Valores Acima de Qualquer Preço
No Vishnu Purana, o mundo é destruído
e recriado por um ser cósmico quando os valores humanos falham
em manter a natureza e a sociedade. Vishnu, o Criador, assume o caráter
de Rudra ou Shiva, o destruidor, e descende para reunir todas as suas
criaturas dentro de si. Ele entra nos sete raios do sol e bebe todas
as águas da Terra, secando os mares e os rios.
A redução de todo valor a riqueza,
e a exclusão da compaixão e do zelo das relações
humanas, estão entre os fatores que causam esta dissolução.
Como o Vishnu Purana o coloca: "As mentes dos homens serão
plenamente ocupadas em adquirir riquezas, e as riquezas serão
gastas somente em deleite próprio. Os homens fixarão
seus desejos sobre as riquezas, mesmo que adquiridas desonestamente.
Nenhum homem repartirá a menor fração da menor
moeda, apesar das súplicas de um amigo. O povo estará
quase sempre aterrado pelas privações e temeroso pela
escassez."
Os laços entre a avareza, a escassez
e a destruição que esta história apresenta estão
no coração da crise ecológica. A redução
de todo valor a valor monetário é um aspecto importante
da crise de escassez gerada pelo processo de crescente abundância.
Diz-se freqüentemente que as raízes
da destruição ambiental consiste em tratar-se os recursos
naturais como "gratuitos" e não dar-lhes "valor".
A maioria das discussões no paradigma dominante pressupõem
que o valor monetário, comercial ou de mercado é a única
forma de medir ou avaliar o meio ambiente. É falsamente aceito
que o valor possa ser reduzido a preço.
No entanto, o mercado não é a
única fonte de valores, e os valores monetários não
são os únicos. Valores espirituais tratam certos recursos
e ecossistemas como sagrados - há também valores sociais
tais como aqueles associados com recursos de propriedade comum. Em
ambos casos, os recursos não têm preço - mas um
valor muito alto. De fato, é precisamente porque seus valores
são altos que estes recursos não são deixados
para o mercado mas são mantidos mais além do domínio
do valor monetário de forma a protegê-los e conservá-los.
A proposta de resolver a crise ecológica
dando valores de mercado a todos os recursos é como oferecer
a doença como cura. A redução de todo valor a
valor comercial, e a remoção de todos os limites espirituais,
ecológicos, culturais e sociais à exploração
- a mudança que ocorreu com a industrialização
- é central à crise ecológica.
Esta mudança está refletida na
alteração do significado do termo "recurso"
¹ , que originalmente implicava vida. Sua raiz vem do latim,
curso, evocando a imagem de um curso de água continuamente
renovado. Como a água corrente, um "recurso" renova-se
seguidamente, mesmo se foi usado repetidamente e consumido. A palavra
realçava o poder da natureza de auto-regeneração
e sua prodigiosa criatividade. Além do mais, implicava uma
idéia antiga sobre a relação entre o humano e
a natureza - de que a Terra agracia os homens que, em troca, estão
bem aconselhados a não sufocar sua generosidade. No início
dos tempos modernos, "recursos" portanto sugeria reciprocidade
assim como regeneração.
Com o advento do industrialismo e do colonialismo,
"recursos naturais" tornaram-se as partes da natureza requeridas
para consumo pela produção industrial e pelo comércio
colonial. Em 1870, John Yeates em seu História Natural do Comércio
apresentou a primeira definição deste novo sentido:
"Falando dos recursos naturais de qualquer país, referimo-nos
ao minério ainda na mina, à pedra não extraída
(etc.)"
A
REGENERAÇÃO NEGADA
Por esta visão, a natureza foi despida
de seu poder criativo e convertida em um reservatório de matérias
brutas esperando para ser transformadas em matéria consumida
para a produção de mercadorias. Recursos são
meramente quaisquer materiais ou condições existentes
na natureza que podem ter potencial para a "exploração
econômica". Sem a capacidade de regeneração,
a atitude de reciprocidade também perdeu terreno: agora é
apenas a inventividade humana e a indústria que "transmite
valor à natureza". Os recursos naturais devem ser desenvolvidos
e a natureza somente encontrará seu destino uma vez que o capital
e a tecnologia são introduzidos. A natureza, cuja verdadeira
natureza deve ascender novamente, foi transformada por esta visão
de mundo inicialmente ocidental em matéria morta e manipulável
- sua capacidade de renovação e florescimento negada.
A economia de mercado é só uma
das economias mundiais - há ainda, a economia da vida natural
- processos de manutenção e economia dos povos em que
nosso sustento é suprido e nossas necessidades são satisfeitas.
A economia da Natureza é a mais fundamental, tanto porque está
na base da economia dos povos e na de mercado, quanto porque tem a
maior prioridade, e reivindicação, sobre os recursos
naturais. No entanto, o desenvolvimento e o crescimento econômico
tratam a economia de mercado como a primordial, e ou negligencia as
outras, ou as trata como marginais e secundárias.
O acúmulo de Capital leva sim ao crescimento
financeiro, mas arruina a base de recursos naturais de todas as três
economias. O resultado é um alto nível de instabilidade
ecológica. O crescimento desordenado e a ideologia do desenvolvimento
baseado nele são as razões primordiais que sublinham
as crises ecológicas e a destruição dos recursos
naturais. Para resolver os conflitos ecológicos e regenerar
a Natureza a estas economias devem ser dados seus lugares devidos
na estável fundação de um Natureza saudável.
A mercantilização de recursos
deve ser substituída pelo restabelecimento de áreas
comuns. Isto envolve a recuperação dos domínios
da Economia Natural e da economia de auto-sustentação,
que, conseqüentemente, envolve a recuperação do
valor da Natureza em suas dimensões espirituais, ecológicas
e sociais.
O modelo dominante de economia ambiental promovida
pelo Banco Mundial e pelas maiores potências econômicas
buscam no entanto reduzir a Economia Natural e de auto-sustentação
frente à economia de mercado. A preocupação em
"alcançar os preços desejados" mantêm-nos
cegos para o fato de que o mercado usualmente regula mal os valores
da justiça e da sustentabilidade.
A mercantilização dos recursos
comuns está baseada em mitos. O primeiro é a equivalência
entre valor e preço. Recursos - como florestas sagradas e rios
- normalmente têm um valor muito alto mas não têm
preço. O segundo é que os recursos de propriedade comum
tendem a degradar-se. A privatização é freqüentemente
prescrita para resolver "problemas" causados pelo uso abusivo
de recursos a acesso de todos e em propriedade comum. Mas está
baseado na comerciabilidade da propriedade particular, enquanto áreas
comuns estão baseadas na inalienabilidade de direitos compartidos
derivados do uso. A suposição de que a alienabilidade
é mais tendente à conservação é
derivada da falsa associação entre preço e valor.
Afirmou-se que donos de terra têm pouco
incentivo para investir em medidas de longo prazo como a conservação
do solo se não têm o direito de vender ou transferir
a terra, e portanto não percebem para si o valor de quaisquer
melhoramentos. Isto é patentemente falso, pois que os melhores
exemplos de conservação do solo - como nos terraços
das montanhas do Himalaia - demonstraram ter precisamente razões
opostas. Comunidades que não são ameaçadas pela
alienação de recursos e nas quais seus benefícios
têm possibilidades a longo prazo e há interesse em conservá-los.
O
AGRAVAMENTO DA POBREZA
O paradigma dominante da economia ambiental
não internaliza os custos da degradação de recursos
socialmente e ecologicamente. A internalização social
implicaria que aqueles responsáveis pela degradação
ambiental pudessem arcar com seus custos.
Converter propriedades comuns em mercadorias
é parte necessária da economia ambiental no paradigma
do mercado. Mas não impede a degradação ambiental
porque os poderosos economicamente não se importam em pagar
um preço mais alto por um recurso. Outras pessoas arcam com
os custos tanto da escassez de um recurso em declínio, ao qual
os ricos podem continuar a ter acesso, e de penúrias relacionadas
e da poluição causada pela superexploração.
Estes custos ecológicos não são considerados
no modelo reducionista da internalização do mercado.
Uma internalização genuína
teria que incluir valores acima daqueles de mercado, valores que põem
limites à superexploração. Dado o vasto golfo
que separa ricos e pobres, os preços de mercado, não
importa a quão altos cheguem, não introduzirão
limites à exploração. Eles não restringirão
portanto a exploração de recursos com limites ecológicos,
mas permitirão ao invés disto, a continuidade da degradação
dos recursos ao mesmo tempo que o agravamento da pobreza e da injustiça.
O crescimento econômico ocorre através
da superexploração dos recursos naturais, criando uma
escassez deles tanto na economia da Natureza quanto na economia do
sustento próprio. A Natureza é reduzida como capital.
O crescimento do mercado não pode resolver a crise por ela
mesma criada. Além disso, enquanto os recursos naturais podem
ser convertidos em dinheiro, o dinheiro não pode ser convertido
nos processos ecológicos da Natureza. Aqueles que oferecem
soluções de mercado à crise ecológica
limitam-se ao mercado, e olham para substitutos para a função
comercial dos recursos naturais, como mercadorias e matérias-primas.
No entanto, na economia da Natureza, a moeda não é o
dinheiro, mas a vida.
Esta negligência do papel dos recursos
naturais nos processos ecológicos e na economia de sustentação
própria dos povos - e o desvio e destruição destes
recursos para a produção de mercadorias e a acumulação
de capital - são as razões principais tanto para a crise
ecológica como para a crise da sobrevivência no mundo
em desenvolvimento. A solução parece consistir em dar
o controle sobre os recursos locais às comunidades locais a
fim de que tenham o direito e a responsabilidade de reconstruir a
Economia Natural e, através dela, seu sustento. Apenas isto
irá garantir maior justiça distributiva, participação
e sustentabilidade.
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1 - Tivemos que adaptar um pouco o texto, pois
Vandana Shiva trabalha com o significado da palavra inglesa "resource",
traduzida por recurso, apenas que originada de outra raiz latina,
o verbo surgere, que ela remete ao exemplo da água de uma nascente
que surge continuamente, mas que também sugere a constante
renovação da Natureza. - Nota da Tradução
pelo Coletivo Domingos Passos.
Vandana
Shiva