Perseguições Bernardescas

Muito se tem dito sobre as barbaridades praticadas contra o povo nos dias em que para a desgraça da nação reinava no cattete o celeberrimo e fervoroso Catholico Apostolico e Romano Arthur Bernardes e na Rua dos Invalidos, o marechal Escuridão e o coronel Metralha.

Nestes ominosos tempos era de enlouquecer a pemanencia na geladeira da Central.No Brasil, é, aliás, norma antiga das autoridades maltratar presos, especialmente os que o são por delicto de opinião.

Os "muleques cinco", os "bahias", os "vinte e quatro", os "za-la morte", "padeirinhos", etc., sempre contaram com o beneplacito protector de muitas autoridades, especialmente dos agentes de polícia.

Quantas vezes, em minhas innumeras prisões, não ouvi discusões entre os "Pifarais" e o "Sizenandos" sobre quotas diarias que pagavam para fazerem os trens da Central, bancos e avenidas, etc.

Com que avidez e solicitude eram procurados na geladeira para levarem recados aos advogados, etc.E, no entanto, mal cahia, na cadeia, um anarchista, o minimo que faziam era annunciar aos outros presos que o infeliz possuia esta ou aquella quantia escondida - e o resultado era um natural espancamento.

Em 1924, porém, as coisas foram ao auge.

Com rarissimas excepções, ninguem escapava aos barbaros castigos. Noite sim, noite não, apparecia o Barreirinha, 26 e outros mais e todos os infelizes sahiam, um por cada vez, para soffrer os terriveis espancamentos.

Com o camarada Paiva deu-se um caso typico.

Entre os guardas da geladeira havia um tal denominado Barreto, ou coisa semelhante. Com pretensões a intelectual, todas as noites que estava de serviço procurava, conosco, manter discussão.

Fugíamos todos a tal discussão, pois sabíamos de antemão, que esse individuo estava procurando pretexto para mais uma bravata. O mesmo, porém, não aconteceu com o nosso camarada Paiva, que todo mundo no Rio conhece por andar vendendo "A Batalha", "A Communa" e "A Plebe", por toda a cidade e nas horas de folga.

Provocado, este camarada manteve a discussão e, numa occasião em que se discutia o internacionalismo, o pançudo guarda gritou:

– Cala a bocca, galego!

– Não calo, – retrucou o camarada – foi você quem me desafiou para a discussão.

– Não calais? Tornou o carrasco, vou te mostrar como nós te fazemos calar.
Dizendo isto, abriu o pesado portão e procurou arrastar o nosso camarada, o que procuramos impedir.
O camarada Paiva pedia-nos que o deixassemos dar uma lição naquelles bandidos e, depois de muito luctar, não tivemos mais meios de o evitar. Sahiu. Mal poz o pé para fora das grades, o carrasco deu a volta á chave e pegou num cacete, dirigindo-se para elle. O nosso camarada advertiu que se lhe desse uma cacetada teria de se arrepender.

Não pestanejou o carrasco; levantando o pau e, quando tentou arrial-o na cabeça de nosso camarada, viu-se preso por elle, e, apezar de seu pachidermico ventre, foi bater-se ao chão, conjunctamente com o nosso camarada. Barreto, vendo-se em máus lençóes , gritou e logo accudiram dois guardas civis e uma agente de policia, procurando todos tirar o pau que já então se achava nas mãos do nosso camarada. Novos tombos, indo todos quatro parar num bolo a um canto da sala.

Ahi, Barreto, com voz supplicante, pedia ao camarada que largasse o pau pois não lhe faria mal algum, ao que o nosso camarada não accedia.

Estiveram pelo chão mais de 5 minutos, findos os quaes, apossando-se Paiva inteiramente o pau o quebrou, dizendo que aquelle não espancaria mais ninguem. Depois disto, levantou-se e derigiu-se para o xadrez, como se nada lhe tivesse acontecido.

No dia seguinte, uma turma de agentes retirou nosso camarada da geladeira, levando-o para os compartimentos superiores.

Passou-se mais de meia hora e nós julgávamos já que o Paiva havia mudado de presidio quando elle chegou em lastimavel estado.

O rosto cheio de echimoses, signaes de unhadas no pescoço e nos pulsos e uma facada na perna direita.
Trazia-o um agente, que vinha exaltadissimo. O nosso companheiro contou-nos haver sido agredido por mais de doze agentes e que se defendera valentemente de todos, tendo antes quebrado duas palmatorias e um páu com os quaes haviam pretendido espancal-o.

Contou-nos ainda que estando agarrado por muitos esbirros, um agente branco e gordo lhe cravara uma faca na perna, dizendo:

– Aguenta, portuguez! Ao que, respondera: – Ah! Covardes! E mostrou-nos a ceroula toda ensanguentada.

Todos os presos verificaram horrorisados os ferimentos do nosso camarada.
Por muito tempo guardamos a ceroula do camarada para, quando sahissemos da cadeia, mostrarmos pelos jornaes como eram tratados na policia os presos politicos; porém, como os dias se passaram, e os mezes e os annos, e o nosso camarada fosse deportado, tudo ficou olvidado, e , só agora pelo escandalo do caso Conrado Niemayer é que me lembrei deste caso, dos espancamentos dos nossos camaradas quando sahiram da geladeira para o navio Campos e os horriveis chibateamentos na entrada deste factidico navio, onde tanta infamia se cometteu que até se torna impossivel descrever.

Domingos Passos

Artigo publicado no jornal A Plebe, no 250, de 1o de maio de 1927.