"Na nossa civilização,
temos alegria em repartir"
"Nesses
500 anos, os Pataxó Hã hã hãe sofreram
muita tortura, massacres, estupros, essa história de violência
toda.
Para
nós, não tem alegria em ver nosso território
invadido, nosso povo sendo expulso, sendo discriminado. A justiça
não cumpre os prazos constitucionais, não demarca as
terras. E quando os povos indígenas tomam a iniciativa de retomar
suas terras, enfrentam todo tipo de agressões.
Então,
o que eu digo desses 500 anos é que foi um tempo de amargura,
de angústia, de morte, que enfrentamos com uma resistência
muito grande. Fomos obrigados a lutar para defender a nossa vida.
Em
abril, nós vamos fazer a Marcha Indígena.
Nós
queremos dar o nosso recado de resistência, mostrar que existimos
e que merecemos respeito pelo nosso jeito de viver. A partir de agora,
queremos mostrar que os índios estão mais organizados.
Vamos sair dessa marcha e dessa conferência muito mais preparados
para lutar pela recuperação e demarcação
das terras. Não vamos ficar esperando que a Funai demarque
sei lá quando. Retomando as terras, nós forçamos
que aconteçam avanços. Se nosso povo esperar pela vontade
do governo isso nunca vai acontecer.
A
marcha é momento de muita união, é um motivo
de felicidade, porque prova que os índios estão se encontrando,
estão se articulando para lutar juntos. Ela é um sinal
que estamos correndo por vários caminhos, para nos encontrarmos
num só lugar e fazer nossos planos de luta, nossas exigências
do governo a respeito da terra. Temos que ser respeitados como povos
que primeiro foram os donos desse país.
Com
a marcha também queremos dizer alguma coisa para a sociedade
toda: queremos mostrar que nós não estamos lutando contra
eles, mas que somos também parte dessa sociedade, só
que com nossas diferenças.
Queremos
que os brancos aprendam a respeitar uma outra sociedade diferente.
Os índios são civilizados, não com civilização
do branco, mas sim uma civilização de cada povo. Hoje
nós olhamos, quando chegamos numa cidade, muita gente que se
diz civilizada mas que maltrata seu semelhante, que deixa suas crianças
por aí pedindo, esmolando, passando dificuldades.
Você
entra nos órgãos públicos, vê tudo aquilo
[vê o luxo], depois, lá fora, vê gente passando
fome, gente igual, só que pobre.
Então,
o medo que nós temos de perder nossas terras é o de
ver realmente o nosso povo na rua, dormindo debaixo de viaduto, caído
em marquises, mendigando.
Então,
essa não é a nossa civilização. Nós
somos de um pensamento diferenciado da civilização deles.
Nós não ensinamos nossos filhos a pedir, ensinamos a
repartir e a lutar para que não falte a alimentação.
Nós não deixamos nosso povo sofrer, como o governo faz
e a sociedade dos brancos aceita que aconteça. Como podem ver
suas crianças na rua? Como podem ver famílias sem ter
o que comer, revirando lixo? Nós não deixamos. Nós
temos alegria em repartir. Se uma família tem pra comer e chegam
outros que não têm, ela faz alimento suficiente para
todos. Nós não temos coragem de deixar um parente sair
com fome, se temos comida guardada. A gente come junto, depois se
apega com Deus e vai, com certeza, adquirir. Por isso, também,
se temos a nossa terra demarcada e na nossa mão, temos condições
de adquirir nosso alimento e de repartir entre nós.
Nosso
povo é organizado, sempre foi. Tem povos nesse Brasil que abrangem
até 30 mil pessoas, e essas pessoas todas respeitam umas poucas
lideranças, sem precisar de soldados e de cadeias. Nós
não temos cadeia nas nossas aldeias, temos conselhos pra dar
ao nosso povo e eles acatam. Nós procuramos educar nossos filhos
pra crescer já naquele jeito. Nossos velhos têm seu lugar,
não estão por aí passando dificuldade. A nossa
organização interna controla todo o povo com respeito.
E todos o povos vivem sem passar fome. Já nas cidades com 30
mil habitantes, nessa lógica dos brancos, precisa de poder
de arma, de polícia, de juiz, de tanta gente pra governar e
nem assim consegue controlar, que as cadeias vivem cheias de gente
e as ruas cheias de mendigos.
Por
isso, que a gente não combina com essa sociedade branca. O
sistema deles é totalmente diferente do nosso dia a dia, do
nosso jeito de ser dentro das áreas indígenas. A sociedade
branca tem que entender e respeitar esse nosso jeito.
Quando
a gente pensa nos outros quinhentos, sabemos que nós temos
muitas coisas pra ensinar, conhecemos muitos caminhos. Queremos aprender
os caminhos de outros também e que eles aprendam os nossos.
Daí, certamente, vão nascer os outros 500.
Esperamos
que o futuro seja de alegria, de justiça. Nestes próximos
cinco séculos quem sabe a gente consiga se articular melhor,
organizar e entender que todos no Brasil, estando juntos, vamos conseguir
reconquistar os direitos de todos. Nós, povos indígenas,
reivindicamos pelo menos estas terras que hoje são nossas,
ou que estamos retomando para poder sobreviver. Pelo menos um atendimento
de saúde adequado às nossas comunidades, uma escola
que seja do nosso jeito, que respeite a gente.
Nailton
Muniz Pataxó Hã hã hãe
Cacique
do Posto Indígena Caramuru/Catarina/Paraguassu/BA
osubversivo.cjb.net