Desvendando Marcos

 

No domingo, 11 de março, após uma marcha de mais de três mil quilômetros, o subcomandante Marcos poderá dizer, dirigindo-se a todos os mexicanos e em nome de 10 milhões de índios: "Eis-nos aqui, somos a dignidade rebelde, o coração esquecido da pátria!"

Ignacio Ramonet, enviado especial

Pela primeira vez, o subcomandante Marcos, chefe do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), sai da clandestinidade. Usando sempre seu capuz, deixou a floresta Lacandona do Chiapas e, desde 24 de fevereiro, marcha pacificamente para a Cidade do México, onde pretende chegar no domingo, 11 de março, após ter percorrido mais de três mil quilômetros, atravessado 12 dos Estados mais pobres do país e participado do dia 1º a 4 de março, no Estado de Michoacán, do Congresso Nacional Indígena de Nurio.

Acompanhado por 23 comandantes do EZLN, e escoltado por personalidades amigas provenientes do mundo inteiro (entre as quais o Prêmio Nobel José Saramago, o cineasta Oliver Stone, o sindicalista José Bové, o escritor Manuel Vásquez Montalbán, Danielle Mitterrand...), o subcomandante Marcos deverá entrar triunfalmente na Cidade do México, seguindo simbolicamente o mesmo itinerário feito, durante a revolução mexicana de 1911, pelo célebre rebelde Emiliano Zapata.

Na imensa Praça do Zócalo, no centro da capital, e no meio de uma multidão solidária estimada em várias centenas de milhares de pessoas, o turbulento Marcos poderá então dizer, dirigindo-se a todos os mexicanos e em nome de 10 milhões de índios: "Eis-nos aqui, somos a dignidade rebelde, o coração esquecido da pátria".

Terra, raízes e história

Poucos dias antes do início da marcha, Marcos nos recebeu, ao lado do comandante Tacho e do major Moisés, mil quilômetros ao sul da Cidade do México, no pequeno povoado de La Realidad (450 habitantes), no alto dos 1.500 metros da vertente chuvosa de uma montanha coberta por um espesso velo de selva e perto de seu quartel-general secreto.

Mascarado com seu eterno capuz, equipado com um telefone via satélite, com um boné surrado de cor indefinida, sua velha e pequena metralhadora nas costas, explicou por que os zapatistas marcham no México: "Essa marcha não é de Marcos nem do EZLN, é a marcha de todos os povos indígenas. Ela quer mostrar que o tempo do medo acabou. Nosso objetivo principal é que os povos indígenas sejam reconhecidos pelo Congresso mexicano como sujeitos coletivos de direito. A Constituição do México não reconhece o índio. Queremos que o Estado admita que o México é constituído por povos diferentes. Que esses povos indígenas possuem sua própria organização política, social e econômica. E que mantêm uma relação forte com a terra, com sua comunidade, suas raízes e sua história.

Divulgação da marcha

Não reivindicamos uma autonomia excludente. Não exigimos uma independência qualquer. Não queremos proclamar o nascimento da nação maia, ou fragmentar o país em múltiplos pequenos países indígenas. Queremos que sejam reconhecidos os direitos de uma parte importante da sociedade mexicana, que possui suas próprias formas de organização e reivindica que essas formas sejam legitimadas. Nosso objetivo é a paz. Uma paz baseada em um diálogo que não seja um simulacro. Um diálogo que permita estabelecer as bases de uma reconstrução do Chiapas e favoreça a reinserção do EZLN na vida política corrente. A paz só será possível se a autonomia dos povos indígenas for reconhecida. Esse reconhecimento é uma condição importante para que o EZLN abandone definitivamente as armas e a clandestinidade, participe abertamente da vida política e possa também se dedicar à luta contra os perigosos projetos da globalização."

Após nove meses de silêncio, a divulgação dessa marcha em um comunicado de Marcos, a 2 de dezembro de 2000, dia seguinte à posse do novo presidente do México, teve o efeito de uma bomba. Toda a classe política foi pega de surpresa por essa iniciativa audaciosa tomada em um momento bem particular.

Na verdade, no dia 2 de julho de 2000, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), no poder durante mais de 70 anos, perdeu a eleição presidencial para Vicente Fox, candidato do Partido de Ação Nacional (PAN), de direita. E, ao contrário das grandes suspeitas de fraude e de corrupção que haviam pesado sobre as eleições dos dois últimos presidentes - Carlos Salinas (1988-1994) e Ernesto Zedillo (1994-2000) -, a eleição de Vicente Fox foi unanimemente reconhecida como reflexo da verdade das urnas. Pela primeira vez, depois de muito tempo, Fox, que tomou posse no dia 1º de dezembro de 2000, é um presidente cuja legitimidade parece incontestável.

Estratégia política

Aliás, Marcos admite em uma carta aberta dirigida ao novo presidente: "Fox, ao contrário de seu predecessor Zedillo (que chegou ao poder por intermédio do crime e com o apoio dessa monstruosa corrupção que caracteriza o sistema do partido do governo), o sr. chega à direção do Executivo federal graças à rejeição que o PRI cultivou com zelo entre a população. O sr. sabe muito bem, sr. Fox: ganhou a eleição, mas não foi o sr. que derrotou o PRI. Foram os cidadãos. E não só aqueles que votaram contra o partido do governo, mas também as gerações anteriores e atuais que, de uma maneira ou de outra, resistiram e combateram a cultura do autoritarismo, da impunidade e do crime que os governos do PRI construíram ao longo de 71 anos." 1

Durante a campanha eleitoral, Vicente Fox prometeu controlar, pacífica e politicamente, o problema zapatista "em 15 minutos". A marcha do subcomandante Marcos tomou-o de surpresa em pleno período de "estado de graça" e obrigou-o a se ocupar, imediatamente, da espinhosa questão indígena. "A idéia da marcha é um golpe de gênio, o poder é obrigado a ceder a um calendário de negociação fixado a partir de então por Marcos, que dessa maneira retoma a ação. E Fox é obrigado a aceitar, não só porque há uma pressão nacional e internacional que o impele nesse sentido, mas porque ele não ignora que, ao vir à Cidade do México discutir com as novas autoridades, Marcos reconhece a legitimidade destas, ao mesmo tempo que não reconhece a legitimidade de Salinas nem de Zedillo, considerados pelos zapatistas, e por um grande número de mexicanos, como fraudadores, trapaceiros e usurpadores", nos diz o escritor Carlos Monsivais, que acaba de ter uma longa conversa com Marcos. 2

Um projeto para "todos os mexicanos"

O antropólogo André Aubry, responsável pelos arquivos diocesanos em San Cristóbal de las Casas e amigo do antigo bispo, monsenhor Samuel Ruiz, acrescenta: "Em suma, o que Marcos reivindica não é uma coisa do outro mundo. Ao organizar essa marcha, ele exige que o novo presidente, Fox, diga que nação mexicana ele deseja construir. Marcos simplesmente reivindica que os índios façam parte dessa nação."

Jogador experiente, o presidente Vicente Fox, uma vez passado o efeito surpresa, reagiu favoravelmente ao projeto da marcha zapatista. Acalmando, inicialmente, alguns espíritos exaltados em seu próprio círculo que, como o governador do Estado de Queretaro, haviam tratado os comandantes zapatistas como "traidores", ameaçando-os de morte, Fox acabou admitindo que a marcha representava "uma esperança para o México". Poderia agir de maneira diferente do presidente Andrés Pastrana, da Colômbia, que no dia 8 de fevereiro de 2001 compareceu à zona controlada pela principal guerrilha do país para se encontrar frente a frente com o chefe mítico da rebelião, Manuel Marulanda, "Tirofijo"?

Para tranqüilizar possíveis investidores inquietos, Fox declarou, no dia 26 de fevereiro passado, em Davos: "Ninguém deve temer a marcha do EZLN no México. Não devemos ter medo de incluir todos os mexicanos em um projeto que deve permitir a todos alcançarem o desenvolvimento. A marcha será pacífica e deveremos realizar um acordo de paz em Chiapas." 3

Três condições para o diálogo

Em seguida, o presidente Fox transformou-se em verdadeiro propagandista da marcha: "Meu governo é a favor da marcha. Devemos acreditar no EZLN e fornecer-lhe oportunidade de provar que realmente quer a paz. O que está em jogo é nossa democracia nascente, e é preciso mostrar que ela possui elasticidade suficiente para absorver as diferentes formas de pensar, mesmo as mais radicais." 4 Enfim, Fox não hesitou, retomando argumentos zapatistas, em lembrar a vergonhosa sorte dos índios: "Basta de cinco séculos de infâmia! Basta de ignorar os indígenas e de ser incapaz de integrar os pobres e as populações marginalizadas! Os índios do México foram submetidos a humilhações racistas, a políticas públicas e privadas que levaram à sua exclusão, a seu distanciamento da educação e do desenvolvimento, que os impediram de se manifestar como cidadãos livres e investidos de direitos."

O zelo de Fox em favor da marcha acabou irritando o subcomandante Marcos: "O presidente tenta, agora, apropriar-se da marcha zapatista e chegaria até apresentá-la como uma marcha foxista. Essa estratégia visa a pressionar o EZNL, tentando persuadir todo o mundo de que a paz foi, por assim dizer, obtida, e que se ela não for assinada é culpa apenas dos zapatistas. Trata-se de uma espécie de chantagem. Ele busca a rendição incondicional do EZLN. Enquanto sabe perfeitamente que reivindicamos, antes mesmo de iniciar as negociações propriamente ditas, três modestos sinais de boa vontade de sua parte: libertação de todos os presos zapatistas, retirada do exército de sete posições militares e ratificação dos Acordos de San Andrés sobre os direitos dos indígenas, assinados pelo governo em 1996, e que permaneceram letra morta até hoje."

A opressão dos conquistadores

No momento em que teve início a marcha, no dia 24 de fevereiro, as autoridades tinham libertado apenas 60 de uma centena de detidos zapatistas, e as forças armadas foram retiradas somente de quatro das sete posições reivindicadas por Marcos e, finalmente, os Acordos de San Andrés não haviam sido ratificados. André Aubry explica: "Se Fox não tem condições de cumprir as três condições que reivindicam os zapatistas, isso significa que realmente não detém o poder, que não comanda, que não é o chefe, e que o exército está acima dele. Em suma, a tradição no México, desde 1920, é de controlar os problemas políticos de maneira militar. Foi o que, antes dele, tentaram fazer com os zapatistas os presidentes Salinas e Zedillo. E não conseguiram. Se Fox quer ter êxito e se quer realmente a paz, como não pára de dizer, deve mostrar que realmente é o presidente, que comanda o exército e que, em sinal de boa vontade, aceita as três condições exigidas pelos zapatistas. Estes, por sua vez, comprovam bem sua vontade de paz, deixando a clandestinidade e indo desarmados para a Cidade do México. Marcos disse que o presidente tinha até 11 de março e o fim da marcha para aceitar as três condições. O que está em jogo merece que o presidente faça um esforço, pois envolve a condição dos índios. E a dívida do México em relação a eles é imensa."

Na verdade, durante os últimos 500 anos, as populações indígenas foram parcialmente exterminadas, perseguidas, exploradas, humilhadas e tiveram uma vida abominável. Foram exatamente os sofrimentos desses índios do Chiapas, submetidos à opressão brutal dos conquistadores, que o famoso dominicano Bartolomé de Las Casas, bispo de San Cristóbal, descreveu no livro Breve relato da destruição das Índias (1522). Seu testemunho brutal permite imaginar o que significou, para os indígenas, o pesadelo da conquista.

Uma dívida de cidadania

Após a independência do México, em 1810, e mesmo após a Revolução de 1911, embora feita com o grito "Terra e liberdade!", a sorte dos índios não melhorou. O desdém, a exploração e o desprezo continuaram, assim como a tentativa de sua lenta exterminação, praticada a partir de então pelos grandes proprietários de terra, fazendeiros do café ou do cacau, ajudados por bandos de assassinos profissionais e milícias paramilitares. Na verdade, a Constituição não reconhece a existência dos povos indígenas (10% da população). Sob pretexto de que a maioria é mestiça, o México exalta oficialmente a figura do mestiço, mas ignora, e até despreza, seus índios.

Explica o subcomandante Marcos: "De todos os habitantes do México, os índios são os mais esquecidos. São considerados cidadãos de segunda classe, uma dificuldade para o país. Ora, não somos escória. Fazemos parte de povos com história e sabedoria milenares. Povos que, apesar de pisoteados e esquecidos, ainda não morreram. E aspiramos a nos tornar cidadãos como os outros, queremos fazer parte do México sem perder nossas particularidades, sem sermos obrigados a renunciar à nossa cultura, em síntese, sem deixarmos de ser indígenas. O México tem uma dívida conosco. Uma velha dívida de dois séculos, que só poderá saldar reconhecendo nossos direitos."

O apoio indígena

Os índios continuam vítimas de uma espécie de genocídio silencioso. Esquecidos por todos, "invisíveis", foram condenados a ver suas línguas e seus valores mais do que milenares se extinguirem inexoravelmente. Foi contra essa fatalidade que o EZLN e o subcomandante Marcos se revoltaram.

Instalados há sete anos nas verdes montanhas do Chiapas e nas florestas úmidas do extremo sul do México, perto da fronteira da Guatemala, os zapatistas denunciam a condição dramática das comunidades indígenas. "Ser índio, no México, não é simplesmente ter uma certa aparência física", explica-nos o escritor e ensaísta Carlos Montemayor, autor de um livro indispensável - Chiapas, la rébellion indigène du Mexique 6 - para se compreender as raízes da revolta zapatista. "É falar uma língua indígena, ocupar um território ancestral, praticar os costumes tradicionais e aderir aos valores milenares da comunidade em que se vive. No Chiapas, um terço da população é indígena, ou seja, mais de um milhão de pessoas... Com exceção dos Zoques, aparentados com os Popolucas e com os Mixes, ali se encontra uma maioria de grupos pertencente à família maia do México: Tzotziles, Tzeltales, Choles, Tojolabales, Lacandonas, Mames, Mochos, Kakchikeles, num total de doze grupos lingüísticos. Mas as importantes migrações recentes modificaram profundamente a composição social, ideológica e política das diferentes subregiões da chamada floresta Lacandona, que representa a principal base social do EZLN. Calcula-se que pelo menos 200 mil indígenas de etnias diferentes apóiam, de uma maneira ou de outra, no Chiapas, o EZLN."

A singularidade do movimento

Estado muito rico, o Chiapas possui as mais importantes jazidas de petróleo assim como as maiores reservas de gás e fornece para o resto do país 40% da energia hidrelétrica, o que, aliás, permitiu ao México fornecer aos Estados Unidos a eletricidade que faltou na Califórnia de uma maneira impressionante em dezembro do ano passado... O sociólogo Herman Bellinghausen, um dos melhores especialistas na insurreição zapatista, constata: "Apesar de sua enorme riqueza, no Chiapas, um terço das crianças jamais é escolarizado e apenas um em cada cem alunos chega à universidade. Entre os indígenas, o analfabetismo ultrapassa 50% e sua taxa de mortalidade é 40% superior à dos habitantes da capital..."

Para protestar contra a sorte dos índios e, de uma maneira dramática, chamar a atenção internacional para o destino dessas comunidades humanas que se acham entre as mais abandonadas do mundo, o subcomandante Marcos e o EZLN insurgiram-se, então, no dia 1º de janeiro de 1994. Após combates que terminaram com dezenas de mortos, os zapatistas ocuparam naquele dia quatro cidades importantes do Chiapas, entre elas San Cristóbal de las Casas (50 mil habitantes).

"Mas, ao mesmo tempo, e essa é a grande singularidade desse movimento, Marcos compreende que o tempo das guerrilhas tradicionais, como as da América Latina ao longo da segunda metade do século XX, acabou", comenta Herman Bellinghausen. "Que o fim da guerra fria, a queda do muro de Berlim em 1989, o desaparecimento da União Soviética em 1991 e a ofensiva da globalização modificaram radicalmente a situação geopolítica e revolucionaram as estruturas do poder. Que outras forças, além das forças políticas, conduzem, a partir de então, os destinos dos países, entre as quais estão na primeira fila os mercados financeiros e as lógicas livre-cambistas de que o Acordo de Livre Comércio Norte-Americano é uma das expressões."

O ideal da globalização

Por isso os zapatistas escolheram o dia 1º de janeiro de 1994, dia da entrada em vigor do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta), entre o México, os Estados Unidos e o Canadá, para irromperem na vida política mexicana. Ao mesmo tempo que defendia a causa dos índios, Marcos marcou também de alguma maneira, naquele dia, a primeira revolta simbólica contra a globalização. Foi preciso esperar a mobilização internacional contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) em 1998, seguida das manifestações de Seattle contra a reunião de cúpula da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, e das de Davos contra os "donos do mundo", em 2000, para ver as novas revoltas se multiplicarem contra a globalização. Marcos foi o primeiro que tentou teorizar a articulação entre a lógica da globalização e a marginalização dos pobres do hemisfério Sul.

Marcos analisa: "A partir da queda do muro de Berlim, um novo super-poder surgiu e se desenvolveu, estimulado pelos políticos neoliberais. Os grandes vencedores da guerra fria - guerra que pode ser considerada a terceira guerra mundial - são os Estados Unidos, mas, imediatamente, acima dessa potência hegemônica, começa a surgir o que se poderia chamar um super-poder financeiro, que começa a dar as diretrizes a todo o mundo. Isso produz o que, em grandes linhas, denominamos globalização. O ideal da globalização é um mundo transformado em grande empresa e administrado por um conselho de administração constituído pelo FMI, pelo Banco Mundial, pela OCDE, pela OMC e pelo presidente dos Estados Unidos. Nesse contexto, os governantes de cada país são apenas representantes desse conselho administrativo, uma espécie de gerentes locais. E o que vocês, no Monde Diplomatique, definiram muito bem como o "pensamento único", é encarregado de fornecer o vínculo ideológico para convencer todo o mundo de que a globalização é irremediável e que qualquer outra proposta seria quimérica, utópica, irrealista. Na escala mundial, a grande batalha que se abre atualmente - e que se poderia chamar de quarta guerra mundial - opõe os partidários da globalização e todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, criam-lhe obstáculos. Tudo o que impede o desenvolvimento da globalização está, a partir de agora, ameaçado de destruição."

As armas da comunicação

Qual a relação disso com a situação dramática dos indígenas? Continua Marcos: "Em sua fúria hegemônica, a globalização apela para elementos da cultura. Ela aspira a homogeneizar culturalmente o mundo. Em uma certa medida, a globalização econômica significa a globalização do modo de vida norte-americano. Os valores do mercado impõem-se por toda a parte. Eles regem, a partir de agora, não só o funcionamento dos governos, mas também o dos meios de comunicação, da escola e até da família. O indivíduo não pode ocupar um lugar na sociedade a não ser à medida em que tenha uma capacidade de produzir e de comprar. Os critérios do mercado eliminam, então, uma boa parte da humanidade que se revelaria não-rentável. E isso diz respeito a todos os indígenas da América Latina. A globalização exige sua eliminação. Por meio de uma guerra aberta, se preciso, ou de uma guerra silenciosa, se necessário. Sob pretexto de que os índios não são úteis à dinâmica da globalização, de que eles não podem se integrar e poderiam até se tornar um grave problema devido ao seu potencial de rebelião."

Conduzindo uma luta concreta no meio das comunidades indígenas do Chiapas, Marcos analisa sua própria prática de combate, situando-a no contexto geopolítico internacional e no âmbito da globalização em curso. 7 É um tipo de idealista prático, de estrategista que usa os meios de comunicação, que utiliza a Internet como uma arma, inundando o planeta com comunicados, textos, análises, contos, parábolas e poesias. Estabelece relações solidárias com centenas de associações cívicas e dezenas de personalidade engajadas na defesa dos direitos das minorias. Seu armamento utilizando os meios de comunicação revela-se mais original e, em última análise, mais eficaz que o do Estado mexicano. Desde o dia 12 de janeiro de 1994, ou seja, apenas onze dias após o início da insurreição, Marcos abandonou a opção pelas armas. Nem mais um tiro foi dado pelos zapatistas, que adotaram, desde então, uma estratégia não violenta para ganhar os corações e o espírito da opinião pública internacional.

O poder e os cidadãos

Chefe carismático e promotor de um novo estilo de ação política, sem arrogância e sem presunção, Marcos revela-se além do mais um escritor talentoso, cheio de humor e engraçado, citando normalmente seus autores preferidos que, como Gramsci, caracterizam-se pelo pessimismo da razão e otimismo da vontade: Cervantes, Lewis Carroll, Bertolt Brecht, Julio Cortazar, Borges...

Compreende-se por que, mesmo se marcha para a capital mexicana, Marcos não busca o poder. Ele afirma, sorrindo: "O problema não é conquistar o poder - sabe-se que o lugar do poder se encontra vazio, a partir de agora. E que a luta pelo poder é uma luta pela mentira. O que é preciso, no momento da globalização, é construir uma nova relação entre o poder e os cidadãos. Se assinarmos a paz, o EZLN cessará de fazer política como fez até agora. Fará da política outra coisa, sem capuzes, sem armas, mas a serviço das mesmas idéias. Pois aprendemos que somos uma espécie de espelho e que refletimos, à nossa maneira, outros movimentos de resistência através do mundo. É por que nos sentimos solidários com outras lutas. Como aquelas, por exemplo, dos homossexuais e das lésbicas, objeto de todo o tipo de perseguições e discriminações. Ou com as dos migrantes, contra os quais, por toda a parte, instalam-se dispositivos racistas. Querem que as pessoas reneguem suas particularidades, a cor de sua pele, sua origem ou o país em que nasceram. Querem fazer-lhes sentir que ter nascido com aquela cor, ou naquele lugar, é um crime. E que devem ser punidos por isso."

Política com o rosto descoberto

Quando vai tirar seu capuz? "No dia em que um indígena puder desfrutar os mesmos direitos que um branco em qualquer lugar da República; no dia em que o sistema do partido-Estado terminar e em que eleição deixar de ser sinônimo de fraude", respondeu ele a Régis Debray, que lhe fez a mesma pergunta 8 em 1996. A segunda condição, por mais incrível que pareça, foi realizada, e a primeira - se a marcha tiver êxito e se acreditarmos em Fox - deverá ocorrer logo.

Eu lhe faço então novamente a pergunta à medida que a noite e a chuva começam a cair e que, aos poucos, La Realidad, que ainda não tem eletricidade, cobre-se de sombras. E Marcos responde: "O que é certo é que queremos nos desembaraçar o mais rápido possível do capuz e das armas. Porque queremos fazer política com o rosto descoberto. Mas não tiraremos o capuz em troca de simples promessas. Os direitos dos índios devem ser reconhecidos. Se o poder não o fizer, não só retomaremos as armas, como outros movimentos bem mais radicais, bem mais intolerantes, bem mais desesperados e bem mais violentos que o nosso o farão. Pois a questão étnica, aqui e em outros lugares, pode dar origem a movimentos fundamentalistas prontos para todas as espécies de loucuras assassinas. Em compensação, se tudo se passar como queremos e os direitos dos índios forem reconhecidos, Marcos deixará de ser o subcomandante, o líder ou o mito. Será compreendido, então, que a principal arma do EZLN não terá sido o fuzil, mas a voz, as palavras. E, quando a poeira levantada por nossa insurreição se assentar novamente, as pessoas vão descobrir uma verdade fundamental: em toda essa luta, essa resistência e essa reflexão, Marcos terá sido apenas um combatente a mais. É por isso que digo sempre: se você quer saber quem é Marcos, quem se esconde por trás de seu capuz, pegue um espelho e mire-se, a fisionomia que você descobrir é a de Marcos. Pois somos todos Marcos."

A noite caiu em La Realidad. Galáxias de vagalumes cintilam no escuro. Atormentados pela organização da marcha, Marcos e dois de seus amigos zapatistas se perdem na floresta, devorados de repente pela vegetação e pelas sombras. Do sucesso dessa marcha depende, em grande medida, a sorte dos povos indígenas do México. E ela será um sucesso? Chegam-nos algumas palavras do escritor José Saramago que dão novamente esperança a todo o mundo: "Os zapatistas cobrem o rosto para se tornar visíveis e, de fato, finalmente nós os enxergamos. Agora eles marcham para a capital mexicana. Quando nela entrarem, no dia 11 de março, a Cidade do México será a capital do mundo."

Traduzido por Wanda Caldeira Brant.

* Diretor geral de Le Monde Diplomatique.
1 "Lettre du sous-commandant Marcos au nouveau président du Mexique", Dial (38, rue du Doyenné, 69005 Lyon), 16 de dezembro de 2000.
2 La Jornada, México, 8 de janeiro de 2001.
3 Proceso, México, 4 de fevereiro de 2001.
4 Excelsior, México, 18 de fevereiro de 2001.
5 La Jornada, 15 de fevereiro de 2001.
6 Carlos Montemayor, Chiapas, la rébellion indigène du Mexique, traduzido do espanhol por Rémy Kachadourian, ed. Syllepse, Paris, a ser publicado no final de março de 2001.
7 Ler, especialmente, do sub-comandante Marcos, Desde las montañas del Sureste mexicano, ed. Plaza y Janés, México, 1999.
8 "La guérilla autrement", artigo de Régis Debray, Le Monde, 14 de maio de 1996.

 

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