situação sem se cuidar do conjunto da sociedade que, nos seus escalões privilegiados, se encontre enferma de egoísmos suicidas.
            A última ameaça à humanidade que pretendo ainda citar é a ideologia da globalização, como ela vem sendo anunciada e divulgada pelo pensamento capitalista do liberalismo econômico. Na verdade, o que realmente pretendem é estender ao máximo o seu atual poder até a dominação final, global, por via econômica e através da tecnologia científica sobre toda a humanidade.
            Como todas as outras ameaças já consideradas, a globalização seria também algo positivo e útil para o presente e para o futuro dos homens, não fosse o modo cínico como vem sendo concebida. Claro que a globalização do conhecimento, da cultura, do direito à vida e à sobrevivência, sobretudo à liberdade e à justiça, fossem estendidos a todos os cidadãos do mundo, independentemente de sua situação econômica, de sua nacionalidade, raça e credo, seria o ideal e a solução perfeita para os nossos principais problemas como cidadãos do mundo.
            Mas a globalização que está sendo proposta não possui essa ética social. O que ela realmente pretende é a dominação autoritária de um país (o mais rico sobre todos os outros de modo global). Para mim, isso será, certamente, um genocídio final, que terminará pela extinção da espécie humana sobre a Terra, assim como se fossem feitas explodir as bombas nucleares acumuladas hoje no mundo, numa guerra qualquer, de pretensões e conseqüências globais.
            Terminado o levantamento diagnóstico sobre as possíveis ameaças à vida da humanidade neste novo século, acho agora ser possível refletir sobre as possíveis soluções para o enfrentamento dessas ameaças. Na verdade, essa questão precisa ser atualizada também do ponto de vista ecológico. Porque todas as reais ameaças à humanidade engendradas no século passado, como o desenvolvimento antidemocrático do capitalismo para se transformar na barbárie atual, a sua posse irresponsável dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, tudo isso, na realidade, tornou-se real ameaça tecnológica e está produzindo o desequilíbrio natural, social e psicológico das relações do homem com a natureza, com a sociedade e com a sua própria consciência.
            Num livro que escrevi, “A Farsa Ecológica”, concluo só existir uma solução real e possível para os problemas ecológicos criados pelos próprios homens: a mudança de consciência, a adoção de uma bioética e de uma ideologia que possa alterar o comportamento humano de modo radical para que ele consiga se organizar socialmente de modo natural e democrático, valorizando a diversidade nas relações humanas e sociais. E afirmava isso só ser possível através de uma única visão de vida e de mundo, uma ideologia política revolucionária, sobretudo voltada para o prazer natural e cultural contra todas as formas de sacrifícios. Uma luta permanente contra o autoritarismo, de poder e de hierarquismo. E afirmava, nesse livro, seguro e confiante: “Não existe real e útil ecologia que não seja a proposta pelo Anarquismo”.
            Era evidente para mim que todos os nossos males produzidos no século XX advinham do capitalismo falsamente democrático e do socialismo autoritário, ambas ideologias combatidas pelo Anarquismo. Hoje, sobrevive ainda apenas o Capitalismo antidemocrático e só resta o Anarquismo para combatê-lo. Conclusão: só o Movimento Anarquista pode, neste século, o XXI, combater as ameaças, a meu ver, hoje transformadas em fatais ameaças ecológicas que podem produzir a extinção da espécie humana sobre a Terra.
            Desde a Segunda metade do século dezenove, o Movimento Anarquista existe no mundo de forma corajosa e brilhante, sobretudo devido a seus grandes e geniais pensadores e a muitas de suas ações revolucionárias, como, por exemplo, na Guerra Civil Espanhola. No Brasil, desde a década de 20, ele vem se desenvolvendo de modo, a meu ver, ainda lento, mas eficiente culturalmente e em algumas ações junto à classe operária, antes desta ter sido dominada pelo Partido Comunista e mais recentemente devido à sua tutela e desfiguração pelo Partido dos Trabalhadores. Mas basta citar este Congresso para se perceber como o Movimento Anarquista está vivo, desperto e preparado para uma nova fase de lutas que, espero, seja mais ativa e ainda mais radical, colocando-se cada vez mais tanto teórica quanto praticamente, na luta direta contra o Capitalismo, mas também num sentido ecológico, além de político.
            Hoje os países mais ricos do mundo mais a Rússia que se auto-intitulou de G8, criaram instâncias mundiais chamadas Banco Mundial, FMI (Fundo Monetário Internacional), ONU (Organização nas Nações Unidas) e, mais recentemente , a WTO (World Trade Organization ou OMC, Organização Mundial do Comércio), principal órgão gestor de seus interesses. O que faz a WTO e por que provoca protestos mundiais como os ocorridos em Seattle no dia 3 de dezembro de 1999?
            A WTO é o supremo tribunal financeiro dos estupradores mercantis Atua como um departamento regulador do comércio mundial, determinando taxas cambiais e políticas econômicas aos demais países. É a nova expansão européia e norte americana sobre o resto do mundo asiático, africano e latino americano: o saqueamento moderno de vidas, de culturas e de ecossistemas.
            Os protestos mundiais contra o WTO constituem um grito pela existência de povos inteiros dos países subdesenvolvidos e dos setores pobres dos países ricos, sobre os efeitos dizimadores da globalização imposta pela WTO e por seus parceiros do submundo: NAFTA, MERCOSUL, etc. Desses protestos nasceu a AGP (Ação Global dos Povos), uma fonte de solidariedade global pelos povos contra o Mercado Global dos ricos que tem tido como aspecto principal à mobilização de ativistas radicais: ecologistas, sindicalistas, anarquistas, etc. A coordenação dos esforços entre anarquistas da América do Norte e da Europa para a AGP tem sido muito importante. No Brasil, esforços estão sendo feitos e anarquistas e libertários discutem suas formas de atuação para o chamado 526 (26 de setembro), quando protestos irromperão no mundo contra a reunião de WTO em Praga.
            Mas para toda a nossa ação revolucionária anarquista, sinto profunda falta da existência de uma Federação Anarquista Brasileira, para melhor e mais eficiente organização de nossa ação conjunta e social independente de nossas ações setoriais. Claro que tal Federação não teria qualquer poder de representação do Movimento Anarquista Brasileiro, mas seria apenas organização, comunicação interna, distribuição de informações, publicações de jornal ou revista, enfim, um organismo centralizador e distribuidor de nossas ações e produções. Há mais de 15 anos, o companheiro Plínio Coelho, voltando de uma longa permanência para estudo do Anarquismo na França, realizou um encontro em Brasília, onde era proposta a criação e organização de uma Federação Anarquista Brasileira. Mas não foi possível alcançarmos essa meta. Agora, mais maduros, talvez, e com a experiência vivida nesses quinze anos, possamos obter êxito nessa empreitada, a meu tão importante quanto necessária.
            Termino esta palestra, solicitando aos presentes a este Encontro que aproveitem esta oportunidade para a formação de um grupo de trabalho para a análise desta minha proposta, visando à realização de um encontro, para breve, com essa finalidade.
            Obrigado e os votos de muito tesão anarquista a todos os presentes a este Congresso.
            -Roberto Freire.


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